"CADA UM É FILHO DAS SUAS OBRAS" - frase de DOM QUIXOTE
MIGUEL: "Sonhar o sonho impossível, sofrer a angústia implacável..." Entre Renascimento e Barroco, séculos XVI-XVII. Desde 1605, o romance "Dom Quixote" correu terras e mares (não ares antes de Dumont...), circulou por toda a Europa, traduzido na Inglaterra em 1612, na França em 1614, a seguir brevemente na Itália e na Alemanha.
A obra de CERVANTES circulou de imediato porque o espanhol, língua latina, era muito identificada com as novidades literárias da época, obras estas valiosas até mesmo para a cultura contemporânea. Grande ideia escrever com a linguagem cotidiana, sem o tom artificial das novelas de cavalaria ou pastorais daquele tempo... e é isso que se faz no romance moderno. O mundo viu nascer o símbolo maior da aventura humana entre sonho e loucura. Ele mesmo, MIGUEL, um aventureiro: camareiro do cardeal Aquaviva em Roma, soldado em 1570, vida errante agitada, por vezes penosa; em 1571, combateu em Lepanto, recebeu 2 tiros de arcabuz no peito e teve a inutilizada a mão esquerda; voltando a Espanha, a caravela El Sol foi atacada por piratas, todos a bordo presos e levados para Argel - após cinco anos de penoso cativeiro, teve pago seu resgate por 500 ducados de ouro; imprimiu vários trabalhos literários, entre poemas, dramas e novelas de real envergadura, brilhantes, algumas narrações picarescas, com caracterizações, alegorias, costumes... Ah, em 1605 surgiu "El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha", novela eminentemente humorística, o livro mais popular da literatura espanhola e que levou o nome do país e do criador a todas as partes do mundo. Nesta obra, CERVANTES satiriza a cavalaria degenerada, onde são admiráveis as figuras do exaltado fidalgo e de seu ingênuo-genial escudeiro, união de razão/admiração - caráter geral e humano, ao mesmo tempo local, a beleza do estilo e a riqueza da linguagem fazem de 'Don Quijote' uma obra mestra. Depois da Bíblia é a obra mais editada no mundo.
Morto há 403 anos (o tempo urge!), o "pai da literatura moderna". Na época, a Espanha já usava o calendário gregoriano (pesquise, caro leitor) e o 23 de abril deles /triste data do the end..."/ era o nosso 23, mesmo. Em 1916, o mundo inteiro repassando esta obra, retrato dentro da aventura e do sonho. Não só na Itália, o Renascimento e o Humanismo também presentes na Espanha, prevendo o Barroco, adaptados às tradições culturais e condições específicas da Península Ibérica. Na arquitetura, o estilo renascentista se mesclou com a ornamentação gótica e arábica. A pintura espanhola foi marcada profundamente pela luta entre cristãos e mouros; o mais importante pintor da Renascença espanhola foi El Greco, pintor e escultor, imigrante da ilha de Creta. Na literatura o grande nome foi Cervantes e Lope de Vega no teatro que partiu das tradições do teatro popular.
A Espanha opulenta vivia seu Século de Ouro. William-Miguel, Miguel-William... Qual a relação entre os dois autores? Fato curioso é que a peça "A história de Cardenio", atribuída a Shakespeare, é protagonizada por um personagem saído das páginas de "Dom Quixote", de Cervantes - Cardenio, homem amargurado que narra ao Cavaleiro da Triste Figura a desventura amorosa em que teve a mulher de sua vida roubada por um figurão, peça teatral que elimina Quixote e se concentra na estória de amor.
Universal, a obra de CERVANTES carrega muito da realidade da Espanha de seu tempo, em "Dom Quixote" e nas "Novelas": guerras com muçulmanos, expulsão dos mouros, catolicismo desvairado, corrupção da burocracia real, violência contra as mulheres e luta desesperada destas por suas vidas e honras. Diferença entre os dois livros está no apurado senso de humor. Nas "Novelas", ainda início de carreira, preocupado em provar aos acadêmicos que "sabia escrever", o humor divide espaço com melodrama e aventuras mais realistas - em "Dom Quixote", sátira desde o começo, ainda que melancolia ao final... nos melhores momentos, inglês e espanhol conseguem ser trágicos e engraçados ao mesmo tempo.
CERVANTES continua atual - ele entendia de gente, seus anseios e medos profundos e escreveu de modo que continua atraente para o leitor de hoje. Em "Dom Quixote", ilustrou com graça infinita dois grandes dramas: nossa necessidade de sonho, evasão, e nosso medo de ficar preso ao sonho, enlouquecer - até hoje continuamos a viver esses dois dramas.
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FONTES:
Um velho caderno universitário --- "Drama e sonho", de Guilherme Freitas e Luiz Felipe - Rio, jornal O Globo, 17/4/16.
F I M