Algum Dia no Brasil

Estava em casa. No primeiro andar. As janelas bem abertas e as cortinas esvoaçantes. O ar perfumado dos incensos de casa era como um outro familiar, vivo e bem vindo em nossa comodidade. Papai passava com a camisa tricolor surrada fazendo meninice para mim uma vez mais. Sempre com um sorriso fácil, marcado pela sua risada estridente (que hoje também tenho e um pouco de barba) e muito carinho por todo seu ser; minha mãe, duplamente carinhosa, mas seria. Nosso alicerce, provocava tombos em meu estômago ao cheiro de suas obras de arte na cozinha, a poucos passos de onde eu estava apenas separado pelo corredor, mas quanto maior a espera maior era a surpresa do amor de mamãe. Nossos cachorros imploram por atenção, um rajado e viralata se debruça em mim. E outra menor e ranzinza se ergue nos braços de papai e seu olhar apaixonado se eterniza.

O almoço de domingo é fluído. Sem TV. Ressoa o som de The cure, com autorização paterna e o desaprovo de mamãe. O que não falta são risadas, o tempo se acinzenta nas janelas, a cortina dança com maior vontade. Nos mantemos ali muito depois dos términos. O mate de gelado desistiu para o simples fresco, as marcas do copo americano são bordadas a água, do suor de uma hora atrás. fartos de rir e conversar sobre nossa própria existência, meu dois velhos se levantam para dormir no final de tranquilidade que ainda resta para ambos. Me sobre ver um resto de futebol, feliz.

Enquanto Serginho, Muricy e Rocha, se aproximam do retângulo rival, uma gota fina beija a média distância entre minha orelha e pescoço. Me ergo para ir à janela, ao correr o metal antigo e não mais moderno do edifício, vejo o mundo de lá fora. Milhares caminham as ruas, Bandeiras de todos as cores correm meu olhar, porém, aqui de cima nenhum som chega. Pedidos e exigências estridentes lá embaixo ocorriam mudos. Casais de mãos dadas se mantêm resistentes, crianças observando o todo nos ombros de um papai, de vermelho.

Sido, o Porteiro me abriu com um rangido vexatório a portinhola. Seu olhar peculiar, era mais estranho do que quando seu time perdia em meio ao caçoo. Por que? ao me olhar me tornar clandestino em meio aos populares, seus bigodes se coçaram e fui observado como nunca antes. Me senti como nunca antes. O ar era outro, não havia mais risos e chá, apenas peso. O tricolor jogava e ninguém ali se importava. As bandeiras que pintavam minha vida passaram ao vermelho, como a reivindicação. Ninguém do meu prédio me acompanhava, mas como? se ali haviam tantos… que me sorriam. Seguíamos todos em união, cantávamos em reprimenda, nossos prédios agora eram escuros, a felicidade foi aprisionada com a última das janelas, que com o mesmo rangido, nos negou.

E veio a repressão. Os cantos, as mãos dadas e familiaridade sumiram com a velocidade de um gol. Cavalos relinchavam e agrediram em sua passada como se não fossemos desejados. Por minutos desejei meu pai. As bombas explodiram como geralmente explode a torcida. Os cassetetes se somaram e eu já não sei mais nada. Chorei de medo, berrei socorro e a única resposta era “Cale-se”; Me joguei debaixo de um carro, as bombas me ardiam. Desmaiei.

Quando vivo novamente e salvo das patadas equinas graças ao carro, nada. Não havia ninguém, não havia mais tricolor, não havia mais mão dadas nem crianças cantando um mundo melhor, não havia sangue, todos sumiram. As janelas estavam abertas e suas flâmulas oprimiam.Talvez nunca mais tenha domingo, nem risadas estridentes, mas certamente terá eu. Terá resistência.

“eu vejo um museu de grandes novidades” Cazuza, 1988.

Ramatìs
Enviado por Ramatìs em 31/12/2019
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