Em busca do passado

A decisão de viajarmos na madrugada para fugirmos do congestionamento pré-Carnaval foi acertada por Sandra. A “rodovia do inferno”, como era chamada, estava tranquila e o som do carro deliciou-me com músicas dos anos 80, quando minha vida era focada nas baladas da minha cidade. Bons tempos aqueles em que eu dançava até o sol raiar … e dançava bem.

Após o falecimento do marido, em uma noite qualquer, recebí um chamado de Sandra, sua esposa, convidando-me para fazermos uma breve viagem. Alegou que seria surpresa e que não precisaríamos mais do que o próximo feriado que estava por chegar. De pronto aceitei, imaginando um lugar tranquilo, onde pudéssemos recarregar as nossas baterias para continuarmos nossas vidas, nessa época já bem estagnadas, na cidade grande. Já éramos mulheres com mais de 60 anos.

E lá fomos nós, em silêncio, deliciando o ar da madrugada. Após longas horas de viagem, com rápidas paradas somente para lanches, avistei, do alto de um morro, a pequena cidade que minha tanto falara desde o tempo em que nos conhecemos na capital. Nos primeiros contatos parecia-me uma obsessão, algo sentenciado de que a mudança não lhe fizera bem. Mas naquele momento, confesso, fiquei emocionada, imaginando o tanto de emoção que ela deveria estar sentindo depois de tantos anos com esse desejo, já que André nunca abriu-se para um retorno, alegando que nada tivera sido tão bom que justificasse.

Sempre que eu a encontrava, mesmo em rápidas conversas, ficava claro o quanto a saudade da sua cidade natal a sufocava. Seu olhar vagava, sua boca balbuciava inúmeras vezes aspectos vividos há tanto tempo e eu não entendia como ela ainda mantinha-se presa aquele lugar.

Sandra era sonhadora, mãe extremosa, profissional exemplar e, para mim, uma amiga fiel, embora visivelmente triste e melancólica. Nunca me pareceu com os pés fincados no chão na cidade na qual fez a sua vida, criou os seus filhos, estudou, trabalhou e se aposentou cedo, com um salário que, aliado ao do marido, também aposentado, poderia render uma vida confortável, boas viagens e algumas realizações de desejos impensados na sua juventude. Suas 2 filhas já casadas lhe deram 2 netas, ambas curiosas e com espírito aventureiro. Destacavam-se na escola pela flexibilidade com que encaravam qualquer mudança. E Sandra invariavelmente comentava: “como as crianças atualmente são diferentes. Como podem ser assim, se eu ainda me mantenho tão ligada à aspectos do meu passado, à vida que viví antes de efetivamente começar a viver? É um paradoxo.”

Nossas famílias se cruzaram há 30 anos, A partir daí passamos a comungar as alegrias, decepções, acertos e desacertos. Por vivermos em uma grande capital, nossas vidas se confundiam nos finais de semana, pois era preciso viver o que faltava, já que nossos trabalhos nos consumiam por completo. Invariavelmente nos encontrávamos para um ou outro programa. Até mesmo as pequenas viagens fazíamos juntos, tamanha a afinidade que se estabeleceu.

André, assim como meu marido, buscou preparar-se para a aposentadoria, uma vez que não conseguia imaginar-se parado de uma hora para outra. Iniciou um curso de marcenaria com um conceituado marceneiro e, mesmo antes de deixar o trabalho, já produzia peças complexas e funcionais. Fui presenteada com muito do seu trabalho. Sandra, ao contrário, não preparou-se para a mudança. Sempre tive a sensação de que o que ela mais queria era aposentar-se e retornar à sua cidade natal instalando-se em um sítio, que ela sempre almejou adquirir. Mas tudo mudara, as netas eram sua paixão, muitas vezes precisando dos seus cuidados e André, além do hobby, havia angariado amigos por todos os lados e mantinha encontros semanais com eles no clube, uma das suas paixões.

Com a constante insatisfação da esposa, André buscou ajuda psicológica para ela. Inúmeras sessões se seguiram e Sandra manteve-se fria, como que permanecendo, depois de tantos e tantos anos, desapegada ao espaço no qual vivia.

Em uma dessas sessões o psicólogo questionou-a sobre quem ela ainda encontraria na sua cidade, caso retornasse. A resposta veio depois de muito pensar: “possivelmente ninguém”.

Naquela tarde, ao chegar na cidade natal da minha amiga, percebí que ela, além de ficar geograficamente muito distante de grandes centros, não havia se desenvolvido o suficiente para tornar-se atraente, e ainda mantinha-se em estágio coronealista, algo inconcebivel para quem que já aprendera tanto quanto nós. Nosso estilo de vida não combinava com aquele lugar bucólico. Mil pensamentos vieram à minha cabeça e uma das certezas que tive naquele momento, mesmo sabendo do apego de Sandra, é que ela aproveitara todas as oportunidades que surgiram desde que saiu daquele lugar casada com André, especialmente no aspecto profissional, a ponto de ser lembrada nos Congressos Nacionais e Internacionais de Ginecologia como uma das mais renomadas profissionais da área. André se orgulhava muito dela.

Quando eu a questionava como ela conseguira tal feito, mantendo-se uma camaleoa por tanto tempo, ela revelava: “sempre busquei trabalhar muito para não pensar, para fugir da saudade”.

O falecimento de André, após um breve período com diagnóstico cancerígeno, muito a abalou, mas em pouco tempo ela assimilou a situação. Parecia-me liberta para desvendar algum novo caminho ou, quem sabe, um mistério. Algo estranho pairava no ar.

E foi numa pequena pousada familiar na cidade de Sandra que nos instalamos na nossa chegada. Lá, em um café da manhã ela abriu-me o real motivo do apego, da viagem, da vida que vivera lá.

Contou-me que aos 17 anos engravidara do primeiro namorado e, mesmo sem o consentimento dos pais, fugiu com ele para uma cidade vizinha, também muito pequena. Lá, vivendo de amor, já que as condições eram extremamente precárias para os dois, viu-se no abismo quando, em uma saída do trabalho o namorado foi atropelado, morrendo no ato com traumatismo craniano. O impacto fora tão grande que o aborto veio em seguida e, mais em seguida ainda o retorno para a casa dos pais.

Passaram-se 2 anos e, em uma visita de André na cidade para auditar o único Banco lá existente na época, ela encontrou-o numa pequena lancheria. Seus olhares se cruzaram, um primeiro encontro aconteceu na mesma noite e, em 6 meses, já estavam casados. Seus pais, ainda imersos na decepção que, na época, a filha lhes impregara, não se opuseram em absolutamente nada. Não houve vestido de noiva, não houve festa, não houve alianças … só a partida da cidade já que André, mesmo jovem, já possuia um emprego compensador e podia arcar com as despesas do casal.

Anos mais tarde os pais de Sandra faleceram e nada mais restou de familiares por lá, já que os poucos que ainda mantinham contato buscaram oportunidades em outras cidades.

Foi então que entendí que o que Sandra precisava era resgatar e entender o seu passado para que pudesse finalizar o seu futuro com tranquilidade. Tudo acontecera rápido demais. As perdas, os olhares de decepção que teve que enfrentar dos pais e das pessoas da cidade e o casamento com André, o homem que apareceu para salvá-la naquele momento.

E esse resgate foi feito em pouco tempo, pelo visto de forma serena.

Na manhã seguinte acordei e Sandra já havia saído. Provavelmente saira perambulando pela cidade, afundando as sandálias no paralelepído, vagando por entre ruelas amorfalhadas. Mas era preciso. Deixei-a totalmente livre e acabei lendo 2 livros no período em que lá estivemos.

Retornamos da breve viagem no quarto dia. As horas passaram rápido demais, tamanha a euforia com que Sandra me contava todas as sensações que lhe permearam aqueles poucos dias. Rindo muito falou-me que imaginava encontrar uma cidade muito maior, com shopping e cinema e, para sua decepção, a única atração que chamou a sua atenção foi uma banda tocando no coreto da praça central, a mesma praça na qual namorara o seu grande amor, o pai do seu primeiro filho que não veio ao mundo. Tentou contato com várias pessoas e nenhuma informação obteve sobre a desgraça pela qual passara. Absolutamente ninguém lembrava de nada. A vergonha que tinha empregado na sua família virou névoa e nem mesmo seus pais foram lembrados. A rodoviária estava em outro local e a antiga edificação cedeu lugar para o único edifício com mais de 3 andares da cidade. A Padaria do Seu Manoel virou uma revenda de carros e o cheiro do pãozinho não exalava mais. A lancheria na qual encontrou André transformou-se em uma casa lotérica.

Confidenciou-me que, embora com idade avançada, até então não havia deixado os seus questionamentos. Queria entender muitas coisas e percebeu que, após tantos anos, poucos dias presentearam-a com as respostas que precisava. Foi preciso passar por tudo aquilo, foi preciso enfrentar novos rumos para crescer. Foi preciso casar com um homem que nem a atraia tanto na época para deixar o passado sossegado. Não foi a primeira e nem seria a última a passar por uma decepção tão dolorosa.

Assimilando o que ouvia, ficou claro prá mim que Sandra amadureceu de forma muito lenta e precisou perder a pessoa que fora fundamental na sua vida para entender que a vida somente tem sentido se estivermos livres para desbravar novos caminhos, assumir novos relacionamentos, viver novas experiências. Tive a nítida sensação de que ela arrependera-se, depois do seu retorno à cidade natal, de não ter reconhecido mais em André o homem inteligente, focado e, especialmente, paciente com as suas neuras por tantos anos. E mais: que a amara intensamente.

Já na entrada da cidade, parando em uma sinaleira Sandra fitou-me e falou: “hoje eu consigo entender que a minha decisão foi a melhor. André foi um excelente marido, deixou-me uma família linda e agora tenho que correr para compensar tudo o que perdí sentindo saudade do que não existia mais”.

A sinaleira abriu e o silêncio se fez por mim. Questionei-me: “compensar de que forma? ainda daria tempo?”

Dez.19

Laboratório de Escrita Criativa - Lugar

PRAGMATHA

Rosalva
Enviado por Rosalva em 10/12/2019
Reeditado em 27/01/2020
Código do texto: T6815481
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