A TRAGÉDIA DE UM ANÔNIMO GATO
Há pouco uma moça chegou em nosso portão para avisar que o gato preto com branco, da cabeça grande, foi atropelado. Na verdade, literalmente esmagado, pelos veículos que trafegam sem parar na avenida que passa em nossa porta.
Por alguns instantes comecei a refletir sobre a vida desta criatura e, não pude evitar o paralelo com nossas vidas.
Ele não tinha dono e, no que diz respeito a sobrevivência, vivia das oportunidades que iam aparecendo. Bebia água em qualquer canto que ela existisse, comia o que aparecia, sendo mestre em rasgar os sacos de lixos que encontrava pelo caminho, ou, dando sopa nos quintais que ele invadia e, o nosso era um deles.
Certa vez eu tinha ido comprar ração para nossa gata e ao abrir o portão, ele estava deitado logo ao lado, na porta da nossa vizinha. Estava com a cara tão triste que me chamou a atenção. Como de costume, não se assustou com minha presença e, simplesmente levantou a cabeça olhando para mim.
Ignorei externamente e, fui comprar a dita ração. Ao voltar ele estava no mesmo local, com a mesma cara desanimada de antes. Fiz não ter visto e abri meu portão para entrar em casa.
No entanto, uma voz interna, que me ajuda a ser gente nas horas que tento me esconder, gritou: “Tu tá cego bicho bruto, esse pobre está com fome e sede!”. Não consegui me libertar dessa quase ordem, daí, na mesma hora, voltei, tirei um pouco da ração que eu levava e coloquei para ele, junto com um pouco de água, colocada numa tampa de margarina.
Não ouve um obrigado, nem um gesto qualquer nessa linha, na verdade, ele nem se animou muito. No entanto, mais tarde, a comida já não existia e o tal bichinho não estava mais lá.
Desse dia em diante mudei meu olhar para ele, passei a notar aquela figura solitária, sem perspectivas, abandonado, vivendo por viver, sem saber o motivo disso.
No seu rosto estava claro um sentimento: me colocaram aqui, portanto, farei o que for possível, dentro dos meus instintos, para sobreviver da melhor maneira possível.
No mesmo abandono que chegou ao mundo, partiu. Não acenou para ninguém, porque tinha a certeza que não tinha ninguém para acenar. Não deixou testamento e nem pertences, na verdade, se ele pudesse, não deixaria nem o trabalho para retirar seu corpo da estrada. Foi de cabeça erguida, com a certeza que fez o seu melhor.
Não morreu na contramão atrapalhando o tráfego, porque a pista era larga de mão única e, sua estrutura era muito pequena, isso certamente o tranquilizou, pois, ele nunca teve a intenção de incomodar a ninguém, só queria dá vazão a sua liberdade.
Sua morte não será notícia nas mídias que vivem para publicizar desgraças, não será ponto facultativo na cidade e nem as bandeiras serão hasteadas a meio pau, na verdade, menos de meia dúzias de pessoas perceberão sua falta.
Por isso, fiz questão de homenageá-lo, aproveitando para usar essa sua tragédia, na tentativa de sensibilizar algumas pessoas, no sentido da reflexão sobre as discrepâncias entre nossas vidas e a vida propriamente dita.
Até breve amigo, desculpe-nos por tudo e qualquer coisa, pois, somos apenas uns pobres humanos!
17/11/2019