ACONTECEU NO NATAL
JB Xavier
Você conhece alguém mais, além d’Ele, capaz de escrever certo por linhas tortas? Não? Eu também não conheço. Mas confesso que por muito tempo duvidei disso! Duvidei, de tanto ver a injustiça, a dor e o sofrimento espalharem-se como um câncer. Onde estaria a justiça divina?
Hoje é noite de Natal. Estamos numa grande festa que sempre dou nessa ocasião. É hora de abrirmos os presentes. É o momento mais esperado da noite. Meu filho mais velho, recém casado, chegou da viagem de núpcias especialmente para a festa, juntamente com seus sogros. Meu filho caçula e minha filha estão um pouco chocados, devido aos acontecimentos que lhes vou narrar. Mas estão ansiosos, como todos nós, pelas surpresas que receberemos de presente.
Sou médico. Trato de pessoas, mas aos poucos passei a acreditar mais na medicina do que em qualquer coisa que não possa ser explicada à luz da ciência.
Por conta dessa falta de fé, fui contaminando, sem perceber, toda a minha família, e devido a essa “contaminação”, meus filhos – dois rapazes e uma moça - foram crescendo acreditando que não valia a pena fazer esforços pessoais para melhorar as coisas.
Ela, principalmente, era a mais intolerante com as camadas sociais menos favorecidas. Enviei-a ao Canadá, num intercâmbio cultural, onde ela viveu por um ano. Depois disso, por livre vontade, ela permaneceu no país por mais quatro.
Quando enfim, ela regressou, percebi que nada havia mudado em seu comportamento, ao contrário, o contato com uma cultura mais evoluída acabou por deixa-la ainda mais irascível. Mesmo eu, que nunca fui um sujeito engajado em questões sociais, achava que ela exacerbava de vez em quando em suas opiniões de apoio a certas formas de racismo e à exclusão social. Não vale a pena comentar aqui seus argumentos – todos técnicos e lógicos – com os quais defendia suas idéias.
A verdade é que comecei a me preocupar seriamente com o desenvolvimento de sua personalidade, e no fundo de meu coração, comecei a desejar que algo a fizesse mudar sua visão do mundo. Mas eu sabia também, que nada a faria mudar suas idéias.
Uma das coisas que estava tornando difícil nossa convivência com ela, era a hostilidade que ela demonstrava em relação a uma empregada doméstica que tínhamos. Era uma moça de uns vinte e cinco anos, portanto, cinco apenas, mais velha que minha filha.
Desde que regressara do Canadá, ela já me pedira várias vezes que dispensasse a moça, mas eu jamais faria isso, porque ela estava conosco há um bom tempo e era de inteira confiança.
- Em negros não dá para confiar – repetia ela constantemente – mais cedo ou mais tarde, ela vai aprontar com vocês!
Então, há uma semana do Natal, quando o clima em minha casa era todo de expectativa pela festa que daríamos para toda a família, aconteceu o inevitável: Minha filha desentendeu-se com a empregada. Era por volta de umas oito horas da noite. Estávamos eu, minha esposa e meu filho caçula na sala, tratando dos últimos detalhes da festa natalina, quando ouvimos gritos vindos do quarto dela, no andar superior.
- Eu não sou ladrona! Eu não sou ladrona! Eu não sou ladrona! – gritava a doméstica, chorando, enquanto minha filha a mandava calar a boca em altos brados.
Corremos todos escada acima, e encontramos a moça descendo a escadaria, correndo e chorando. Subimos até o quarto e vimos nossa filha atirando os travesseiros contra a parede, enraivecida, enquanto gritava.
- Ladra, sua burra! É ladra! Nem falar direito você sabe! Você-é-uma-ladra! – gritou ela frisando cada palavra!
Minha esposa tentou acalmá-la, mas ela livrou-se do abraço da mãe e saiu porta afora, ainda gritando.
- Aquela safada roubou meu brinco de brilhantes que ganhei na formatura, no Canadá! Eu o guardava no estojo dentro de meu guarda roupas, e nem o estojo está lá! Já revirei o quarto inteiro! Há uma semana ainda mexi nele. Eu falei para o Zilo que eu usaria os brincos na festa de Natal! Droga! – Xingou ela, enquanto saía batendo violentamente a porta.
“Zilo” é o apelido de meu filho mais velho. Ele é artesão e possui uma pequena loja onde fabrica jóias personalizadas. Ele se casara recentemente e estava viajando. Só voltaria no dia 23 à noite, para a festa.
- Não acredito que isto esteja acontecendo! – disse minha esposa – e na véspera do Natal!
- Duvido que a Zilda tenha feito isso – disse o caçula – nunca sumiu nada aqui de casa...
- Sempre há uma primeira vez – disse eu – demonstrando claramente onde estava a origem do comportamento de minha filha.
O resultado de toda essa confusão foi que ficamos sem doméstica justamente quando mais precisávamos dela. A moça foi embora sem nem mesmo se despedir. Sequer o saldo de seu salário ela reclamou, o que nos induziu a pensar que talvez nossa filha tivesse razão, afinal de contas. Com um par de brincos de diamante para vender nas “bocas”, quem precisa do resto de um mísero salário?
Três dias se passaram depois desse incidente, durante os quais todos nós reviramos a casa inteira à procura dos brincos, sem resultado. Tive que admitir que eles não estavam na casa, e meio a contra gosto, fui forçado a acompanhar minha filha à uma delegacia de polícia, para dar queixa do roubo, já que se tratava de uma peça bastante valiosa.
Eu estava particularmente irritado. Afinal, era dia 23 de dezembro! Eu estava irritado não pelo ódio à empregada que minha filha demonstrava, que aliás, eu considerava um pouco exagerado, especialmente às vésperas do Natal, mas pela perda do “clima” natalino, que se fora de minha casa. Chegamos a considerar o cancelamento da festa, mas decidimos mantê-la para não piorar ainda mais o baixo-astral.
Então, fomos, ela, o caçula e eu à delegacia, para registrar um B. O .
- Ainda não acredito que a Zilda tenha feito isso!
- Você é um ingênuo. Acredita demais nas pessoas. Você não sabe nada ainda da vida – disse minha filha ao irmão – como se seus vinte anos de idade fossem já uma larga experiência de vida. Mas logo, logo, eu saberia que mesmo meus cinqüenta anos de idade – ou se setenta eu tivesse - nada contam como experiência de vida, se passarmos a existência repetindo as mesmas idéias dos vinte anos.
O caminho para o qüinquagésimo DP nos forçava a passar pela Estrada das Lágrimas, e, por conseguinte, praticamente por dentro de Heliópolis, a maior favela paulistana e a maior também da América Latina.
- Detesto esse caminho – disse minha filha – É pobreza por todo lado! Ô, país miserável, esse! Um bando de safados ricos no poder, e o povo morando em tocas, como bichos! Acho que uns duzentos anos de desenvolvimento separam o Brasil do Canadá. E os dois países foram descobertos ao mesmo tempo!
Não comentei nada para não criar polêmica e também porque no fundo eu concordava com tudo! Mas meu filho estava irredutível.
- A Zilda não faria isso!
- Vamos levar a polícia à casa dela – disse minha filha – e aí você vai ver aquela negrinha pilantra entregar o jogo!
Eu ia dizer qualquer coisa, mas o semáforo fechou e tive que parar. À minha frente havia uns cinco carros.
- Lá vem aquele bando de moleques encher o saco, tentando limpar o pára-brisas – disse minha filha.
Mas os moleques ficaram nos carros à nossa frente. Então, um menino negro, de uns oito anos aproximadamente, diferente de todos os outros, saiu de baixo de uma marquise, e, com passos vacilantes, veio até à janela do nosso carro, onde ficou a olhar-me intensamente, em silêncio.
- Não temos dinheiro! - Disse minha filha – Vá embora!
Levantei a mão pedindo a ela que parasse de falar. Algo no garoto me chamara a atenção. Ele não se vestia de andrajos, como os outros meninos. Seus cabelos não estavam sujos, e seus dentes eram bem cuidados e limpos.
- Pai! Não dê trela para essa gente! Ele deve estar nos distraindo, ou talvez marcando nosso carro com chiclete para que outros nos assaltem mais adiante.
O menino continuava a me olhar intensamente, de maneira perturbadora, e de repente, duas lágrimas escorreram de seus olhos.
- O que você quer? – perguntei, enquanto olhava em volta para ver se não haveria assaltantes.
O menino então baixou aquele olhar que me queimava a alma, e entre soluços, disse:
- Eu não sei pedir esmolas. Minha mãe nunca me deixou fazer isso...
- E por que você está fazendo? – Perguntei.
- Por que ela me pediu...ela está doente...não consegue caminhar...e não temos dinheiro nenhum...
Voltei a analisar o garoto. Ele calçava sapatinhos e meias limpas. Sua camiseta trazia uma foto da seleção brasileira de futebol. Essas camisetas não eram baratas, como não era barata, também, a bermuda com grandes bolsos, que ele usava. Sua mãe cuidava bem dele, sem dúvida. Não deviam ser assim tão pobres. Mas a menção à doença despertara meu instinto médico, e este falou mais alto.
O semáforo abriu. Intrigado, eu fiz então uma coisa inexplicável, e disse, sem pensar direito em minhas palavras.
- Entre no carro!
- Pai! Você ficou louco?
- Fique quieta, por favor. Esse garotinho não é um mendigo! Entre! Vamos ver sua mãe!
O garoto enxugou as lágrimas e entrou no carro, sentando-se no banco de trás, ao lado de meu filho.
- Onde você mora? – perguntei.
- Naquela rua – apontou.
- Pai! Isso é um golpe! Vão nos assaltar! – gritou minha filha em pânico.
Por via das dúvidas, passei direto pela rua que o garoto apontou e dei uma longa volta, de várias quadras, chegando ao local onde ele morava pelo outro lado da rua. Sei lá que estranha força me obrigava a correr esse risco desnecessário!
Desembarcamos, eu e meu filho, e seguimos o garotinho rua acima. Minha filha decidira ficar no carro, mas o medo de ficar sozinha foi maior e logo ela estava a caminhar resmungando, ao nosso lado.
O garotinho nos levou por uma servidão, um estreito caminho, que margeando um muro antigo, ligava a rua aos fundos de uma casa velha. Chegamos então a um pequenino átrio sem nenhum atrativo, mas bem cuidado. No canto do terreno, havia uma meia-água feita de tijolos sem argamassa. Uma cozinha e um quartinho, separados por uma cortina de plástico vermelho, era tudo no que consistia a casa. Havia louça suja numa pequenina pia, mas no geral as coisas estavam relativamente em ordem. Eu estava surpreso com a pobreza do local, mas também com o cuidado e a ordem em que as coisas na casa estavam.
- Onde está sua mãe? – perguntei.
Sem responder, o garotinho afastou a cortina e apontou para uma cama, onde dormia uma pessoa, coberta com um grosso cobertor, apesar do calor.
Com o instinto médico à flor da pele, percebi que a coisa era séria. Entrei no quarto acompanhado de minha filha, porque pedi que o caçula ficasse do lado de fora, cuidando do garotinho.
A mulher estava deitada de lado, de costas para nós, e respirava pausadamente, com o rosto iluminado pela luz que vinha da pequenina janela.
Ajudado por minha filha, virei-a sobre a cama. Então minha filha deu um grito e recuou como se tivesse visto um fantasma. A mulher sobre a cama era Zilda, nossa ex-empregada doméstica. Em sua mão direita ainda tinha a gilete com a qual cortara o pulso esquerdo. Arranquei o cobertor de cima dela e vimos a grande mancha de sangue que empapava os lençóis.
- Baixe o banco do carro! - Gritei instantaneamente para meu garoto que esperava fora da casa. – É uma emergência! Ela cortou os pulsos!
Enquanto o caçula disparava para o carro, rasguei em tiras a cortina de plástico, e improvisei um torniquete no braço de Zilda. Ela havia perdido muito sangue e estava pálida. Seu corpo estava flácido e mais frio do que deveria. Essa hipotermia muito me preocupou, pois talvez tivéssemos chegado tarde demais. Tomei-a nos braços e saí correndo da casa, enquanto gritava para minha filha, que estava em choque.
- Faça alguma coisa! Traga o garoto! Vamos para o hospital de São Caetano! É o mais próximo daqui!
Usei minha autoridade médica e meu nome bem conhecido para que ocorresse o pronto atendimento, sem muitas formalidades, e internei Zilda, por minha conta, na UTI do hospital, onde ainda se encontra, graças a Deus, já fora de risco de vida. Quanto ao garotinho, eu o levei para a casa de uma de suas tias, depois de dar, a ele e aos seus primos, muitos presentes.
Minha filha ficou chocada por saber que Zilda atentara contra a própria vida. Na verdade todos nós ficamos chocados ao saber que ela mantinha um filhinho de oito anos! Ela nunca nos dissera nada sobre o assunto, provavelmente por medo de ser demitida. Pobre gente, que, como disse Chico Buarque em sua música, “vai em frente, sem nem ter com quem contar”.
Comovi-me ao ver o esmero com que ela cuidava daquele filho, com os bons princípios que ela lhe transmitia e com o esforço que devia fazer para mantê-lo no caminho correto, mesmo vivendo num gueto de uma favela que é o berçário de futuros delinqüentes.
Minha filha, entretanto, mesmo chocada, não perdoara Zilda pelo roubo. Tentando parecer durona, ela frizou:
- Uma coisa não tem nada a ver com outra. Ladra é ladra e quem tenta se matar mostra que não tem nem moral nem coragem para encarar as conseqüências de seus atos. Vou denunciá-la mesmo assim, porque quero meu brinco de volta!”
O brinco! Nessa confusão até havia me esquecido dele! Nem tentei dissuadi-la de denunciar Zilda, porque eu também tinha dúvidas se isso deveria ser feito ou não.
Em todo caso, concordamos em nada dizer ao Zilo, na noite de Natal, para não estragar mais ainda o “clima” da ocasião e sua felicidade de recém casado. Além disso, eu achei que minha boa ação do Natal já estava feita. Mas sabe-se lá quão poderosos são os mecanismos que entram em funcionamento para ensinar-nos as grandes lições!
Então fui ao piano e comecei a tocar Noite Feliz – uma das duas únicas músicas que sei tocar, a outra é Parabéns a Você – e todo mundo começou a trocar presentes e se abraçar.
Meu caçula foi para o centro da sala e abriu seu presente: A última palavra em vídeo game que eu lhe comprara no exterior. Fez uma festa ao ver o presente.
Na vez de minha filha, ela ergueu o braço, tendo um pequeno embrulho na mão.
- Para os recém casados! - Disse ela.
A esposa de Zilo abriu o presente. Era um lindo camafeu de madrepérola e marfim feito por uma tribo de índios do Canadá. Meu filhão fez a maior festa, e disse, dirigindo-se à irmã:
- Rebusquei minha loja, mas o que se pode dar a uma “jóia” como você? Fiz o que foi possível. Veja se gosta.
Isto dizendo, ele lhe entregou uma linda caixa de onde minha filha retirou uma pulseira lindíssima, uma gargantilha com três pequenos brilhantes e...os brincos desaparecidos! Todas as peças formavam um belíssimo conjunto, umas com as outras.
- Desculpe por ter levado seus brincos emprestados por alguns dias e por não ter conseguido recoloca-los no lugar a tempo. Tinha que ser uma surpresa, por isso não lhe disse nada. Eu precisava deles para fazer as outras peças......Espero que você não tenha ficado chateada por isso.
JB Xavier
Você conhece alguém mais, além d’Ele, capaz de escrever certo por linhas tortas? Não? Eu também não conheço. Mas confesso que por muito tempo duvidei disso! Duvidei, de tanto ver a injustiça, a dor e o sofrimento espalharem-se como um câncer. Onde estaria a justiça divina?
Hoje é noite de Natal. Estamos numa grande festa que sempre dou nessa ocasião. É hora de abrirmos os presentes. É o momento mais esperado da noite. Meu filho mais velho, recém casado, chegou da viagem de núpcias especialmente para a festa, juntamente com seus sogros. Meu filho caçula e minha filha estão um pouco chocados, devido aos acontecimentos que lhes vou narrar. Mas estão ansiosos, como todos nós, pelas surpresas que receberemos de presente.
Sou médico. Trato de pessoas, mas aos poucos passei a acreditar mais na medicina do que em qualquer coisa que não possa ser explicada à luz da ciência.
Por conta dessa falta de fé, fui contaminando, sem perceber, toda a minha família, e devido a essa “contaminação”, meus filhos – dois rapazes e uma moça - foram crescendo acreditando que não valia a pena fazer esforços pessoais para melhorar as coisas.
Ela, principalmente, era a mais intolerante com as camadas sociais menos favorecidas. Enviei-a ao Canadá, num intercâmbio cultural, onde ela viveu por um ano. Depois disso, por livre vontade, ela permaneceu no país por mais quatro.
Quando enfim, ela regressou, percebi que nada havia mudado em seu comportamento, ao contrário, o contato com uma cultura mais evoluída acabou por deixa-la ainda mais irascível. Mesmo eu, que nunca fui um sujeito engajado em questões sociais, achava que ela exacerbava de vez em quando em suas opiniões de apoio a certas formas de racismo e à exclusão social. Não vale a pena comentar aqui seus argumentos – todos técnicos e lógicos – com os quais defendia suas idéias.
A verdade é que comecei a me preocupar seriamente com o desenvolvimento de sua personalidade, e no fundo de meu coração, comecei a desejar que algo a fizesse mudar sua visão do mundo. Mas eu sabia também, que nada a faria mudar suas idéias.
Uma das coisas que estava tornando difícil nossa convivência com ela, era a hostilidade que ela demonstrava em relação a uma empregada doméstica que tínhamos. Era uma moça de uns vinte e cinco anos, portanto, cinco apenas, mais velha que minha filha.
Desde que regressara do Canadá, ela já me pedira várias vezes que dispensasse a moça, mas eu jamais faria isso, porque ela estava conosco há um bom tempo e era de inteira confiança.
- Em negros não dá para confiar – repetia ela constantemente – mais cedo ou mais tarde, ela vai aprontar com vocês!
Então, há uma semana do Natal, quando o clima em minha casa era todo de expectativa pela festa que daríamos para toda a família, aconteceu o inevitável: Minha filha desentendeu-se com a empregada. Era por volta de umas oito horas da noite. Estávamos eu, minha esposa e meu filho caçula na sala, tratando dos últimos detalhes da festa natalina, quando ouvimos gritos vindos do quarto dela, no andar superior.
- Eu não sou ladrona! Eu não sou ladrona! Eu não sou ladrona! – gritava a doméstica, chorando, enquanto minha filha a mandava calar a boca em altos brados.
Corremos todos escada acima, e encontramos a moça descendo a escadaria, correndo e chorando. Subimos até o quarto e vimos nossa filha atirando os travesseiros contra a parede, enraivecida, enquanto gritava.
- Ladra, sua burra! É ladra! Nem falar direito você sabe! Você-é-uma-ladra! – gritou ela frisando cada palavra!
Minha esposa tentou acalmá-la, mas ela livrou-se do abraço da mãe e saiu porta afora, ainda gritando.
- Aquela safada roubou meu brinco de brilhantes que ganhei na formatura, no Canadá! Eu o guardava no estojo dentro de meu guarda roupas, e nem o estojo está lá! Já revirei o quarto inteiro! Há uma semana ainda mexi nele. Eu falei para o Zilo que eu usaria os brincos na festa de Natal! Droga! – Xingou ela, enquanto saía batendo violentamente a porta.
“Zilo” é o apelido de meu filho mais velho. Ele é artesão e possui uma pequena loja onde fabrica jóias personalizadas. Ele se casara recentemente e estava viajando. Só voltaria no dia 23 à noite, para a festa.
- Não acredito que isto esteja acontecendo! – disse minha esposa – e na véspera do Natal!
- Duvido que a Zilda tenha feito isso – disse o caçula – nunca sumiu nada aqui de casa...
- Sempre há uma primeira vez – disse eu – demonstrando claramente onde estava a origem do comportamento de minha filha.
O resultado de toda essa confusão foi que ficamos sem doméstica justamente quando mais precisávamos dela. A moça foi embora sem nem mesmo se despedir. Sequer o saldo de seu salário ela reclamou, o que nos induziu a pensar que talvez nossa filha tivesse razão, afinal de contas. Com um par de brincos de diamante para vender nas “bocas”, quem precisa do resto de um mísero salário?
Três dias se passaram depois desse incidente, durante os quais todos nós reviramos a casa inteira à procura dos brincos, sem resultado. Tive que admitir que eles não estavam na casa, e meio a contra gosto, fui forçado a acompanhar minha filha à uma delegacia de polícia, para dar queixa do roubo, já que se tratava de uma peça bastante valiosa.
Eu estava particularmente irritado. Afinal, era dia 23 de dezembro! Eu estava irritado não pelo ódio à empregada que minha filha demonstrava, que aliás, eu considerava um pouco exagerado, especialmente às vésperas do Natal, mas pela perda do “clima” natalino, que se fora de minha casa. Chegamos a considerar o cancelamento da festa, mas decidimos mantê-la para não piorar ainda mais o baixo-astral.
Então, fomos, ela, o caçula e eu à delegacia, para registrar um B. O .
- Ainda não acredito que a Zilda tenha feito isso!
- Você é um ingênuo. Acredita demais nas pessoas. Você não sabe nada ainda da vida – disse minha filha ao irmão – como se seus vinte anos de idade fossem já uma larga experiência de vida. Mas logo, logo, eu saberia que mesmo meus cinqüenta anos de idade – ou se setenta eu tivesse - nada contam como experiência de vida, se passarmos a existência repetindo as mesmas idéias dos vinte anos.
O caminho para o qüinquagésimo DP nos forçava a passar pela Estrada das Lágrimas, e, por conseguinte, praticamente por dentro de Heliópolis, a maior favela paulistana e a maior também da América Latina.
- Detesto esse caminho – disse minha filha – É pobreza por todo lado! Ô, país miserável, esse! Um bando de safados ricos no poder, e o povo morando em tocas, como bichos! Acho que uns duzentos anos de desenvolvimento separam o Brasil do Canadá. E os dois países foram descobertos ao mesmo tempo!
Não comentei nada para não criar polêmica e também porque no fundo eu concordava com tudo! Mas meu filho estava irredutível.
- A Zilda não faria isso!
- Vamos levar a polícia à casa dela – disse minha filha – e aí você vai ver aquela negrinha pilantra entregar o jogo!
Eu ia dizer qualquer coisa, mas o semáforo fechou e tive que parar. À minha frente havia uns cinco carros.
- Lá vem aquele bando de moleques encher o saco, tentando limpar o pára-brisas – disse minha filha.
Mas os moleques ficaram nos carros à nossa frente. Então, um menino negro, de uns oito anos aproximadamente, diferente de todos os outros, saiu de baixo de uma marquise, e, com passos vacilantes, veio até à janela do nosso carro, onde ficou a olhar-me intensamente, em silêncio.
- Não temos dinheiro! - Disse minha filha – Vá embora!
Levantei a mão pedindo a ela que parasse de falar. Algo no garoto me chamara a atenção. Ele não se vestia de andrajos, como os outros meninos. Seus cabelos não estavam sujos, e seus dentes eram bem cuidados e limpos.
- Pai! Não dê trela para essa gente! Ele deve estar nos distraindo, ou talvez marcando nosso carro com chiclete para que outros nos assaltem mais adiante.
O menino continuava a me olhar intensamente, de maneira perturbadora, e de repente, duas lágrimas escorreram de seus olhos.
- O que você quer? – perguntei, enquanto olhava em volta para ver se não haveria assaltantes.
O menino então baixou aquele olhar que me queimava a alma, e entre soluços, disse:
- Eu não sei pedir esmolas. Minha mãe nunca me deixou fazer isso...
- E por que você está fazendo? – Perguntei.
- Por que ela me pediu...ela está doente...não consegue caminhar...e não temos dinheiro nenhum...
Voltei a analisar o garoto. Ele calçava sapatinhos e meias limpas. Sua camiseta trazia uma foto da seleção brasileira de futebol. Essas camisetas não eram baratas, como não era barata, também, a bermuda com grandes bolsos, que ele usava. Sua mãe cuidava bem dele, sem dúvida. Não deviam ser assim tão pobres. Mas a menção à doença despertara meu instinto médico, e este falou mais alto.
O semáforo abriu. Intrigado, eu fiz então uma coisa inexplicável, e disse, sem pensar direito em minhas palavras.
- Entre no carro!
- Pai! Você ficou louco?
- Fique quieta, por favor. Esse garotinho não é um mendigo! Entre! Vamos ver sua mãe!
O garoto enxugou as lágrimas e entrou no carro, sentando-se no banco de trás, ao lado de meu filho.
- Onde você mora? – perguntei.
- Naquela rua – apontou.
- Pai! Isso é um golpe! Vão nos assaltar! – gritou minha filha em pânico.
Por via das dúvidas, passei direto pela rua que o garoto apontou e dei uma longa volta, de várias quadras, chegando ao local onde ele morava pelo outro lado da rua. Sei lá que estranha força me obrigava a correr esse risco desnecessário!
Desembarcamos, eu e meu filho, e seguimos o garotinho rua acima. Minha filha decidira ficar no carro, mas o medo de ficar sozinha foi maior e logo ela estava a caminhar resmungando, ao nosso lado.
O garotinho nos levou por uma servidão, um estreito caminho, que margeando um muro antigo, ligava a rua aos fundos de uma casa velha. Chegamos então a um pequenino átrio sem nenhum atrativo, mas bem cuidado. No canto do terreno, havia uma meia-água feita de tijolos sem argamassa. Uma cozinha e um quartinho, separados por uma cortina de plástico vermelho, era tudo no que consistia a casa. Havia louça suja numa pequenina pia, mas no geral as coisas estavam relativamente em ordem. Eu estava surpreso com a pobreza do local, mas também com o cuidado e a ordem em que as coisas na casa estavam.
- Onde está sua mãe? – perguntei.
Sem responder, o garotinho afastou a cortina e apontou para uma cama, onde dormia uma pessoa, coberta com um grosso cobertor, apesar do calor.
Com o instinto médico à flor da pele, percebi que a coisa era séria. Entrei no quarto acompanhado de minha filha, porque pedi que o caçula ficasse do lado de fora, cuidando do garotinho.
A mulher estava deitada de lado, de costas para nós, e respirava pausadamente, com o rosto iluminado pela luz que vinha da pequenina janela.
Ajudado por minha filha, virei-a sobre a cama. Então minha filha deu um grito e recuou como se tivesse visto um fantasma. A mulher sobre a cama era Zilda, nossa ex-empregada doméstica. Em sua mão direita ainda tinha a gilete com a qual cortara o pulso esquerdo. Arranquei o cobertor de cima dela e vimos a grande mancha de sangue que empapava os lençóis.
- Baixe o banco do carro! - Gritei instantaneamente para meu garoto que esperava fora da casa. – É uma emergência! Ela cortou os pulsos!
Enquanto o caçula disparava para o carro, rasguei em tiras a cortina de plástico, e improvisei um torniquete no braço de Zilda. Ela havia perdido muito sangue e estava pálida. Seu corpo estava flácido e mais frio do que deveria. Essa hipotermia muito me preocupou, pois talvez tivéssemos chegado tarde demais. Tomei-a nos braços e saí correndo da casa, enquanto gritava para minha filha, que estava em choque.
- Faça alguma coisa! Traga o garoto! Vamos para o hospital de São Caetano! É o mais próximo daqui!
Usei minha autoridade médica e meu nome bem conhecido para que ocorresse o pronto atendimento, sem muitas formalidades, e internei Zilda, por minha conta, na UTI do hospital, onde ainda se encontra, graças a Deus, já fora de risco de vida. Quanto ao garotinho, eu o levei para a casa de uma de suas tias, depois de dar, a ele e aos seus primos, muitos presentes.
Minha filha ficou chocada por saber que Zilda atentara contra a própria vida. Na verdade todos nós ficamos chocados ao saber que ela mantinha um filhinho de oito anos! Ela nunca nos dissera nada sobre o assunto, provavelmente por medo de ser demitida. Pobre gente, que, como disse Chico Buarque em sua música, “vai em frente, sem nem ter com quem contar”.
Comovi-me ao ver o esmero com que ela cuidava daquele filho, com os bons princípios que ela lhe transmitia e com o esforço que devia fazer para mantê-lo no caminho correto, mesmo vivendo num gueto de uma favela que é o berçário de futuros delinqüentes.
Minha filha, entretanto, mesmo chocada, não perdoara Zilda pelo roubo. Tentando parecer durona, ela frizou:
- Uma coisa não tem nada a ver com outra. Ladra é ladra e quem tenta se matar mostra que não tem nem moral nem coragem para encarar as conseqüências de seus atos. Vou denunciá-la mesmo assim, porque quero meu brinco de volta!”
O brinco! Nessa confusão até havia me esquecido dele! Nem tentei dissuadi-la de denunciar Zilda, porque eu também tinha dúvidas se isso deveria ser feito ou não.
Em todo caso, concordamos em nada dizer ao Zilo, na noite de Natal, para não estragar mais ainda o “clima” da ocasião e sua felicidade de recém casado. Além disso, eu achei que minha boa ação do Natal já estava feita. Mas sabe-se lá quão poderosos são os mecanismos que entram em funcionamento para ensinar-nos as grandes lições!
Então fui ao piano e comecei a tocar Noite Feliz – uma das duas únicas músicas que sei tocar, a outra é Parabéns a Você – e todo mundo começou a trocar presentes e se abraçar.
Meu caçula foi para o centro da sala e abriu seu presente: A última palavra em vídeo game que eu lhe comprara no exterior. Fez uma festa ao ver o presente.
Na vez de minha filha, ela ergueu o braço, tendo um pequeno embrulho na mão.
- Para os recém casados! - Disse ela.
A esposa de Zilo abriu o presente. Era um lindo camafeu de madrepérola e marfim feito por uma tribo de índios do Canadá. Meu filhão fez a maior festa, e disse, dirigindo-se à irmã:
- Rebusquei minha loja, mas o que se pode dar a uma “jóia” como você? Fiz o que foi possível. Veja se gosta.
Isto dizendo, ele lhe entregou uma linda caixa de onde minha filha retirou uma pulseira lindíssima, uma gargantilha com três pequenos brilhantes e...os brincos desaparecidos! Todas as peças formavam um belíssimo conjunto, umas com as outras.
- Desculpe por ter levado seus brincos emprestados por alguns dias e por não ter conseguido recoloca-los no lugar a tempo. Tinha que ser uma surpresa, por isso não lhe disse nada. Eu precisava deles para fazer as outras peças......Espero que você não tenha ficado chateada por isso.