As ninfas do Rio Lava-tudo
Na noite estrelada de inverno, a lua cheia com seu olho onipresente acompanhava os parcos movimentos naquele trecho que liga São Joaquim a Urubici. Uma vaca ou outra amassando o pasto nas encostas, aves noturnas em vôos calculados, alguns peões colhendo erva cidreira para o sono, outros seguindo picadas em direção ao rio para as terapias pesqueiras, cavaleiros aqui e acolá chegando com mulas carregadas. Desviou o olho, a lua, para observar o movimento de um ônibus saindo de São Joaquim, agarrado na estradinha de chão feito um tatú puxado por dois fachos de luz. Lá do alto não dava para ver que no interior do Ford 1958 um pequeno mundo de jovens vibrava em quente alegria por conta do fogo paulista e da música dos Beatles, um conjunto novo que agradou muito a juventude joaquinense. A pedido de Dafne, eles tocavam e cantavam agora, animadíssimos, all my loving. Dafne era uma moça morena, bonitinha e inteligente que trabalhava na loja de tecidos e armarinhos do seu Darci e uma das organizadoras da excursão para o baile daquela noite na Sociedade Recreativa Urubiciense. Quando chegaram, o motorista teve de avisar bem alto: "chegamos!" tal o entusiasmo dos passageiros. Ocuparam cinco mesas perto da orquestra e de frente para a pista de dança. Os rapazes pediram e o garçom trouxe dois litros de uísque, várias garrafas de coca e de guaraná e um prato grande de salgadinhos para cada mesa. Quem abrilhantava o baile aquela noite era o conjunto Pedacinho do Céu de São Joaquim, deixando a turma ainda mais a vontade, pois quem de São Quincas não era amigo dos exímios e simpáticos músicos?
Um rapaz gordinho de Urubici tirou a Dafne para dançar, mas a parelha não deu muito certo, ele era meio durão, não tinha molejo. Depois chegou outro mais novo, muito tímido, decerto querendo dançar num baile pela primeira vez. Dafne facilitou as coisas para ele. Quando sentou de novo e estava tomando guaraná e comendo uns pasteizinhos de queijo, deu de cara com o Tibiriçá na sua frente. Sem pedir para dançar, senhor de si ele apenas ergueu o braço e apontou para o salão, como se tivesse fazendo um favor à moça. Tibiriçá era alfaiate na Esquina e conhecido na praça por ser grande dançador, o melhor. Apesar de um pouco feio, as mulheres adoravam dançar com ele. Dafne, que também não ficava para trás nesta arte, ficou encantada e logo os dois rodopiavam pelo salão em sintonia perfeita com o tango La Cumparsita. Fizeram tanto sucesso que logo estavam dançando sozinhos sob aplausos de ampla platéia. Dafne voltou à mesa cansadíssima, abriu uma bolsa bege e pegou o leque. Enquanto se abanava foi surpreendida por uma voz feminina muito perto dela "como você dança bem, tanta graça, parece uma bailarina profissional"! Virou para trás e se deparou com uma jovem sentada na mesa ao lado bem às suas costas. Agradeceu muito, mas minimizou o elogio "que nada você que é muito generosa etc. etc.." Egina, o nome da moça de cabelos longos e castanhos, olhos muito negros, trabalhava com o pai no cartório de Urubici. A afinidade foi total e imediata entre aquelas duas. Como se a vida tivesse sido uma espera até aquele encontro das almas gêmeas. Conversaram sem parar até o final do baile, recusando com pífias desculpas todos os pedidos de dança. Passaram vários assuntos, a música dos Beatles, a hipocrisia da sociedade, as angústias, os bons e os maus afetos, a bíblia, a natureza, as preferências, da comida - e ambas não comiam carne nem bebiam álcool - às roupas. Ao final do baile, o dia amanhecendo, as amigas se despediram emocionadas, sem antes anotar endereços para troca de cartas. A conversa continuou à distância, não havia ônibus que não levasse para cá e para lá, uma cartinha delas. A idéia de morarem juntas partiu de Egina e ganhou todo o apoio de Dafne. A moça de Urubici recebeu de herança um pequeno sítio na beira do rio Lava-tudo com poucas benfeitorias, uma casa de madeira pequena, um galpão também modesto, dois cavalos, uma mula, três vacas de cria, galinhas, um pomar de frutas. O ideal para o estilo de vida desejado por ambas, simples, longe das cidades, no seio da natureza. Não demorou muitos dias até Dafne descer do ônibus em Pericó num final de tarde, com duas malas pequenas e um pala nas costas. Egina a aguardava com um cavalo a mais e mula de cargueiro. Compraram na venda algumas provisões como açúcar grosso, farinhas, sal e seguiram o caminho de doze quilômetros até a beira do rio. Estavam tão felizes e eufóricas que naquela noite não fizeram outra coisa senão conversar, rir muito e caminhar na beira do mato ouvindo o murmúrio misterioso do velho Lava-tudo. "Este rio agora é nosso pai", brincou Dafne. Acordaram muito cedo no outro dia e planejaram as tarefas do dia: tratar as galinhas, tirar leite, plantar, arrumar e cuidar da casa. Aos poucos estabeleceram uma rotina, reservando a noite para escrever alguma poesia e ler e comentar dois livros. A bíblia, predileção de Egina e Da Natureza do poeta romano Lucrécio que acompanhava Dafne. Conciliavam assim os mundos da alma e da natureza e viviam a porção de felicidade que cabe nos humanos.
Uma manhã enquanto transplantavam brotos de alface na horta viram, espantadas, um caboclo se aproximando coberto em andrajos, tez engelhada, tão velho quanto sete gerações. Andava devagar, titubeante, olhando para cima e para os lados, parecia cego. "Bom dia senhor, em que podemos ajudá-lo?" perguntou Egina comiserada pela figura. O velho quebrou o silêncio de alguns segundos em voz gutural "eu, Tirésias, embora cego posso ver, eu Tirésias de tetas enrugadas, percebo a cena e antevejo o resto, eu Tirésias, que já sofrera tudo e me sentei ao pé dos muros de Tebas e caminhei por entre os mortos mais sepultos....". "Além de cego é louco" imaginaram as duas. Perceberam que o velho estava prestes a vaticinar, mas não estavam interessadas em antecipar nenhum futuro. Ao invés disso o convidaram para entrar, prepararam uma refeição a base de cuscuz e doce de gila e passaram a tarde em conversas leves, comezinhas, ficaram impressionadas de como aquele mulato conhecia o íntimo das mulheres. Na hora violácea, no momento crepuscular, o velho saiu como chegou, vagaroso e titubeande no caminho para Pericó.
Após acompanharem Tirésias desaparecer no horizonte, Dafne e Egina tiveram a mesma idéia, começaram ambas a tirar a roupa e, nuas em pelo, saíram em direção ao rio, cruzaram o mato e mergulharam. Sentiram o gosto da liberdade antes da palavra existir. Depois ficaram sentadas um bom tempo na margem penteando os cabelos, ouvindo os pássaros, vendo os peixes pularem alegres. Daquele dia em diante, sempre na caída da tarde, as duas evas repetiam o ritual. Por acaso, um pescador viu a cena. A notícia se espalhou como pólvora e logo os poços ao redor se tornaram os mais piscosos da região. Ficavam de tocaia para admirar a nudez das moças.
A história chegou ao ouvido de Dudu Mendonça, um fazendeiro folgazão e ilustrado que revezava os meses entre a Barrinha (nome da fazenda próxima à casa de Egina) e Porto Alegre. Passava os dias sentado numa cadeira de balanço na cozinha de chão, lendo em latim o livro Metamorfoses, de Ovídio. Às visitas, Dudu Mendonça, fazia questão de mostrar sua descoberta científica. "Os cavalos entendem latim" dizia ele dando gargalhadas. "Prestem atenção" e da janela que dava para o galpão lia bem alto um trecho qualquer do livro "siqua fides neque ficta mihi nuns gloria voce..." e de fato o que sucedia espantava os incrédulos. Os cavalos reagiam de forma variada, ou erguiam as patas, ou tremiam o pescoço, relinchavam, um burrinchó chegava a mostrar os dentes.
Após ouvir de o relato das moças, Dudu Mendonça não pensou duas vezes e sentenciou: "são as ninfas do rio Lava-tudo". A frase pegou, apesar de ninguém daquele Pericó profundo saber o significado de "ninfa".
Ao desconfiar de espreitadores indesejados, Egina e Dafne suspenderam desgostosas os banhos naturais no rio. Mas era tarde demais, o assunto havia chegado às mulheres dos pescadores, apareceu no Pericó e logo em São Joaquim. Um comitê de "honradas mulheres" chegou a publicar um manifesto no jornal O Mural, "condenando, em nome dos bons costumes da família joaquinense e blá blá blá...a atitude indecorosa e aviltante das ninfas do rio Lava-tudo...". Não fosse a intervenção firme de um juiz, o Dr. Telmo Inácio, e manifestações da juventude em favor das ninfas, o caso teria parado na justiça.
Após estes episódios Egina e Dafne desapareceram. Apesar de diligências não foram encontradas em parte alguma. Para alguns teriam ido embora para bem longe com dois sacos de tristeza nas costas. Outros, inclusive os investigadores policiais, imaginavam o pior. As duas teriam sido vistas pela última vez fugindo da perseguição de dois bandidos, os filhos de Apolodoro. Outra era a versão de Dudu Mendonça, Tirésias, o infalível, havia lhe contado. Elas teriam sim fugido dos malvados, mas a metamorfose evitou o ato criminoso. Ao Chegarem esbaforidas na beira do Lava-tudo ficaram de joelhos e fizeram a prece:
Ajuda-nos, ó pai! Se como os rios, tens poder divino, destroça a nossa aparência, pelas quais provocamos tanto fascínio, mudando o que nos faz com que sejamos feridas.
Apenas terminaram a prece, continua o relato, um pesado torpor ocupou-lhes os membros. Seus seios delicados revestiram-se de fina casca, os cabelos cresceram em folhagem, em ramos os braços. Os pés, há pouco tão velozes, se estenderam em preguiçosas raízes.
Agora, quando as visitas aparecem, Dudu Mendonça além de exibir os cavalos reagindo ao latim, desce com elas até a margem do rio para mostrar dois imensos loureiros. "Este é Egina", diz pousando a mão no tronco, "este outro é Dafne". "Em algumas noites", revela em segredo, "elas fazem a metamorfose inversa e voltam a se encontrar na forma inferior, a humana. Se abraçam, tomam banho, e conversam até o primeiro pássaro cantar".