HIPPIES: ORIGEM GÓTICA? - FINAL
2-HISTORICISMO E HISTORICIDADE - Concepção da História na narrativa do século XIX - acervo do escritor romântico do qual se faz cronista, documentador, reelaborador. As obras marcadas pelo historicismo evoluem a partir de um princípio monológico ou tradicional em que se dissolvem diferenças e contradições, e se reintegram numa unidade hierarquizante, apaziguadora, com soluções ora escatológicas (profecia de fim do mundo), apocalíticas (realidade transcendente), ora cosmogônicas (explicação da origem do universo). Na obra cosmogônica. o mundo exterior se convencionaliza e o herói desempenha funções que coincidem com o espaço delimitado - tempo dos mitos. ----- Em "O bobo", de HERCULANO, capítulo "O sarau". fixação de marcas indeléveis, jogo da memória, tradição, passividade individual e social, isto é, labirinto de tramas e segredos une a todos num destino imutável. Importa para o autor o castelo sombrio - ambiente típico de criação gótica -, burburinho infernal, vultos de damas e cavaleiros, segredos trocados, estigmas cruéis, labirintos que projetam os abismos da inferioridade humana; e melhor ainda o tumulto da inermidade feminina e a obsessão do poder masculino. D. Teresa na cadeira de espaldar, dominada pelo semblante carregado do Conde deTrava, que lhe dirige palavras breves e veementes, ela responde com monossílabos , melancolia ou sorrisos forçados - mesma coisa entre García Bermudes e Dulce. Ao pé de uma coluna que enlaça com arabescos personagens e cenários, conversam o Lidador; Martim Eicha, o capelão de Lamego; frei Hilário, o abade do mosteiro de D. Mama, impossível a este conter o ressentimento brioso do primeiro e da memória ressentida de estigma do passado islâmico do segundo - a destemperar os ânimos, D. Ribas, truão (bobo saltimbanco) que se funde á arquitetura do salão, ornada de "figuras extravagantes de centauros, harpias (mitologia grega - aves de rapina com rosto de mulher e seios), demônios e górgonas (cinto de serpentes entrelaçadas)", espaço monstruoso e grotesco. D. Ribas, ex-ablato (serviçal de ordem religiosa) consegue, pelo riso e zombaria, ligar espaços de sagrado e profano. Açoitado, porém, desce aos subterrâneos da vingança completa - os ressentidos são os portadores da memória prodigiosa, porta-fortes da lei e do verbo único de vingança e paixão; a vingança é também uma "chaga purulenta" que só se pode cauterizar na morte ou a renúncia ao amor. ----- Tal como acontece a Eurico, Dulce, Egas. Vasco, em "O monge de Císter", representa de modo exaltadamente trágico esse anseio de vingança, sacrílega e inesgotável: simula assistência espiritual a Fernando Afonso, ainda rouba seu crânio calcinado a fim de levá-lo como preito (homenagem) ao túmulo do pai - personagens unidos em eterno pacto demoníaco. O discurso monológico traduz inflexibilidade da lei que não elimina promessas e desígnios. Diálogo = pacto de interesses, termos de contratos, transgressões de vínculos e esquecimento. ----- Se nas obras marcadas pelo HISTORICISMO predomina o compromisso com o passado, que implica fixação e defesa do espaço sagrado e do ritual, nas obras dialógicas, portanto narradas pela HISTORICIDADE, a narrativa é orientada pela perspectiva de 'carnavalização' - essas obras transgridem o código oficial, impõem novas estruturas onde o picaresco condiona novos espaços físicos e nova disposição no espaço textual. ----- A história, tal como na frase de GUIMARÃES ROSA, quer-se parecida ou comprometida com a'estória', isto é, contrapor vozes e planos dissonantes, estabelecer paradoxos reler pela paródia e pelo humor os documentos do passado, inserir espaços múltiplos, enfim, multiplicar os discursos do passado em diálogo com o presente. ----- Em obras assim estruturadas, perde-se a marca das convenções no espaço, não mais organizado pelas referências geográficas e temprais, protagonista e leitor dissolvidos em labirintos e subterrâneos, transcritos em outros textos: cartas, bilhetes anônimos, narrativas paralelas, diários, disfarces, renascimentos, emparedamentos, enfim, a realidade em constante transformação ou transposição que altera o espaço físico, espiritual, social e o espaço da escritura. ----- Em "O garatujo", de ALENCAR, Ivo despeja pelos muros do jesyítas "caretas e engrimanços" de todo tipo - importa a falta de proporção, a leitura em aberto de traços e estigmas, isso patente na nota introdutória de "Alfarrábios": "A minha preciosidade literária não custou nem mesmo o trabalho de vasculhar papéis velhos nas secretarias ou cansar pernas pela Europa........." ----- Ao contrário dos padres malditos de HERCULANO, semore presos a memória funesta, em ALENCAR essas personagens projetam-se para o futuro e buscam o próprio prazer, como o Loredano de "O guarani" e padre Molina de "As minas de prata", essencialmente aventureiros, homens do mundo e da fortuna - Ivo, de "O garatuja', e Nuno, de "Guerra dos mascates", originam-se da matriz picaresca de Molina, que antes de ser padre sacrílego, era Vilarzito, ajudante de guerreiro e pintor, clara relação com CERVANTES e suas célebres personagens. ----- Loredano castigado pelo sacrilégio, tal sacrifício não denota prisão a um código de honra: significa o predomínio da dimensão satânica e sensual do homem. Erotismo, nota significativa de recriação brasileira, erotismo selvagem e apaixonado que une o padre Molina a Dulce, levando=o a desistir dos planos de enriquecimento - o sacerdócio não constitui sacrifício ritual para ele nem para Fernando de Ataíde; traz para ambos a pacificação de suas grandes almas tumultuadas pela paixão. Como seres aventureiros ou picarescos pela origem, são expressões do acaso e não do destino fatal e trágico; desse modo, estruturam-se como mediadores de planos múltiplos e códigos diversos; como articuladores dos contratos e das transgressões, possibilitam a perspectiva de aventura, impulso de renovação e esquecimento, diluindo cicatrizes de amargura e pessimismo.
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FONTE:
"o tema do monge maldito", de Aimara Cunha Rezende e Ana Maria de Almeida - BH, SLMG, ano XV, n. 799, 23/1/82.
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