Ela não veio para o Natal (um conto de Ana Maria Fonseca Medina)

Como eu mudei, dizia Cristina, conversando com o seu diário! Quão tolas eram as minhas pretensões naquela noite de céu muito estrelado. Se não me engano houve até estrela cadente. Pedi tanta bobagem, coisa de adolescente! A casa estava cheia de crianças que corriam pra lá e pra cá, na ânsia de colocar os sapatinhos nas janelas para o Papai Noel deixar os seus mimos. Os adultos na azáfama dos cumprimentos bebericavam, saboreavam os quitutes tão especiais e tão próprios do ciclo natalino... O sino dava o seu tom de catolicidade provinciana anunciando as últimas chamadas para a Missa do Galo.

Os reisados coloriam as ruas com as suas cores vibrantes, os espelhos que ornavam os chapéus do reisado reluziam num brilho feérico, entoando os seus cantos que pareciam saídos dos baús avoengos. Uma lua teimosa irrompia por trás do bananal da velha prefeitura, prateando o telhado. O trem das dez atrasara, chegara mesmo quase à hora da Missa. Uma nova leva de visitas batera à nossa porta. Saí às pressas para receber meus colegas da capital.

Era a primeira vez que visitavam a casa dos nossos pais. Instalei-os pela sala e até no quarto do oratório. Depois, saímos, fomos à praça da igreja, onde a fé era o que menos contava. Vindos da capital era uma novidade para eles todo aquele cenário humano e urbanístico.

Na praça, o que se via era um público diferente, gente que vinha dos povoados, pessoas outras que só conheciam o divertimento nessa época. O cheiro do acetileno era terrível, misturava-se mesmo com o arroz de galinha servido em porções nos chateaux de palha; roletas, jogos de azar; carrossel, barcos, tudo preparado para festejar o inocente Infante. Em cada rua um presépio e até árvores cheias de algodão como se fosse neve. As bolas de aljofre coloridas davam um quê de civilizado que as revistas FON FON traziam como a última moda em decoração natalina. As casas mais simples montavam suas árvores com bolas de casca de ovo pintadas, velas bruxuleantes derramavam pingos coloridos por sobre a falsa neve.

Da cozinha vinha aquele cheiro forte dos assados. Os doces de caju em compoteiras faziam a decoração com os queijos do reino e os licores de sabor caseiro. A missa do galo encerrada, ouvia-se o foguetório. Todos abençoados, tinha lugar a ceia. Depois, tudo se acalmara, só não o ronco dos velhos da casa que pareciam fazer parte de uma orquestra surrealista. Acometi-me de um certo temor. Que linguagem era aquela e o que eles queriam dizer? Lá fora uns gatos sôfregos emitiam gemidos ensurdecedores, irritando-me.

Despertei do meu sono confuso, mudei de cama. Fiz bonito, pensei!

Havia uma cama patente, cujo colchão cheirava a capim fresco. Ninguém dormia nela, a última pessoa a usá-la falecera havia pouco tempo, era minha avó. Coitadinha, tão inofensiva em vida e certamente, não me abordaria agora que dorme o sono eterno. Mas eu parecia ouvir aquelas medalhinhas todas penduradas e pousadas sobre o peito murcho, tilintarem.

No quarto vizinho uma outra velhinha nonagenária dormia um sono inquieto, parece que sempre estava vigilante, com medo que a morte a surpreendesse, sem o aval do padre mestre, com o seu brevet para a eternidade. Eu sempre lhe perguntava por que a senhora reza pedindo uma boa morte? Peça vida, mas até me arrependia logo depois. Coitada ela era do tempo que não permitia ousadias de jovens com os mais velhos. Juntava as mãozinhas trêmulas e lançava um olhar perdido, como se buscasse o paraíso. Tia Amélia, tia Amélia, cadê você? O seu silêncio era mais significativo do que qualquer explicação.

Nessa noite natalina, percebi que ela estava tentando se levantar, pernas trôpegas e olhos embaçados. As minhas mãos estavam frias de tanto medo de que pudesse lhe acontecer alguma coisa, naquele dia tão festivo. Presságios, não sei. Afinal havia tantos velhos naquela casa, viúvas; celibatárias que recebiam o amparo da nossa família...

Algo estranho tomou conta de mim. A velhinha se assustou, não esperava que àquela hora uma garota estivesse ali para lhe ajudar, porque até mesmo a sua acompanhante não estava, fora liberada para ir às feirinhas. Peguei no seu braço, tentei lhe alcançar o urinol, as pernas duras de artrose. Ela não conseguia sentar-se.Tudo era silêncio ali. Minhas colegas dormiam extenuadas da viagem, ninguém na casa viu nada.

Deixei-a sozinha, para que fizesse as suas necessidades. Era muito pudica. Errou o quarto, encaminhou-se para a cozinha. Voltei para culminar a boa ação. Quando a toquei ela virou-se e o seu longo xale topou nas taças de cristal. Eis o presságio, pensei. Não sei se fui grosseira, a luz era muito fraca. Dos seus olhos neblinados pela catarata, vi descer uma lágrima.

Naqueles frangalhos de cristal estava também um pouco da sua história de fausto.

Aquela foi a sua despedida, nunca mais veio para o Natal........

* Ana Maria Fonseca Medina é o nome da escritora, memorialista, pesquisadora, intelectual da Academia Sergipana de Letras, de renome em nosso estado e premiada em nível nacional. Sob sua autorização, publico o conto Ela não veio para o Natal.

Ana Medina, é tão bom ler um conto de Natal como o seu!

Logo me veio à mente o Machado de Assis: http://www.releituras.com/machadodeassis_soneto.asp com este soneto e com este conto http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/MachadodeAssis/missadogalo.htm

Esse Natal que descreve Machado, e o seu são peças importantes da literatura que eu diria viva.

Como o mundo mudou! Mas, o Natal permanece e, mesmo que aqui, ali e acolá nem sempre impere a harmonia, são essas cenas de dois escritores como vocês que nos despertam, que acordam as nossas mais queridas lembranças.