CARO AMIGO

Ele tinha regressado de um longa viagem ao Alentejo profundo e preparava um jantar solitário para si no dia de Natal.

O mesmo cenário de há décadas atrás: o aquecimento central nos vinte e quatro graus, a casa iluminada e decorada com velas, castiçais, bolas de vidro colorido, urze, azevinho e luzes, muitas luzes a brilhar…

Ligou a televisão deixou-a com o som baixo no Mezzo num concerto de Brahms.Vigiou o assado no forno, o bom vinho e as guloseimas da quadra.

Sentou-se no sofá finalmente com uma bebida forte e o gato ao colo.Fechou os olhos por instantes e recordou-se de tudo.Do passado assombrado.Da decepção crua e dura.Da realidade tal qual.

E essa companheira desagradável mas calma sentou-se à sua frente, disposta a tudo.A Solidão antipática, amarga como se tivesse um baton esborratado e um sorriso falso inviesado como convidada, a única.

Ele lembrou-se dos fantasmas, dos que morreram, dos ausentes e dos imaginários.Dos reais e dos virtuais.De todos.

Do poeta, do advogado, das supostas fadas que com ele trocavam mensagens de encanto e deslumbramento e dos conterrâneos escusos e receosos.

Imaginou um nos convívios, nas visitas, nos risos, nas surubas, nos climax e na exaustão e no desmaio consequência.E outro na solidão rodeada de presenças, com o irmão problemático, a mulher sempre discretamente insatisfeita, a filha indecentemente ambiciosa e fria e o genro, outro homem infeliz, sem entenderem porque ele não se contentava com o foyer e as gargalhadas do neto, criança alegre e despreocupada e cirandava absorto, num entra e sai pela casa.

E todos outros, uns mais e outros menos, enredados nos seus rituais e nas suas danças de família.

Ele sentiu dôr e necessidade de se anestesiar de tudo aquilo e continuou a beber pela noite fora.

Os avós, os pais, os melhores amigos mortos.

- Como eu não suporto estes dias e este guião tão piegas e horrível que sou obrigado a seguir.

Abriu o champagne,mudou para outro canal onde havia uma festa de luxo com gente em traje de cerimónia.Abriu à sorte livros de Pessoa, Pessanha.Releu versos esparsos.Quase num desespero mudo.Tentou evocar a calma e a placidez.

“Foram cuidados em vão…A casa era uma prisão…”

Resolveu sair e apanhar ar.Um frio intenso apoderou-se do seu corpo e fê-lo arrepiar caminho.Desencorajá-lo.

“Por favor, algo ou alguém”…clamou.Foi deitar-se na cama enorme, de olhos abertos, perdidos na côr do teto.Uma lágrima rolou no seu rosto.Foi sacudido por um soluço.

O telemóvel tocou.Ele atendeu distraído.

- Alô!...Aqui Brasil, sou eu!O virtual…

Ele sorriu subitamente comovido, subitamente agradecido e atónito, surpreso perante a improbalidade enorme.

- Alô, Mário,você está aí?

- Sim.Estou.Sou.A pensar que estava só, esquecido, único habitante deste mundo, planeta imenso, planeta inóspito e de repente uma luz, um milagre, o telefone e eras tu.

- Tem a voz entaremalada.Bebeu!Sabe quem fala?

- Claro que sei embora neste momento, reconheça, me seja difícil, quase impossível conseguir identificar seja o quem fôr.Mas o que importa… verdadeiramente mesmo… é que ligaste e és…

-Sou?

- És… o meu Caro Amigo. Querido Amigo que se lembrou de mim na noite mais tenebrosa e triste de que me lembro.E eu estou, fico-te, imensamente grato!

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 27/11/2019
Código do texto: T6805308
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