A ceguinha
Dona Carlota teve o ímpeto de pegar da vassoura – e olhe que bastava pegar uma na entrada do mercado pertinho do qual estava – e desferir dois golpes, que sangrariam cabeças. A do marido, aquele sacripanta, e a da loira estonteante, nova, formosa, talvez linda, porque ela só a viu de costas. Conteve-se, refreou-se, vendo o casal de braços dados atravessar a rua, bem pertinho dela, ao alcance do seu desatino. Olhou o pouco que levava nas sacolas, respirou fundo, engoliu um xingamento e foi a pé para casa, onde a filhinha maior cuidava dos dois irmãos pequenos. Era de tarde e o malvado só chegaria tarde da noite , certamente exausto dos serões que fazia. Tantas vezes chegava tarde e, sempre – hábil nas palavras e na desfaçatez – dava uma explicação que ela não contestava. Vida que seguia e ela amava aquela peste! Mas, desta vez não, faria um sermão, assim calma, calma e triste e queria ver direitinho aonde o homem ia chegar com suas mentiras. O melhor seria mandá-lo ao inferno. O contabilista, como esperado, chegou tarde, e Dona Carlota partiu para o ataque: - Senhor Nivaldo, venha aqui. - Ele a seguiu em direção à cozinha. Ela, calma, como planejara, abriu a geladeira, que estava quase vazia, e depois lhe mostrou as prateleiras da despensa, onde só havia abundância de escassez. Foi ao quarto das crianças, que dormiam e eram, sim, o tesouro esquecido daquele homem. Mostrou-lhe os frutos do amor, que sofriam, e fuzilou: - E o senhor galinhando com loiras em pleno dia? O que tem a dizer? Eu vi com esses olhos... – O contabilista, a quem a mulher com a explanação lhe dera tempo de calcular, saiu-se com esta: - Nossa, mulher! Será que um homem não pode ajudar uma pobre ceguinha a atravessar a rua?
Dizem que se reconciliaram...