Retratos
Claudionor
- Bota mais uma Chico! – disse Seu Claudionor ao pé do balcão.
- Vá com calma, homem, já bebeu demais – disse Chico Bola para Claudionor, enquanto derramava a pinga no copo.
- Hoje é domingo, mereço beber e relaxar um pouco – retrucou Claudionor.
- Assim você vai trocar as pernas na ida pra casa, Nôzinho! – falou o compadre Bento.
- Troco nada – disse Claudionor revirando de uma vez a pinga quente na garganta. A careta que se seguiu divertiu o compadre.
O bar naquele domingo estava quase vazio. Muitos já tinham ido pra suas casas, pois era hora do almoço, Claudionor e Bento tomavam a saideira para abrir o apetite.
O velho de bigode aparado que estava de pé, camisa amarela e calça branca jeans era seu Claudionor. Ele usava um chapéu novo marrom e sapatos maiores que seus pés. Tinha a camisa de botões metida dentro da calça, mostrando parte do peito pálido, contrastando com os braços morenos, queimados do sol.
Bento, sentado em um banco ao pé do balcão, relembrava histórias de sua meninice com os dois amigos de infância.
- E como vai a família, Nôzinho, tudo bem por lá? – perguntou Bento.
Claudionor olhou pro nada e fitou os olhos em lugar nenhum. Se estava tudo bem? Quem poderia mensurar? Ele, Nôzinho, herdou o sítio e os animais do pai, e este herdara do pai também, e assim era desde que o primeiro se estabelecera no lugar sem lavrar escritura ou ter pedido permissão. Mas naqueles dias as coisas iam de mal a pior. O país entrava em uma crise sem precedentes. Todos diziam que ter um presidente eleito pelo povo era a melhor solução, mas não para Claudionor. Os militares eram o melhor que se podia desejar, dizia ele. Com eles não havia violência, nem desordem, todos estavam errados em desejar um presidente, e o tempo iria mostrar que ele estava certo.
As finanças descambavam bruscamente. O dinheiro não dava nem para as compras do mês, e se não fosse a aposentadoria da tia Mércia, Seu Claudionor estaria atolado em dívidas. Não havia saída. O certo era vender o sítio. Muitos já estavam fazendo isto, se mudando para a capital ou para as cidades vizinhas. O gado emagrecera copiosamente, o feijão e o milho já não chegavam à fase de colheita. De certo, com as poucas chuvas, tudo se perderia. Mas Claudionor mantinha-se firme.
Mas até mesmo o vigário não estava tão animado. Um homem de fé tornou-se um homem desiludido, capaz de aconselhar a todos que dessem um tempo nas plantações e fossem procurar trabalho em outros lugares. Mas ele não convencia seu Claudionor, homem simples e de pouca leitura, mas um macaco velho. O vigário, por vezes, depois da missa de domingo, conversava com a dona Cora, aconselhando-a a deixar o sítio para ir morar com o filho na capital. Lá teriam melhores condições de vida, trabalhando em casas de família e no ramo da construção. Mas sabia o velho ranzinza que as intenções do padre, apesar de parecerem boas, escondiam um plano diabólico: tomar sua propriedade, onde seria instalada uma igreja muito maior e mais bonita. A crise chegava a todos, menos para o clero, que vivia de dízimos e não pagava impostos.
- Olhe, Cora – falava Claudionor, com o dedo em riste. - Se tu tentar mais uma vez falar de ir pra capital, te largo mulher. Tu não sabe do que sou capaz. Ora essa, deixar meu sítio, onde meu avô e meu pai viveram para ir em uma aventura? De jeito nenhum. E tenho dito!
Mas as coisas só pioravam. As costelas dos animais saltavam para fora, morriam de sede e de fome. Muitos tinham que ser sacrificados.
Conforme os anos se passavam, a aposentadoria da tia Mércia não dava sequer para comprar seus remédios, e a dispensa estava ficando vazia. No entanto, o velho permanecia de pé, inflando os pulmões de orgulho pela terra dos pais. De lá ele não sairia.
- Vão bem – respondeu enfim Claudionor a Bento, antes de pedir mais um trago. Chico bola derramou a dose e disse que era a última.
- Desde quando nega vender cachaça, Chico. Enricou foi? – perguntou Bento, de forma zombeteira.
- Quem dera... – falou Chico. - Mas não vou servir mais nada pra vocês, daqui a pouco eu vou ter que levar os dois pra casa e não tô bem da coluna. Podem terminar essa pinga e ir embora. Faz favor!
- Deixa, Bento. Ele deve ter brigado com a mulher. Quando mulher manda em casa dá nisso!
- E a sua não manda, Nôzinho? – perguntou Bento, com um sorriso matreiro.
- Mando eu em casa, mulher nenhuma bota cabresto em mim. Eu só a deixo ir pra igreja porque é costume antigo, senão nem botava a cara pra rua, nem se atreveria.
- Mas a Cora é mulher direita, ninguém tem nada pra falar dela! – interveio Chico Bola.
- E tem que ser, ora! – resmungou Claudionor. – Eu não tenho mulher pra ser mal falada por aí. Ela que não ande nos trilhos!
- Mas e o padre... anda botando coisas na cabeça dela ainda? – Bento perguntou e franziu a sobrancelha, tomando mais um gole da cachaça.
- Aquele desgraçado... – disse Claudionor, com o dedo em riste. – Tenta mandar na minha mulher, dizendo que a vida aqui já não presta. Falou que ela devia ir pra capital, tentar a sorte por lá. Ora, que atrevido! Na minha mulher mando eu. Ele que não se cuide se um dia não o pego pela batina e o mando de volta de onde veio. Ou mando o meu amigo delegado prender o patife!
- Se aquiete homem – disse Chico Bola. – Está falando de um padre, homem bendito e servo de Deus.
- Servo do diabo – retrucou Claudionor, com o dedo em riste. – Ele é serviço mandado. Onde já viu querer acabar um casamento de tantos anos assim. Pois se Cora acha que vou pra capital, ela que arrume as malas e vá!
Os dois amigos saíram logo depois, “enxotados” por Chico Bola. Seguiram caminhos diferentes no povoado. Claudionor foi a pé, titubeando com as pernas moles pelo caminho. Cumprimentava quem encontrava pela frente e sentia o sol daqueles dias quentes de inverno em sua pele, queimando feito brasa.
A igreja ficava atrás de sua propriedade e assim como a igreja, o sítio ficava num ponto mais elevado que a estrada e, lá de cima, o padre parou de regar as plantas e cumprimentou Seu Claudionor, que lhe respondeu com um grunhido.
Era um sítio de 30 hectares, cheio de bananeiras e pés de coco. Nos tempos das vacas gordas, Seu Claudionor gabava-se das frutas que conseguia cultivar, e dos legumes e verduras que conseguia plantar. Para chegar à casa era preciso passar pelo portão e caminhar vinte metros, chegando a uma residência de tijolos modesta, mas bem planejada, com varanda e plantas das mais diversas penduradas nas vigas ou em caqueiros comprados na feira da cidade, às quais Cora dava toda sua atenção pelas manhãs.
Claudionor retirou os sapatos na soleira, recostando-se para não cair de tão bêbado. O corredor que levava até a cozinha tinha a tinta desbotada e alguns quadros de santos ornamentavam a vista. Uma espingarda estava pendurada na parede. Ouvindo a panela chiar no fogão de lenha, Claudionor gritou:
- Bota meu feijão, mulher, que tô com fome!
E já chega mandando é!? – falou Cora lá de dentro. – Vá tomar um banho primeiro, daqui eu tô sentindo o cheiro da pinga.
- Deixa disso, bota meu dicumê aí! Cadê a Dorinha? Onde ela tá?
- Ela vai comer na casa da Frederica, mais tarde volta!
- Tu sabe que não gosto daquela ordinária. Aquilo não é menina direita! – e foi resmungando e andando até a cozinha, onde se sentou à mesa.
- Deixa de encrencar com a menina, homem. Ela é de família direita.
- Do jeito que se veste – falou alto Claudionor, retirando o chapéu. – Aquilo não é jeito de mulher direita, é jeito de rapariga! E não quero a Dorinha andando com ela.
Cora, uma mulher de quarenta e dois anos, traços finos e olhos grandes, apenas suspirou, pois não adiantava argumentar. Ajeitou o lenço que mantinha na cabeça e serviu o almoço. Cora se acostumara às bebedeiras do marido nos domingos. Até pensava que era coisa normal no povoado, depois de uma semana dura de trabalho. O que ela não se acostumava era com a boca suja do esposo e com suas manias. Ela não gostava do jeito carrancudo e bruto dele. Na juventude isto lá fazia seu coração disparar, mas agora, com filhos e mais madura, não fazia sentido. Esperava demais do homem por quem se apaixonou, e não podia negar o fato de estar cansada e desejosa de que ele fosse mais carinhoso e compreensivo. O sítio não andava bem por causa da chuva e também porque o marido era cabeça dura e não queria vender pra quem pagasse mais, sempre vendia para os mesmos compradores, alguns que já compravam de seu pai. Os tais “compadres” de seu Claudionor. Não podiam pagar o que realmente valia o suor do trabalho deles e era preciso procurar outras pessoas, outros empresários com dinheiro suficiente. Mas isto não era coisa do marido, ele dizia que não iria vender para explorador nenhum, pra ricaço nenhum continuar enchendo o “bucho” com o suor dele.
Por tudo isto, depois de considerar sua vida nos últimos cinco anos, Cora teve um impulso.
Depois de caçar algumas pombinhas, Claudionor não pôs a espingarda na parede do corredor como de costume. Percebeu que Cora estava mais séria naquela tarde e não deu importância. “Mulheres são assim mesmo, depois passa”.
Dorinha ainda não havia chegado da escola e ele foi tomar um banho. Comeu sozinho na cozinha, enquanto a esposa já estava deitada. Claudionor levou a espingarda para o quarto e a pôs na parede, onde armara ganchos para ela. E enquanto Cora mantinha os olhos abertos, o marido roncava com seu sono pesado de sempre. No entanto, depois de algumas horas, Claudionor acordou com um barulho estranho: o som de um carro fechando a porta e ligando os motores, saindo em disparada. De um salto, alcançou a espingarda, apontou-a pela janela e gritou:
- Quem vem lá? Ladrões? Saiam do meu sítio, desgraçados, senão espalho as tripas de vocês pelo chão.
Mas não viu ninguém. O silêncio erguia-se como o sol nascente. Nem mesmo os grilos cricrilavam. Claudionor deu meia volta, resmungou alguma coisa e apoiou a espingarda na parede.
E quando olhou para o outro lado da cama, deu por falta da esposa. Talvez tivesse ido beber um copo d’água. Como ela demorava para voltar, gritou seu nome e não recebeu resposta. Foi até a cozinha e lá não havia ninguém. Entrou no quarto da filha e também não a encontrou. Foi até o quarto da tia Mércia e enfim percebeu que estava sozinho. A ficha caiu como um raio. “Elas haviam fugido! Abandonado o barco”.
Depois de revirar o guarda-roupa, tinha tudo confirmado. “Aqueles demônios! Como puderam? Como tiveram coragem? Eu ainda as terei em minha frente para lhes dar uma lição”, bradava ele enquanto andava pela casa.
Foi ver o vigário naquele dia. Culpava-o pelo infortúnio, pois se ele não tivesse botado coisas na cabeça da mulher, elas não teriam fugido.
Avistando-o no púlpito, sua fúria inflamou-se de tal maneira que sentiu o estomago revirar. “Um lobo passando-se de ovelha. Como um dissimulador poderia estar à frente de uma igreja representando Jesus Cristo? Era um Judas, e não um representante de Deus”.
Ao ver o padre levantar o cálice sagrado, xingou todos os nomes feios que sabia. E antes que ele pudesse alcançar o vigário e dar-lhe umas bofetadas, Chico Bola e dois coroinhas o agarraram.
O homem estava fora de si, insistindo em dar a “lição que o vigário merecia”. Chamaram a polícia e levaram-no imediatamente para a cadeia. Deixaram-no preso por algumas horas. Foi solto por pena, mas também porque o padre retirou as acusações. Um ato nobre, todos podiam pensar, um verdadeiro ato de um servo de Deus, mas não para Seu Claudionor. Ele sabia o que estava acontecendo: sorrateiramente o padre agia para lhe tomar o sítio. Provavelmente lhe pediria para abrir mão da propriedade em troca da liberdade concedida.
Claudionor chegou em casa e rapidamente fechou cada porta e cada janela. Ali ninguém entraria. Pôs a espingarda recostada à cadeira e esperou. Se o vigário viesse, meteria chumbo. Melhor, afastaria todos. Pois todos queriam sua propriedade. O fruto do suor do seu avô e de seu pai. Não iriam tomá-la, por mais que tentassem.
O burburinho nas redondezas dava conta de que Seu Claudionor estava ficando louco. Seus filhos e esposa o haviam abandonado. Os animais morriam de fome e enchiam a vizinhança do cheiro da morte. Tudo ali minguava, e não havia mais esperança para o sítio, nem para Seu Claudionor. Não o viam há alguns dias, e diziam que ele havia morrido, caído ao chão, e lá estava, depois de uma parada cardíaca ou um tiro no próprio peito.
Chico Bola foi vê-lo um dia. Bateu na porta e como não recebeu resposta, foi embora. Bento apareceu no outro dia, bateu várias vezes na porta, olhou em vão pelas brechas e foi embora também.
Claudionor ouvira tudo e não se importava. Pensou em abrir a porta para Bento, mas pensou que talvez o padre estivesse com ele, para aproveitar a oportunidade e invadir a casa. Sentou-se na cadeira de frente à porta e segurou a espingarda. Sua respiração estava apressada e sua expressão era de quem aguardava uma onça faminta entrar de supetão pela porta.
Os olhos dele foram amarelando, assim como a pele. Não comia há dias e sentia-se fraco. Sentado entre os poucos raios de sol que conseguiam entrar pelas frestas da porta, um grão de lucidez brotou naquele cérebro desconfiado. Como lhe doía o estômago, saiu para comprar algo na venda.
Avistando-o na rua, todos correram para vê-lo das portas de suas casas. O povoado não era tão grande, de forma que todos davam conta de todos. Apontavam-no, mexericavam, diziam coisas sobre sua saúde mental, mas ninguém lhe dirigia a palavra. Quando chegou à mercearia do Alcides, falou:
- Bom dia. Dê-me dois pães e um litro de leite, por favor.
- Está tudo bem, seu Claudionor? Como anda a saúde? – perguntou incrédulo o comerciante.
- Ah, Vou bem. Muito bem. Nunca estive melhor. Tenha um bom dia! – e saiu depois de pagar e esnobar o troco. Dirigiu-se novamente a casa, entrou, duas voltas na tranca, beliscou os pães e foi dormir.
Acordou como se nada de estranho nos últimos dias tivesse acontecido. Parecia um novo homem, fez a barba, penteou os cabelos. Resolvera ir até a cidade beber um pouco.
Puxou as rédeas do cavalo e seguiu com a carroça velha pela vizinhança. Cumprimentava a todos, e todos o olhavam de esguelha. Achavam-no diferente, mas ainda um louco.
Chegou à cidade durante a feira e estacionou a carroça num canto, perto de um monte de capim. Ajeitou o chapéu e foi até o bar de seu velho amigo Aderbal. As notícias sobre seu estado de saúde já haviam chegado aos mais distantes. Todos os conhecidos de Claudionor na cidade sabiam de tudo: do abandono, da demência... de tudo, mas sobre isto nada falavam.
Aderbal serviu-lhe uma raiz amarga, tomada de uma só vez. Pediu outra, tomada da mesma forma. Alertaram-no que isto poderia fazer mal, mas o velho não se importava. Pediu outra da mesma dose, e a revirou de uma vez na garganta. Estava zonzo, não conseguia se pôr de pé. De repente fixou o olhar num ponto, ao longe, forçou a vista para enxergar melhor. Deu um grito:
- Ora, seu verme! Deixe-me em paz!
Claudionor ergueu-se como se fosse correr, mas embaralhou as pernas e espatifou-se no chão.
Aderbal o acudiu e o ergueu com alguma dificuldade.
- O que é isto, homem? Levante-se. Não lhe darei mais bebida. Vá para casa.
Porém, Claudionor juntou suas últimas forças e levantou-se. Correu aos tropeços, alcançando uma mulher de longos vestidos marrons e a agredindo com socos e pontapés. A mulher gritava por socorro, até que um açougueiro apareceu e retirou seu Claudionor de cima dela. O velho xingava, esperneava naquela terra dura e empoeirada. Estava louco novamente. Falando coisas sem sentido, chamando de padre a moça, que chorava copiosamente. As pessoas observavam assustadas a cena até que a polícia chegou.
Levaram-no preso. Agora ele ficaria um mês, talvez dois. Mas ficou uma semana. O olhar antes enlouquecido dava lugar à docilidade, à elegantes ares de educação. O delegado teve pena e o soltou novamente. Mas o advertiu que essa fosse a última vez, senão permaneceria preso pelo resto da vida.
Depois de ir buscar a carroça na casa do Aderbal e despedir-se sem delongas, fez o cavalo marchar de volta para casa. Sob a aba do chapéu o olhar soturno, observando o sol que se punha lentamente no horizonte.
Chegou em casa como se fosse encontrar a família de novo: a filha sentada em frente à televisão, a tia fazendo crochê e a esposa fazendo um delicioso pirão de galinha. Abriu a porta num estalo e o sorriso antes amarelado alongou-se de canto a canto das orelhas, como jamais fizera. Mas tudo estava como tivera deixado: a mobília empoeirada, a televisão desligada, o fogão com a tampa abaixada, servindo de vitrine para o crochê da tia, que não estava bordando como de costume.
Todos se foram.
Recostou-se na cadeira, ouvindo o silêncio fúnebre, e uma lágrima escorreu na cara enrugada. Subiu ao quarto, pegou a espingarda e encostou o cano no peito. O disparo acabaria com tudo ali. Os olhos marejaram e ele olhou por um instante pela janela. Sentiu um forte cheiro da morte, vinda de um animal morto recentemente. Queria enterrá-lo, dando-lhe um último adeus, mas permaneceu imóvel com a arma apontada para o próprio peito.
Coralina
A mulher de Seu Claudionor ainda conservava boa parte da beleza de sua juventude. E se isto não fosse suficiente para arrebatar corações, era dona de tratos finos e elegantes. Pudera, nascera em berço de ouro.
Filha de um importante fazendeiro, tivera babás e nada lhe faltava, estudara em escolas particulares e vivera a vida toda sendo servida pelos criados. Mas não pense que isto a fez acomodar-se; ela puxara a mãe. Uma senhora que mesmo tendo vários empregados e cozinheiras, esquentava a barriga ao pé do fogão, fazendo guloseimas e pratos típicos, pois era disto de que mais gostava.
Cora, como a chamavam, adorava andar a cavalo e colher margaridas no campo. Às vezes fugia do olhar atento das babás, escorregando feito manteiga por entre os dedos delas. Escondia-se debaixo de uma arvore, distante da fazenda, e apesar dos bichos peçonhentos que havia, não tinha medo.
Até que o pai resolvera decidir a vida da filha: ou casa, ou vai para colégio interno, já era uma mocinha e deveria tomar cuidado para não “encher o bucho”. Ela não fez nenhuma das duas coisas, fugiu com um rapaz que conhecera em um de seus passeios.
No dia que o conhecera, andava ela a cavalo pelo mato, sentindo o cheiro das flores, reparando nos passarinhos e cantarolando junto com eles. Foi quando um rapaz moreno, alto e armado com um facão, surgiu em sua frente. Ela se desequilibrou e caiu do cavalo, sendo amparada por Claudionor. Trocaram olhares, ele se desculpou estendendo a mão, ela a agarrou e de pronto estavam de pé.
Se encontrariam algumas vezes depois. Cora soubera que ele trabalhava na fazenda vizinha, e naquele dia do encontro ultrapassou os limites da fazenda para pegar um garrote desgarrado. Apaixonaram-se, e como sabiam que o pai dela não gostaria de ver a filha casada com um vaqueiro, resolveram fugir para o sítio dos pais dele, em outra cidade.
Depois de um tempo, ela soubera da morte do pai já arruinado pelas dívidas. Voltou à propriedade com o filho de três anos e Doralice no ventre. A mãe estava doente, faleceria de insuficiência renal alguns meses depois. A mãe dissera que o pai a perdoou, e se foi desejoso por dar-lhe um último abraço antes de morrer, mas o câncer já havia lhe tomado o estômago. A fazenda fora vendida para pagar as dívidas e o que restou para Coralina eram alguns animais e a tia adoentada.
Voltaram para o sítio. Seu Claudionor herdá-lo-ia três anos depois, com o falecimento do pai. Mas já era senhor de si mesmo, e as responsabilidade dos negócios e da lida pouco a pouco o tornaram carrancudo.
Então veio a seca. O filho, agora com 18 anos, já não queria a labuta da roça. Quis ir embora para a capital, mas o pai desaprovava a ideia. Eles tinham um parente lá, o irmão de Seu Claudionor, chamado Francisco, diziam que era um homem pior que o irmão. Mas João Carlos não se incomodava. Se suportou durante tanto tempo o pai, que mal lhe faria o tio?
Apelara para a mãe, pois o pai sempre a ouvia. Mesmo resmungando, ele sempre sedia à doce voz da esposa. E cedeu, mas não à doce voz de Cora, mas às ameaças. João Carlos partiria duas semanas depois, deixando uma mãe vertida em lágrimas, uma irmã desejosa de partir junto e um pai contrariado. Abraçaram-se, beijaram-se e uma lágrima caiu do olho do velho.
Os dias seguintes seriam os mais difíceis. E apesar dos pesares, Coralina não amaldiçoava a escolha que fez quando largou tudo para ir embora da fazenda. “Foi a melhor” dizia ela para si mesma.
Criou os filhos com a educação que recebera, ensinando-lhes como se portar na rua, como comer e falar adequadamente. Era uma mulher boa, e somente o marido não percebia isto, queixava-se todos os dias. Vestia-se com um belo vestido de cetim, mostrava-se para ele, esperava um elogio qualquer, mas era tratada como uma vendedora de alface, dispensada com um gesto das mãos. Ela odiava o homem ranzinza que o marido se tornou. “Ele não era assim”, dizia ela, entre lágrimas. “O que aconteceu? Fui eu que engordei? Ele não gosta mais de mim.” E se deitava aos prantos no colo da tia, sendo afagada pelos cabelos.
Aos domingos ia à igreja rezar. Ouvira do padre diversas vezes que a seca tomava conta das fazendas e das pequenas propriedades. Era aconselhada pelo vigário a dar um tempo na capital, onde havia parentes mais próximos. Resolvera falar com o marido, mas ele repugnava as intenções da esposa, pois jamais abandonaria o lugar que os pais moraram e tanto amavam. Brigavam todos os dias, aos berros, xingando, ameaçando. E os dias seguiam-se sem paz na família.
Enfim, ela decidiu que iria embora. Levaria a filha e a tia para a capital, refugiando-se na casa do filho; João Carlos já estava trabalhando, arrumara esposa e um neto estava a caminho, ele não iria se importar de dar guarida para a família.
Arrumaram um jeito de fugir, seria de madrugada, Frederica iria ajudar. O pai dela tinha carro, uma camionete que serviria para levar as coisas até o ponto de ônibus. A amiga de Dorinha pegou as chaves ainda nas calças do pai embriagado, levantou-se cedo e dirigiu até a casa da amiga.
Em poucos minutos estavam no ponto de ônibus esperando o horário para embarcar. Se tudo ocorresse bem, chegariam em dois dias na capital, mas sem saber ao certo se lá tudo ocorreria bem.
Decepcionou-se. Chegou à casa do filho e percebeu que não era aquilo que ela havia pensado. Encontrou o irmão do marido na sala, deitado no sofá. Por um instante pensou que ele iria mandar todos embora, mas não, ele parecia complacente, até mesmo diferente do marido. Era um homem bonito, alto, forte, viúvo. Um pouco parecido com Claudionor, mas menos maltratado.
Soube então que o filho, apesar de estar trabalhando, ainda não tinha casa. Vivia com a esposa na casa do tio, e isto a incomodou. Passaram-se dois anos desde a partida dele, e ainda não conseguira uma casa para morar com a família.
Dias se passaram. A filha não encontrava emprego, a tia piorava da doença, não saia mais da cadeira de rodas. Para piorar, pouco depois da chegada, a filha adoecera. Parecia doença da alma, ou depressão como aprendera nos livros. A garota recolhia-se no quarto e de lá não saía. Evitava comer ou conversar, estava definhando e não dava conta do porquê. A mãe imaginava que era saudade do sítio, da Frederica, ou até mesmo do pai. Apesar de tudo, era o pai dela.
Esperou por mais alguns dias e resolveu voltar. Quando deu notícia à filha de que regressariam, o olhar da garota se iluminou e rapidamente começou a fazer as malas. Cora despediu-se do filho e da nora, apertou a mão do cunhado, e esperou a filha despedir-se também. Doralice abraçou demoradamente o irmão, deu outro abraço na cunhada e afagou a barriga enorme, falou baixinho alguma coisa para o sobrinho e saiu indiferente ao olhar do tio.
Pararam o carro na porta da casa e desceram as malas. Abriram a cadeira de rodas da tia Mércia, puseram-na sentada e um sorriso junto com lágrimas surgiu no rosto de todas. Havia dias que não viam o sítio. As portas estavam trancadas, e não se ouvia nada vindo de lá de dentro. Supuseram que Claudionor estivesse fora, trabalhando ou na cidade, vendendo e comprando. Arrastaram a tia até o passeio alto, trouxeram as malas e empurraram a porta. Estava trancada. Cora lembrou-se que ainda estava com uma das chaves na bolsa. Pegou-a, girou-a na fechadura e a porta se abriu. Na viagem pensou em tudo que diria ao marido. Poria as cartas na mesa e seria firme dessa vez. Abrindo a porta, no entanto, o que viu era desesperador.
Seu Claudionor estava caído, desfalecido no chão da sala. Cora e a filha correram para erguer o velho, e quando repararam na espingarda caída, o desespero aumentou. “Valei-me Nossa Senhora, o que tu fez homem?” “Levanta papai, não morre, não morre, por favor.” Mas o velho não respondia. Os olhos estavam cerrados, a boca aberta saia uma baba que cheirava mal. Apalparam todo o corpo dele e deram conta de que não havia atirado em si mesmo. Cora checou a pulsação, estava fraca. Ergueram-no.
Puseram-no na carroça do compadre Bento, mas o hospital ficava a uns 10 quilômetros, no centro da cidade. No meio do caminho encontraram a Frederica com o pai na camionete, ofereceram para levar o velho, trocaram-no de veículo e saíram correndo para o hospital.
Tia Mércia
Seu Claudionor permaneceu sete dias no hospital, estava magro e desnutrido. Tomou litros de soro. O médico disse que ele ficaria bem, mas quase morrera pela falta de comida. A esposa permaneceu firme ao seu lado, enquanto a filha ficou em casa, cuidando dos afazeres domésticos e da Tia Mércia, mulher forte, que adoecera muito jovem, vítima de câncer assim como o irmão. Mal curara-se de um câncer, a osteoporose tomou-lhe os ossos, e nos últimos anos agravara-se a doença, jogando-lhe em uma cadeira de rodas.
Lembrou-se certo dia que aconselhara a sobrinha a seguir seu coração quando conheceu o jovem que se tornaria o velho ranzinza, mas que ela adorava. Sim, ela o adorava. Via nele o pai, o avô de Coralina. Discordava de muita coisa, mas jamais punha a colher onde não era chamada. De bom grado ajudava a família que a acolhera com parte da aposentadoria, mas de repente tudo ficou mais difícil. Sentia dores muito fortes, que só paravam com remédios muito caros. Foi então que desejou morrer, não queria passar pelo sofrimento, mais outro não.
O cansaço tomava o corpo e agora a alma. Foi minguando de um jeito que jamais havia pensado. Lembrava-se dos dias na fazenda, brincando com a criançada, gargalhando com as empregadas. E o negro Jorge! Como sentia saudades do negro Jorge! Homem forte, bonito, com a pele reluzindo de tão negra nas tardes de sol, domando os cavalos ou dando comida aos bichos. O amara, amara muito. Principalmente nas noites mais quentes, no meio do mato, embaixo das estrelas e do luar. Eram jovens, excitados e livres.
Mas depois do negro ser mandado embora, pois desconfiara o pai de alguma coisa, Mércia caiu aos prantos, suplicando ao pai misericórdia para Jorge. O pai estava resoluto e inflexível. “Vai ser melhor para ti, minha filha. Aquele negro não era flor que se cheirasse”, dizia o velho, com um certo ar de ressentimento.
Mércia, no entanto, não descansou até descobrir onde Jorge estava. Mandou cartas, que não foram respondidas. Mandava outras, mas nada. Até que houve resposta. Ela abriu a carta impacientemente, desejosa de ler cada palavra de amor, mas não, não eram palavras amorosas, eram de despedida. Jorge contava que tinha esposa antes mesmo de ir trabalhar na fazenda. Tinha filhos e estava feliz. Pedia a ela que não mandasse mais cartas, pois a mulher descobrira tudo e ameaçara separar-se dele. E isto ele não queria, amava a esposa.
Então aos prantos ela jogou-se no colo do pai, soluçando com uma dor terrível que lhe tomava o peito. Foram dias terríveis. Até que ela se acostumou a ausência do amante e fechou-se em uma pesada casca, impenetrável por qualquer homem. Jurou nunca mais amar ninguém, e assim o fez. Dedicou-se à família, ao pai moribundo, depois ao irmão moribundo.
Descobriu o câncer aos trinta. Aos trinta e cinco já havia feito incontáveis tratamentos, diversas sessões de quimioterapia, vários experimentos com medicamentos novos, até vir a cura. Lógico que precisava continuar o tratamento, o câncer é um verme que nos come vivo. Mas estava livre.
Resolveu retomar a própria vida, até mesmo arrumar marido e ter filhos. Mas não teve tempo. Dores em seus ossos começaram a surgir, era o início da osteoporose. Além disso, preocupava-se com a fazenda, que já passava por muitos problemas financeiros, culpa do irmão, que gastava e não investia nos bois, nas plantações e em nada. Fizera negócios absurdos, vendia tudo a preço baixo sem consultar a bolsa e aos especialistas. Era um homem inflexível, mais que o pai, com o detalhe de que não ouvia conselhos. O irmão morreria de câncer também, deixando a tia Mércia com a certeza do mesmo destino.
O pobre Claudionor estava em uma cama de hospital, entre a vida e a morte, pensava ela. Que destino cruel, condenar um homem saudável à morte e ela, adoentada há décadas, a ficar presa naquela cadeira de rodas. A morte que a levasse logo! Para ela morrer significaria a liberdade, e não a condenação.
Recolheu-se ao seu quarto numa noite fria e estrelada, pedindo aos santos que Seu Claudionor melhorasse. Foi uma noite curta, adormecera lentamente, sem sonhos ou inquietações.
Quando Dorinha foi até o quarto para dar-lhe o café da manhã e os remédios, encontrou a tia dormindo em um sono profundo.
Dorinha parou um momento na porta, segurando o prato e o café, esperando que ela sonhasse um pouco mais, talvez com flores, lírios, jardins de lírios, com borboletas coloridas ruflando as asas; quem sabe sonhava com um príncipe vindo ao seu encontro – um príncipe negro, talvez, quem sabe, no entanto da história ela não tivera conhecimento, disso a tia Mércia não falava.
Mas a tia estava num sono mais que profundo. A sobrinha reparou que ela, mesmo de bruços, não comprimia o peito, no balançar comum de quem respirava. Permanecia imóvel, e um arregalar de olhos antecedeu ao grito e ao choro: “A tia Mércia morreu, a tia Mércia se fora durante o sono. Mamãe precisa saber”.
Dorinha mandou recado ao hospital. Cora não chorou, seus olhos apenas marejaram e ela sorriu de leve, lembrando o quanto já chorara pelo marido, e agora vinha a notícia da morte da tia. Embora não quisesse, sabia que a tia desejava morrer, a tia contara a ela quando estavam no quarto, conversando sobre os homens e suas atitudes.
Dizia a tia que Claudionor era um homem bom, só estava passando por algumas dificuldades. As mulheres têm que ter paciência com seus maridos, aconselhava. Os homens são assim mesmo: imponentes, embora frágeis. Há que se ter uma mulher para ampará-los nas horas difíceis. Depois dos conselhos contava-lhe sobre o negro que amou, um homem como nenhum outro, contudo um cafajeste. Mas ainda assim o amava.
Conversavam então sobre a doença, confessava o desejo da morte, lamentava por não ter mais tempo para ficar ao lado dos dois, queria-lhes bem. Mas tia Mércia sabia que não tinha mais tempo.
Arrumaram o enterro para logo. Contaram a Claudionor sobre seu falecimento, marcaram o dia do enterro e ele quis comparecer. Mesmo ainda convalescente insistiu para ir, e o levaram ainda trôpego para o cemitério. Jogaram flores e se despediram da Tia Mércia.
Seguiram de volta para casa, caminhando sobre aquele chão duro e castigado e de que tanto gostavam.
 
Doralice
Quando criança, Doralice, ou Dorinha como a mãe a chamava, desejava ser uma fada, outras vezes uma princesa e quando se aborrecia por alguma coisa, uma feiticeira má, capaz de fazer todos se transformarem em sapos.
Vivia lendo livros sobre jovens lindas que se tornavam princesas da noite para o dia, com um beijo de um príncipe ou por obra de uma fada. Adorava as histórias que a mãe contava ao pé da cama, antes de dormir. Eram histórias sobre menininhas perseguidas por lobos, donzelas em perigo, príncipes maravilhosos montados em cavalos elegantes, cheios de pompa e altivez.
Se imaginava em um castelo, aos gritos, clamando por ajuda. Então um príncipe vinha ao seu encontro, escalava a imensa torre e a trazia a salvo das garras de um dragão ou de uma bruxa horrorosa. Eram dias incríveis, onde o limite das fantasias não tinha fim. Não tinha mesmo, até a adolescência, onde os corações arroubados pela paixão sofrem, e não há príncipes, apenas seres humanos falhos e incompreensíveis.
Aos 12 veio a primeira menstruação. Chegara em casa aos prantos, temendo terem visto alguma coisa no ônibus. Alguma mancha talvez. Sua mãe já havia conversado sobre isso, algum dia chegaria, e ela deveria estar pronta.
Logo se sentiu mulher, dona de si. Apaixonara-se perdidamente por um rapaz, muito bonito e educado. Descobriria mais tarde o que os rapazes fazem quando estão a sós com as moças e não gostou nem um pouco. Afastou a mão boba de um certo pretendente com um safanão, espantando o rapaz para sempre.
Conforme ia crescendo e os hormônios fervilhando dentro de si, incomodava-se com o pai. Era homem bruto, disciplinador, adorava fazer-lhe vergonha na presença dos amigos. Por isso não levava ninguém em casa.
Conhecera Frederica na mesma sala onde estudava. Uma garota que apesar de ser um ano mais velha, estava atrasada nos estudos e para sorte (ou azar) tinha muito a lhe ensinar. No entanto, Doralice tivera boa educação, dada pela mãe. Coisas como se portar, como evitar as mãos bobas dos homens, como dispensar favores cheios de segundas intenções etc.
Era uma garota medrosa também. Quando falavam sobre sexo, suas bochechas avermelhavam, sorria e sorria muito. Frederica era esperta, já havia ido além dos beijos e abraços, e isto ela contava com todos os detalhes. Dorinha apenas ouvia, sorrindo e tapando os ouvidos nas partes mais picantes.
Aos 14 anos sentiu vontade de ir embora de casa: “O papai é bruto, mamãe. Ele não me deixa ver a Frederica, não deixa sair com meus amigos. Eu não gosto dele”. Dizia ela, recostando-se no peito da mãe, antes de ter os cabelos afagados e de levar um beijo de compreensão na testa.
O desejo de ir para a capital aumentou quando o irmão embarcara no ônibus, rumo à casa do tio. Era seu irmão, a protegia e sentiria imensa saudade dele. Prometeu que quando fizesse 18 anos sairia pelo mundo, fazendo o que quisesse, sem o pai para se intrometer. Seria maior de idade e teria sua carta de alforria.
Até que veio aquele dia. A mãe decidira de repente ir embora do sítio. O pai estava enlouquecendo, as coisas não iam bem e ele continuava insistindo naquela vida. Precisavam ir embora, pois não havia mais chuva, nem futuro cuidando de mato e bicho. Dorinha estava feliz. Poderia fazer as próprias escolhas, poderia escolher com quem conversar, quem namorar.
Escolhera seu melhor vestido para a viagem, um que era da mãe quando jovem. Todo detalhado, esverdeado, de um tecido muito gostoso. Ela sentiu-se uma princesa sendo resgata por um príncipe das garras de um monstro.
Chegaram à capital e foram recebidas pelo irmão na rodoviária. Era noite. Abraçaram-se, conversaram e foram para casa do tio. Lá encontraram a mulher do irmão, grávida, de uma barriga enorme para cinco meses. O tio assistia TV no sofá. Era um estranho, muito parecido com o pai, mas um estranho. Cumprimentaram-se.
Tudo aconteceu no quinto dia, depois de jantarem e recolherem-se aos quartos. A mãe passaria a noite no hospital, cuidando da tia Mércia que tivera um mal súbito, devido ao agravamento da doença.
Dorinha havia andado a tarde inteira com a cunhada em busca de emprego, mas a falta de experiência era um problema. Deitaram-se logo, e a casa caiu em um silêncio profundo.
Subitamente Dorinha sentiu um hálito quente na nuca. Mal se virou e sentiu uma mão áspera tapar-lhe a boca. Dorinha arregalou os olhos, estava de camisola na cama, já adormecendo. Seu coração palpitou no peito. Quem será, pensou ela? Então ouviu a voz, a voz ela conhecia: “Calma, menina. Não vai demorar. Fica quieta. Estão na minha casa. Você não quer ter problemas, não é?”. Disse o tio, arquejando com o hálito quente e fedendo a álcool.
Dorinha quis gritar, lutar com o tio, dar-lhe um safanão como fizera com o menino, mas não teve forças. Pensou na tragédia que aconteceria se o irmão soubesse, pensou na cunhada grávida, onde eles ficariam? Na rua, prestes a ter um bebê? E onde ela, a tia e a mãe viveriam? Embaixo da ponte? Voltar para casa, arrasada e com o orgulho ferido? E se o pai não as aceitasse de volta? Calou-se, sentindo o tio apertar-lhe as coxas, depois, contrariamente aos sonhos de adolescente, sentiu a pureza fugir de seu corpo de forma bruta e repugnante.
A manhã que se seguiu foi o início dos piores dias de sua vida. A mãe já estava preocupada. Doralice não comia, nem saia do quarto. Andava com o semblante pesado, depressivo. Coralina interpelava-a sobre o que estava acontecendo, mas ela desconversava. Por fim a mãe julgou que era saudade da antiga vida. Era da boca pra fora que reclamava do pai, pois sempre o amou. Amava o sítio, os amigos, a escola, tudo naquela terra miserável. Sim, era saudade que sentia. Mal sabia a mãe o que acontecera. Se soubesse daria cabo da vida do desgraçado, cunhado ou não, era um monstro. Violentara a própria sobrinha, uma criança ainda, virgem por sinal.
No entanto, a mãe não notara nada. Nem mesmo quando a filha pegara os lençóis sujos de sangue e os pusera para lavar. Talvez fosse o pesado sono de uma noite sem dormir. Talvez porque não esperasse que nada daquilo fosse acontecer. Mas por que ela não notou que a filha se escondia do tio quando este chegava em casa, depois do trabalho? Ou chorosa por que lhe doía o pé da barriga? Como ela não poderia notar esta mudança de comportamento da filha que conhecia tão bem? Nem mesmo para cunhada Dorinha confessava, talvez confessasse para Frederica se estivessem juntas.
Até que veio a notícia que iriam embora. A alegria sentida pela garota foi arrebatadora. Há poucos dias pulava de euforia porque estava indo para a capital, agora gritava de alegria por estar voltando para casa. Uma casa da qual ela nunca deveria ter saído.
Então chegaram. E tudo desmoronou novamente. O pai adoentado, a tia naquela situação. E se não bastasse, encontrou a tia Mércia morta na cama. Que desgraça estava abatendo-se contra aquela família! Que desgraça!
Certo dia, antes da Tia Mércia morrer, a Frederica estivera na casa, ávida pelas novidades. Dorinha contou-lhe tudo. A amiga espantou-se: “Que tio é esse? Como pôde ter feito isto com você?” dizia ela. Frederica aconselhou a amiga a denunciar o estuprador, ao que prontamente ela respondeu: “Não posso. Tudo anda tão difícil, e agora isto”. Mas Frederica dera um prazo: “Se tu não contar, conto eu à tua mãe”.
Decidiu ir à igreja confessar, lá contaria tudo ao vigário, o que ele decidisse, ela faria. Passava muito tempo com o padre a ouvir conselhos e a chorar. O padre sempre aconselhava a contar a verdade, e se tivesse grávida, procurasse criar a criança, Deus não aprovava o aborto.
Depois do enterro da tia Mércia, e da volta do pai convalescido a casa, Dorinha reunia forças para contar o ocorrido. Sentia que não era o certo a fazer, tinha medo. Mas desde sua última conversa com o padre, incomodava-se com algo. A menstruação estava atrasada, enjoos aconteciam frequentemente, coisa que a mãe não via, pois o sítio estava vendendo bem, chovera dois dias na semana e tudo, dizia Cora, voltava à normalidade.
Todavia, embora a mãe estivesse sempre ocupada, diante da inquietação da filha, botou-a contra a parede e exigiu-lhe que contasse tudo. Amargurou-se com as revelações da menina, sentiu fúria dentro de si e queria matar o desgraçado. Contaria tudo para o marido, removeria céus e terra para ver o violador na cadeia.
Chorou então. As lágrimas molhavam o rosto e descia pelo vestido. Mas e se Claudionor pusesse a culpa na filha? E se ele fosse matar o irmão? As coisas iam tão bem apesar da morte da tia. Não teriam mais a aposentadoria para ajudá-los, mas o marido estava lúcido e feliz. Abririam poço, botariam o sítio para dar lucros e tocariam suas vidas. Mas logo agora isto havia de acontecer, por causa de um maldito aproveitador.
Enquanto estavam conversando baixinho no quarto com a porta entreaberta, ouviram um andar apressado na sala. Logo alguém abriu a porta da frente e a fechou atrás de si com força. Em seguida viram pela janela Claudionor descer apressadamente a rua com um embrulho. “Melhor assim, preciso pensar se conto, e se tiver de contar, como fazê-lo?”, pensava Coralina, enquanto suspirava profundamente.
As duas se abraçaram e por uns instantes as lágrimas secaram e o silêncio disse tudo que as palavras não puderam expressar. Então Cora percebeu uma coisa: e se o marido tivesse escutado a conversa? A porta estava entreaberta, ele poderia ter chegado da roça e ouvido tudo. Mas ela não podia imaginar um Claudionor mansinho; provavelmente ele explodiria no mesmo momento.
Cora então acalmou-se e voltaram para o silêncio e para aquele momento que poderia não ter fim.
O vigário
O padre era um homem bom. Não honesto totalmente, mas um homem bom. Adorava um bom whisky, tomava-o servido com pedrinhas de gelo, sentado em sua poltrona macia e reclinável. Adorava relógios de ouro, sapatos de marca, conforto e vinho. A igreja o sustentava, e deveria sustentá-lo em tudo, afinal de contas ele dera toda sua vida para ela, para ser exato, trinta anos. Aconselhava suas ovelhas, ouvia suas lamentações, enfim, era um padre fiel a doutrina.
Tinha as melhores intenções quando aconselhou Coralina a ir embora do sítio, ela era uma mulher amável, atenciosa e ajudava na igreja com seu talento para organizar festas. Sentiria muita falta dela, mas não poderia ser egoísta.
Conhecera a família de Seu Claudionor na igreja. No início o velho era bondoso, compassível e calmo. Mas com o decorrer dos anos sentia-se amargurado, despejando fúria em cima de todos. Compreendia seu comportamento, pois eram dias difíceis. Ele mesmo estava desgostoso com tudo.
A chuvas não vinham, as plantações se perdiam, o gado morria de fome e de sede. A contribuição para a igreja diminuíra consideravelmente e ele tinha que fazer malabarismos com as dívidas, diversas vezes tivera que pedir dinheiro emprestado. Não gostava disso, a bíblia desaprovava, ainda mais se tomasse com juros.
Cultivar as plantas era seu passatempo favorito. Ele adorava margaridas, rosas, dentes-de-leão e as onze horas fáceis de lidar. Cultivava um belo jardim na porta da igreja, colorido e aconchegante. Mas ninguém o tocava, somente ele. Nem mesmo as freiras eram tão delicadas no trato das flores. Ficava horas arrancando erva daninha, afastando as formigas, removendo a terra. Vestia-se com calça e camisa que deixava os braços nus; punha um grande chapéu e mergulhava na solidão do jardim, de cabeça abaixada e escavando a terra para mais uma flor.
Foi num dia desses que recebeu uma nobre visita. Raramente a recebia, apenas em algum domingo, arrastado pela esposa. Sua visita não se confessava, nem contribuía para igreja. Era um homem convicto de que não tinha convicções.
Avistou a visita inesperada subindo pelo caminho, com algo envolto num pano. Levantou os olhos e o reconheceu. Claudionor marchava a passos largos ao seu encontro e o fitava com um olhar diferente, jurava o padre que era de ódio. Mesmo assim sorriu e acenou para o velho, afinal, são todos filhos de Deus.
Seu Claudionor gritou de lá: - Seu maldito. O que você fez? O que você fez com minha filha? O padre ergueu-se com as mãos sujas de terra e deu um passo para trás. E quando vira o que o velho carregava no pano, teve medo. Todo o seu corpo enrijeceu-se de pavor, quis fugir, mas não teve tempo.
Seu Claudionor apontou a arma e disparou. O som da pólvora explodindo ecoou pelo povoado, o tiro acertou o estômago do padre. O vigário gritou e disse: - O que... O que aconteceu? Por que está atirando em mim, Seu Claudionor?
- Ora, não se faça de desentendido, seu aproveitador. Que sua alma queime no inferno.
O padre caiu lentamente, arquejando, lágrimas rolaram de seus olhos. Pôs as mãos na altura do estômago, tentando segurar o sangue que fugia de si. Jamais pensara que um dia aquilo pudesse acontecer. Ser morto de forma brutal, sem ao menos saber a razão. E havia alguma razão? Talvez algumas moedas desviadas ou um litro de whisky que não pagou? Roupas caras em detrimento da alimentação dos pobres? Nada disso era motivo para matá-lo.
Enquanto arrastava-se pelas escadas, imaginou o que acontecera: Seu Claudionor era um homem bruto, resolvia tudo do seu jeito. Não escutava conselhos, nem tampouco dava ouvidos a ninguém quando as coisas não eram de seu agrado. Ele tinha uma birra com o padre, achava que a esposa fugira por causa de seus conselhos. Mas isto não era motivo suficiente, havia duas semanas que as mulheres voltaram para o povoado, era algo maior. Sim, uma gravidez talvez.
O velho descobrira a gravidez da filha e julgava que fosse ele o violador, o maldito homem que tirara a virgindade de uma criança. Sim! O velho estava louco, jamais o padre faria algo desse tipo, apesar de pequenas condutas arbitrarias, era servo de Deus, cuidadoso com suas ovelhas. Tentou se defender, mas a voz não saia. Veio na cabeça como Seu Claudionor descobrira tudo: uma porta entreaberta, revelando o conteúdo de uma conversa. Ou contaram mentiras para o velho? Não, não seriam capazes disto. Doralice não fizera isto, tampouco a mãe. Pela metade Claudionor descobrira tudo e imaginou que fosse ele o violador, e não o irmão. “Ah, se ele soubesse! Riria na sua cara, zombaria de sua atitude impensada”.
O padre se arrastou para dentro da igreja e recostou-se em um dos bancos. A dor invadia seu corpo e não demorou para perder os sentidos. Morreu ali mesmo, rodeado pelo sangue escuro que esvaia de si.
Claudionor foi levado para a delegacia. Não falava nem olhava ninguém nos olhos. O delegado fez diversas perguntas, mas não recebia respostas. Desde que matara, algo mudara dentro dele.
Fora uma freira que o encontrara sentado na escadaria da igreja e perguntou-lhe, sorridente:
- O que faz aí, seu Claudionor? Por que não entra? Está sol aqui.
Mas o homem, imóvel, fitando o chão, respirava forçosamente.
A freira viu a arma e olhou em volta. Um rastro de sangue seguia das escadas até a porta. Levou a mão à boca e dirigiu-se para dentro. O grito seguiu-se ao choro e depois à correria. Em minutos o povoado soubera do ocorrido. O vigário morreu, Claudionor o matara.
Vieram uns homens de jaleco branco ver Seu Claudionor e constataram sua insanidade. Levaram-no para o sanatório e jamais recebeu visita. O sítio foi vendido depois de seis meses. Mandaram dinheiro para João Carlos e alugaram casa. Depois disto, as duas foram para a capital e o ânimo se renovou com a chegada da criança.
Quanto ao sítio, a igreja comprou e o destruiu para construir a mais bela cátedra da cidade, tão bela quanto o padre havia imaginado.
Fim