Entrecortes

Antes, quando não havia dúvida e o nada era apenas a ausência de sua percepção, nunca teria cogitado o olhar derramado ou a palavra embebida de quem procura companhia. Talvez estivesse ocupado demais, olhando para o outro lado, lá longe, onde seus olhos não podiam alcançar. A verdade é que era distraído. Tão distraído que a mínima possibilidade de alguém se interessar por si era logo descartada à impressão de sua breve realização. Não, não é possível, repetia para si mesmo incontáveis vezes, mesmo tendo total discernimento da verdade. Pois a verdade lhe veio súbita, numa tarde corriqueira, em que não esperava nunca ser arrebatado de tal forma. Nem tão forte. Não que saber que alguém gostava dele o preenchesse de coisas boas. Talvez o contrário. Agora, perdido em sentimentos mistos, indissociáveis, incrustados uns nos outros sem começo nem fim; à beira de um desespero sufocante que lhe amputava o ar dos pulmões, agora. Agora. O que fazer agora?

As portas abriram para dar acesso às pessoas que esperavam a barca. Sentado, ainda demorou um pouco a levantar. Revolvia-se nos mesmos questionamentos sem propósitos, os olhos fixos nas pernas automáticas a cruzar as portas. Levantou e seguiu os demais, compenetrado o suficiente em seus próprios pensamentos que nem percebeu direito quando sentou na janela, o brilho das luzes de postes e carros ondulando sem propósito sobre a água; a lua num sorriso salpicado de explosões há muito extintas. Mas por quê? Retumbava feito martírio tentar achar uma explicação. Por que eu?, ele se perguntava, incrédulo de ser o suficiente para que alguém gostasse dele. Afinal, que haveria de interessante que pudesse despertar o interesse de outra pessoa? De certo não era bonito nem engraçado, quanto mais inteligente. E o que mais poderia ter uma pessoa que fosse capaz de despertar em uma outra pessoa um sentimento genuíno desejo?

Tantas perguntas ribombavam. Mal uma surgia, sem tempo de resposta, outra já tomava seu lugar, sem se demorar também, numa série ininterrupta. Um aborrecimento que causava angústia. Não tinha as respostas. Ou estava fazendo as perguntas erradas ou deveria tentar enxergá-las sob outra ótica.

Não sabia de si.

Mas sabia de Stella, cujo sorriso o inundava das mais aprazíveis sensações; de quem a companhia lhe imputava a serenidade em cujos olhos amendoados e a fala macia enamorava num sôfrego flerte mudo, que sequer poderia ter correspondência, uma vez que guardava consigo sob cada gesto comedido o que sentia. Nunca antes parara para pensar sobre o porquê de gostar de Stella, além de sua personalidade o cativar, e de sua aparência o atrair. Por que, então? Seria o jeito que divagava num falatório sem fim, emendando um assunto no outro sem parar? Teria algum motivo especial, alguma razão que o satisfizesse?

Quanto mais pensava, mais pensava. A inquietude acumulando-se nos cantos como poeira. Sacudia como louco a perna direita, enquanto o reflexo borrado das estrelas e da lua se misturava a cidade incandescente, à medida que avançava sobre a baía. E o movimento da barca, à maneira das ondas, fazia ir e vir o fio que o conduzia pelas paredes da memória, do pensamento.

Mirela.

Mirela gostava dele e nunca tinha percebido. Sequer suspeitado. Essa era a verdade. Era tão desligado ao ponto de todos do convívio de ambos perceberem e só ele não? Tentou lembrar sinais quaisquer que indicassem o fato, embora sempre achasse a simpatia e gentileza apenas franquezas de sua educação. Talvez, sim, a atenção demasiada quisesse dizer algo. Depois que soube, prestou melhor atenção aos gestos e olhares. Com cuidado — não sabia se já influenciado pela malícia — notou, sim, alguns indícios que pudessem reforçar a certeza. Mas não tomou iniciativa. Na verdade, estava relutante, sempre de volta ao começo, sem saber ao certo como reagir a um sentimento tão legítimo.

Continuava se perguntando se haveria motivo para ser ele. Induzido pela imaginação a projetar expectativas mais táteis e reais que as com Stella, de repente pareciam refulgir tímidas em algum lugar de dentro. Ainda um broto de ideia, mas que já começava a criar raízes, germinado aos poucos à proporção que o casco da barca era banhado enquanto avançava.

Apoiou uma das mãos no rosto, o corpo inclinado a fim de capturar qualquer coisa lá fora com os olhos. Se os pensamentos voavam livres como pássaros, não poderia dizer o mesmo do mundo ao seu redor. Estava acostumado a se desconectar quando sentava na barca, independente do falatório; mas, nesse dia, especialmente nesse dia, as pessoas eram um burburinho só.

Um rapaz alto entoava sua voz por cima do violão em conjunto com quem resolvesse se unir ao coro. Cantavam "Lanterna dos Afogados".

Mas como e quando foi que isso aconteceu?

Olhou para o lado, a mente distante num ano-luz. Um par de olhos gentis encarou-o de volta. Uma fileira intimidante de muitos dentes muito brancos, que pareciam não caber dentro da boca. Olhos afilados num sorriso.

Não sabia se retribuía ao sorriso ou com um aceno de cabeça, e pensar em excesso o petrificou durante longos segundos, sem conseguir sorrir, sem conseguir acenar; o rosto afetado numa meia expressão que não era uma coisa nem outra.

Finalmente desviou o olhar. O coração acelerado de constrangimento.

Essa música é muito boa! Faz tempo que não a ouço. E a CCR Barcas querendo proibir apresentações artísticas. Uma voz rouca alcançou seus ouvidos, bem baixa, em meio às vozes já decrescentes.

Seria uma frase casual, dessas lançadas ao ar para puxar assunto? Resistiu ainda o que lhe pareceu tempo demais. Não sabia o que responder e nem se era para fazê-lo.

É, eu pego a barca todo dia e já estou acostumado com os ambulantes e os artistas. Vai ser estranho fazer esse trajeto em silêncio. Ele não olhou. Respondeu qualquer coisa que lhe veio. Nem precisava receber resposta. Talvez seria melhor se não recebesse. Será que deveria ter ficado calado e ter passado por antipático? Afinal, aquela exclamativa não teria sido para ele, teria? Não, claro que não. Vai ver era coisa de sua cabeça. E pensar isso o fez enrubescer um pouco, envergonhado por ter soltado no ar palavras que naufragariam sem o amparo de ouvidos atentos. Sempre se sentia bobo quando isso acontecia; como se, secretamente, as pessoas registrassem essas pequenas ocorrências para encabulá-lo, quando, na verdade, só eram momentos que não tinham relevância, mortos no segundo seguinte ao nascimento. Se preocupava muito se se preocupavam com ele. Isso o atrapalhava a interagir, preferindo aos não-ditos.

Eternamente no limiar entre não ter o que dizer e não ter vontade de falar.

Já não lembrava direito sobre o que estava pensando. Apenas ocupou-se imediatamente de se distanciar dali em espírito o mais rápido que pudesse. Mas que demora, essa barca. Cruzou a perna esquerda sobre a direita, sacolejando-as, agoniado.

Engraçado que parece servir bem ao momento, não é?

Sentiu um olhar inquiridor fustigar em sua direção, pois agora as palavras eram direcionadas diretas a ele. Não quis olhar nem responder. Mirando pelo reflexo do espelho de soslaio, conseguia enxergar um volumoso cabelo escuro, encaracolado, que caía por sobre os ombros.

A barca parecia diminuir a velocidade conforme ia indo. Estaria prestes a atracar agora, claro. Não precisaria se esforçar para manter aquela conversa. E onde estava mesmo, antes de se distrair? Ah, sim, sim. Mirela. Mirela. Mirela gostava dele e essa era a verdade. Era nisso que estava pensando. No porquê. Precisava de um? Questionava-se como apenas a consciência de saber disso despertava nele um novo olhar sobre a garota. Mais receptivo e acalantador que antes. Como se dentro dele o broto se coçava a desabrochar miúdo. Lembrou de seus gestos atenciosos, a preocupação para com ele e as outras pessoas. Mirela era carinhosa e possuía um coração bom. Era bonita, também. Combinava a doçura do espírito junto a graça de suas feições. Não era delicada em excesso, mas a proporção de seus traços lhe dava um ar sereno que inspirava confiança. Os olhos sempre cerrados num sorriso de Mona Lisa. Sua companhia era agradável, embora se sentisse intimidado, tamanha presença Mirela evocava.

O que não era diferente em Stella, na verdade. A seu modo, ela se destacava sobre tudo quanto a sociabilidade. Nunca tinha assunto do qual não soubesse de algo, mesmo que pouco, que pudesse gerar algum assunto. Falar era sua espontaneidade. E como falava bem. Desembestava feito louca a falar daquele seu jeito, gesticulando bem as mãos, fazendo caras e bocas, empunhando sobre os olhos duas fartas sobrancelhas das quais ele queria muito, muito acariciar demoradamente, enquanto pudesse beber daqueles olhos esverdeados tantos goles pudesse roubar de seu tempo. Em sonhos roubava-lhe beijos e beijos à vaidade de o saber que ela os queria. Mas só nos sonhos pois, na realidade, Stella já tinha sob seus cuidados um outro alguém de quem cujo falava abobada, a voz num misto de entusiasmo e paixão. Acontece que ele sempre calhava de ouvir — é claro, não poderia ser diferente — não só as proezas, mas também as queixas que ela tinha a relatar sobre sua relação. Ele era uma espécie de ouvido discreto. E isso lhe doía.

Mas doía mais no começo, quando o feitiço do pensamento lhe fincou Stella nas ideias, a pensar sobre ela o dia todo. Aprendeu a lidar, mesmo não sabendo. Cada dia doendo um pouco menos que o anterior e mais que o próximo. Uma ferida cuja cicatrização levava ainda mais tempo, porque adorava tirar a casca com a unha, a fim de vê-la sangrar, a fim de sentir no coração a aflição prazerosa, doída, da expectativa que nunca se realizaria. Tinha certo deleite nisso. Uma espécie de autopunição agridoce.

É claro que Stella não sabia nada sobre isso. E nem poderia, uma vez que jamais imaginaria qualquer interesse por parte dele.

Estranhamente, ainda assim, ele continuava a alimentar a pequena chama à sensação de se extinguir por completo. Não conseguia se livrar completamente daquela obsessão, que lhe machucava ao mesmo tempo que acalantava.

Parece que nunca chega, pensava sem realmente pensar. O frio invadindo impiedoso pela janela aberta. Não tinha mais música. Silêncio.

Silêncio?

Ainda no reflexo, a garota olhava como quem espera uma resposta. Mas estaria olhando para ele ou para o lado de fora?

Por que algumas pessoas são tão simpáticas?

É, é verdade. Se encaixa mesmo com a situação. Mas espero que não viremos náufragos ou que morramos afogados. Seria ironia demais. Até mesmo para Deus.

Finalmente respondeu. Perguntava-se se tinha demorado muito a falar. Mas já não sabia muito bem do tempo fora e dentro da própria cabeça. Só sabia que a barca estava demorando, ao contrário da voz risonha que rebateu suas palavras.

Ora, vai ver Deus tenha um senso de humor peculiar, não acha?

Por um momento, hesitou. Aquilo estava mesmo acontecendo? A imagem indireta dos lábios carnudos se movendo repassou como uma cena dentro de seu pensamento, assim como o eco da voz arranhada.

As estrelas fulguravam absolutas no céu. Seu brilho distorcido sobre as águas a ondular calma e graciosamente. Uma dança em uníssono. A canção do mar entoada brilhantemente. E a barca. Entre o céu e a água. As estrelas e o mar. Num eterno percurso. Uma suspensão que progride demorosamente, em caracóis.

Focou o olhar sobre a janela, olhando com maior atenção para a garota. A buzina da barca soou alta na noite, anunciando a chegada. O tremor do transporte em harmonia com o barulho da baía.

No reflexo, as imagens de Stella e Mirela pareciam se sobrepôr ao outro rosto, que continuava a sorrir. O coração acelerou, tal qual o pistão da embarcação, explodindo a andar em frente.

Respirou fundo. Segurou firme os braços do banco. Virou num golpe, meio assustado. A barca lentamente atracando, os motores desligados.

A imaginação lhe pregando peças das quais só os olhos poderiam desmentir.

Qual é o seu nome?

A barca parou. E sua respiração também.

Que falta de educação perguntar o nome de alguém sem nem ao menos dizer o próprio, hein.

Riu-se, divertida.

Espremeu os olhos num sorriso diabólico, vertendo entre os lábios a seiva venenosa de seu encanto. Uma gota seria capaz de matar alguém, seja de desespero seja de paixão.

É Maristela.

E o seu?

A H
Enviado por A H em 09/12/2019
Código do texto: T6814366
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