ESCALA

Nos primeiros minutos da oitava hora, notas musicais ondulam na brisa fria que invade a sala, outrora animada por sorrisos pueris. As mãos delicadas de Candora deslizam sobre o velho piano, tais quais caranguejos enamorados, ora entrelaçadas, ora encostadas.

Ah, tempos idos!

Em sutil Ré menor, empreende-se marcha ré à realidade, estacionando nas reminiscências de um longo passado. Suave toque em Lá maior faz surgir a criança, lá adiante, em vestes brancas, cabelos loiros esvoaçantes, estampando no rosto angelical o sorriso pela janelinha de seus dentes. Após dez segundos de Sol menor, o ser brilhante como o sol se decompõe.

Virada de nota em Mi, lábios trêmulos murmuram: - Mi....Mi.... Mirela!

Vibra Dó maior.

Bem maior é a dó no semblante de Candora pela saudade daquela vida abreviada.

Em Fá sustenido repousam os dedos sobre a tecla negra. “Oh Deus! Sufoca a dor em meu coração. O que disseres...fá-lo-ei em teu louvor”.

Si em semibreve é o arremate final. Caindo em si nas lágrimas, a mulher volta à realidade.

E assim, todos os dias, a mulher retorna ao piano para que num simples acorde...

...ela acorde.

Em si, para si e por si.

Texto escolhido e integrante da Seção Destaque do XXI Prêmio Ideal Clube de Literatura, em 2019. Categoria Conto.

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Texto selecionado e integrante da coletânea Odisseias Literárias IV, do TRT7, em 2022.