Fotofobia

Sara estava tão distraída que não notou o correr das horas. Seus polegares inquietos alisavam a tela do celular, revelando retratos fantásticos da vida alheia e opiniões de berço frágil. Emoções desconexas e desejos controversos percorriam em ebulição sua sinuosa trama neural. Um tráfego incessante de intensas reações químicas que nem as drogas mais pesadas são capazes de provocar.

Estava atrasada. Precisava buscar seu irmão ao meio dia na escola. O coitado desabaria a chorar se não encontrasse alguém a sua espera no portão. Então ela correu. Atravessou a avenida por entre os carros, o semáforo ainda verde. Desviou do pipoqueiro, pulou a vassoura do lixeiro, esquivou-se do pombo que voava raso, saltou sobre o bueiro destampado. Virou a esquina, driblou o senhor que caminhava na direção contrária, chutou a latinha de refrigerante vazia, desceu o meio fio, contornou o Fiat branco estacionado metade no asfalto, metade na calçada, cumprimentou o padre que saía da igreja e chegou à frente da escola exatamente ao meio dia.

Nito havia acabado de descer. Olhava para os lados, procurando alguém, que podia ser seu pai, sua mãe, sua avó, sua irmã. Tirou os óculos. Sacou do bolso uma flanela azul e pôs-se a limpar-lhe as lentes, grossas como alfajores argentinos. Nascera com uma doença ocular rara, da qual somente uma cirurgia cara e muito arriscada poderia curá-lo. Sem aquelas pesadas lentes, suportadas por uma armação preta reforçada, atada à sua nuca por uma presilha elástica amarela, não via nada, nem de longe, nem de perto. Com os óculos, conseguia ler e reconhecer as pessoas, embora eles trouxessem o ingrato inconveniente de intensificar sua fotofobia. Alguns poucos segundos olhando para uma televisão, ou para uma tela de computador ou celular, eram suficientes para deixá-lo atordoado e com dores de cabeça. Ainda assim era uma troca justa, dadas as circunstâncias.

Pôs novamente os óculos e, quando finalmente avistou a irmã, abriu os braços e correu para recebê-la, escancarando um alegre sorriso. Sara o acolheu com um abraço forte, levantando-lhe os pés do chão, num rodopio de felicidade.

Sara e Nito sempre foram irmãos inseparáveis, apesar da diferença de quatro anos de idade. Quando eram mais novos, costumavam ir juntos ao Parque Estadual. Nito deitava-se sem camisa, as mãos espalmadas percebiam as diferentes texturas da grama, com seu aroma particular, embora não tão nobre quanto o das rosas, e escutava com atenção o canto dos pardais, dos canários, das maritacas e dos bem-te-vis que, ao longe, o faziam companhia.

Sara gostava de estar junto do irmão sempre que podia e fazia questão de buscá-lo na escola todos os dias. Sentia-se responsável pelo seu hermanito. Em casa, falava-se uma mistura do português do pai, brasileiro, com o castellano da mãe, argentina. Graças à essa confusão linguística na qual fora criada, Sara, quando soube que a mãe trazia um bebê na barriga, passou a cantar e bradar, por onde quer que fosse, que em breve ganharia um hermanito. Então era hermanito pra lá, hermanito pra cá, mi hermanito, su hermanito, hermanito demora, hermanito patea el vientre, hermanito nasce, hermanito chora, hermanito tiene fiebre, hermanito mama, hermanito dorme, hermanito não dorme, hermanito no deja dormir… Aos poucos, o hermanito José Luís tornou-se simplesmente Nito.

Mas a proximidade e a cumplicidade da infância foram naturalmente perdendo força com o passar dos anos. Sara, que estava para completar quinze anos, já preferia as amigas da escola e passava horas em conversas infinitas e atravessadas pelo celular, quase sempre sobre o mesmo assunto: os garotos do décimo ano. Especialmente o Héctor. Filho de espanhóis, acabara de entrar na escola e em poucos meses já havia se tornado o mais popular. Nos corredores, Sara mal se aproximava dele; sentia vergonha. Virtualmente, porém, era a primeira a visualizar e curtir o que o rapaz publicava nas redes sociais.

Naquela noite, Sara havia aceitado o convite do irmão para assistir à Grande Orquestra de Sopros, no Teatro Municipal. Nito adorava as orquestras. Encantava-se com a mistura de sons, produzidos por diferentes instrumentos, cada um cumprindo o seu papel naquela magnífica obra que era a música.

Os dois estavam prontos para sair quando Sara sentiu o celular vibrar dentro da bolsa. Era sua amiga Chris: "festa na casa da Samantha hoje às 9" - dizia a mensagem. O concerto terminaria às dez e meia e ela ainda teria que levar o irmão de volta para casa. O aparelho vibrou novamente: "hector vai estar lá". Sara corou, sentiu o calor subir pelas pernas até a cabeça e um calafrio lhe percorreu a espinha. Perdera completamente o pouco interesse que ainda tinha pelo concerto.

Aproveitem! - gritou o pai, da cozinha, enquanto os irmãos saíam. Menos de um quilômetro era a distância que os levaria ao teatro e a apresentação começaria em meia hora. Tinham tempo suficiente, mas os passos apressados de Sara refletiam a ansiedade que lhe percorria os nervos.

O sol havia acabado de se pôr, deixando para trás um rastro tangente de raios que proporcionavam um espetáculo de cores no céu. Nito admirava boquiaberto, maravilhado com o cenário deslumbrante que o cercava. Enquanto isso, Sara permanecia capturada pelas dezenas de mensagens que chegavam a cada minuto. Distraída, chegou a tropeçar na raiz de uma árvore enquanto comentava sobre a saia estampada que sua amiga Chris escolhera para ir à festa.

Os irmãos chegaram à entrada do teatro faltando ainda vinte minutos para o início do concerto. O salão já estava praticamente lotado. Identificaram seus assentos e se acomodaram. Nito comentou:

- Estava lindo o céu lá fora, não estava?

- O céu?... - Sara respondeu sem desviar os olhos do aplicativo.

- Você não viu? Eram vários tons de um vermelho intenso atravessando as nuvens e refletindo na fachada dos prédios e nos telhados das casas! Era como se estivéssemos em outro planeta! Magnífico!

- Ah… Sim… Estava lindo. - ela disse, forçando um sorriso e devolvendo imediatamente a atenção à troca de mensagens com as amigas.

No palco, soaram os primeiros acordes. Visualmente era pouco o que Nito era capaz de distinguir, mas seus ouvidos captavam as sutilezas de cada melodia com mais intensidade do que qualquer outro espectador. A música alimentava sua alma como a luz do sol que a árvore absorve através das folhas.

Os arranjos se seguiam, um após o outro, cada vez mais enérgicos, como uma locomotiva a destacar-se da estação. O concerto aproximava-se do seu desfecho quando Nito percebeu que Sara havia permanecido todo o tempo hipnotizada pelo celular.

- Essa próxima música é aquela da trilha sonora do Star Wars. - ele sussurrou no ouvido da irmã. Sara era fanática pelo filme.

- Eu adoro essa música! - ela disse, levantando a cabeça num sobressalto, como quem acorda assustado no meio da noite.

A orquestra começou a tocar, cada instrumento precisamente encaixado num esplendoroso emaranhado de notas, acordes, alturas e tons comandados harmonicamente pelo maestro. Nito sentia o arrepiar da pele. Estava em êxtase! E a irmã finalmente parecia ter despertado para o espetáculo que acontecia no palco daquele grande salão.

- Eles são incríveis! - Sara disse, sacando novamente o celular da bolsa para registrar aquele momento. Direcionava a câmera para o maestro, que agitava os braços com firmeza, depois focava nos trombones, trompetes, flautas e clarinetes. Mudou a direção da filmagem e passou a gravar a si mesma, interrompendo a gravação no instante em que ressoavam os últimos acordes.

Nito aplaudia de pé, eufórico, enquanto Sara ocupava-se novamente em verificar as últimas mensagens das amigas ao mesmo tempo em que publicava numa rede social o vídeo que acabara de gravar.

O espetáculo terminou pontualmente às dez e meia. Sara puxou o irmão pelo braço e saiu a passos largos do grande salão.

- Por que estamos correndo? - perguntou o irmão.

- Quero tentar ir à festa! - Sara respondeu, ansiosa.

Os dois seguiram velozes pelas calçadas iluminadas. Nito não estava acostumado a correr e, para piorar, a luz dos postes ofuscava sua visão. Quando já se aproximavam da última esquina, Nito tropeçou nos próprios pés e caiu, espatifando os óculos no concreto. Sara sentiu os braços tremerem nervosamente enquanto ajudava o irmão a se levantar. Caminhando lentamente, ela guiou o irmão até chegarem em casa.

- O que houve com os seus óculos, meu filho? - disse o pai, ao ver Nito entrar com as lentes estilhaçadas.

- Tropecei e caí… - disse o menino, com uma expressão de tristeza.

O pai lançou um olhar de reprovação para Sara que, diante da situação, não se atreveu a mencionar sua intenção de ir à festa. Sentia-se culpada pelo que havia acontecido.

- É melhor vocês dois irem já para o quarto dormir! - disse o pai.

Mais tarde, ao deitar, pai e mãe tiveram uma breve e objetiva conversa a respeito da doença de Nito e chegaram a conclusão de que não podiam mais adiar a cirurgia.

*

Quatro meses depois, a cirurgia havia sido um sucesso. Nito já não precisava usar óculos e não sofria mais de fotofobia. Em seu primeiro aniversário após a operação, Nito não queria presentes. Sentia-se eternamente agradecido pelo sacrifício que os pais tiveram que fazer para pagar pela cirurgia. Mas eles faziam questão de comprar alguma coisa para o filho.

- Sara, você tem alguma ideia do que podemos dar ao seu irmão de presente? - a mãe perguntou, aproveitando que Nito tomava banho.

- Que tal um celular? - Sara disse.

A loja entregou o aparelho exatamente no dia do aniversário de Nito. Ele mesmo recebeu a encomenda na portaria.

- Pode abrir a caixa, Nito. - disse o pai.

- Mas aqui diz que é para a mamãe... - o menino disse, orgulhoso por não precisar dos óculos para ler a etiqueta de destinatário.

- É seu presente de aniversário, filho! Pode abrir! - disse a mãe, numa alegre ansiedade.

Nito adorou o presente. Sempre teve muita curiosidade em saber o que a irmã tanto fazia naquele pequeno aparelho que ele, só de olhar, sentia dores de cabeça. Em poucos minutos já estava familiarizado com a tecnologia. Sara lhe mostrou os aplicativos mais interessantes e o ajudou a criar seus perfis nas redes sociais. Nito adicionou os amigos da escola. Passou a seguir a conta da Orquestra de Sopros e também a do Teatro Municipal.

Sentindo-se vaidoso, agora que não precisava mais usar óculos, pediu para a irmã tirar uma foto dele e a publicou logo em seguida. Na legenda, escreveu: "Um presente que vai mudar a minha vida! Obrigado!".