Praticidade

Eu tinha acabado de chegar ao centro da cidade, mas já me sentia sufocado como se minha cabeça estivesse dentro de um saco plástico. Respirei fundo e segui pela calçada me desviando das pessoas e dos vendedores ambulantes até que chegasse a entrada do prédio que era meu destino. O porteiro me deixou subir e tomei o elevador, que por sorte estava vazio. Apertei o número 16 e o aparelho começou a subir. Não demorou e o elevador se abriu novamente. Saí e dei de cara com um corredor vazio e mal iluminado. Andei até a primeira porta e toquei a cigarra.

A porta era automática e se abriu sozinha. Entrei e vi algumas pessoas sentadas em uma série de cadeiras acolchoadas. Fui até a secretária que estava sentada atrás de uma mesinha com um computador.

- Vim para uma consulta com o Doutor Dimas.

- Ele atende por ordem de chegada. Qual o seu nome?

Entreguei o meu RG para a moça, e ela conferiu meu nome e digitou algo no computador.

- Pode se sentar e esperar tem três pessoas na sua frente. – Continuou.

- Será que vai demorar muito?

- De uma hora e meia a duas horas. – Ela respondeu mecanicamente, e estendeu a mão para devolver o meu documento.

- ok. – Respondi.

Andei até as cadeiras e me sentei distante das outras pessoas.

Depois de meia hora de espera uma das pacientes se levantou, e parou na minha frente. Ela parecia estar perto dos quarenta anos. Era alta e magra, e tinha os cabelos mais escuros que eu já tinha visto.

- Você tem um cigarro? – Perguntou-me.

- Tenho sim. – Respondi. Retirando a carteira de cigarros do bolso e lhe entregando um.

- Obrigado. Você salvou a minha vida.

- Não foi nada.

- Vou lá fora fumar. Você não quer vir? Não vão nos chamar nem tão cedo.

- Tudo bem.

Me levantei e segui com ela para o corredor. Havia uma janela perto dos extintores de incêndio. Abrimos e ela acendeu o seu cigarro, depois me passou o isqueiro e eu acendi o meu.

Fumei calado. Mas ela parecia ansiosa demais para ficar parada.

- Odeio esperar. – Falou-me.

- Às vezes é um exercício de paciência.

- Não tenho muita hoje em dia. Mas perdi a hora pra a consulta.

- É a minha primeira vez. E eu não sabia que era por ordem de chegada.

- Ah. Essa secretária é cheia de má vontade. Nunca explica nada direito.

- Mas tudo bem. Eu não tenho nada melhor pra fazer mesmo.

- Acho que qualquer coisa é melhor do que ficar esperando em fila de psiquiatra.

- Verdade.

- Me desculpa perguntar, mas por que você está aqui?

- Aparentemente eu preciso lidar algumas coisas que aconteceram no passado.

- Quem lhe disse isso?

- Várias pessoas. Cada uma de uma forma diferente.

- eu não costumo levar em consideração o que dizem sobre mim. No fim das contas ninguém me conhece o suficiente pra meter o bedelho na minha vida.

- Faz sentido. Mas e você? Por que está aqui?

- Eu venho mais pelos remédios mesmo. E pra lidar com a ansiedade que desenvolvi.

- Entendo.

- Ansiedade é uma merda. Mas eu estou quase me acostumando.

- não acho que seja algo que você precise se acostumar.

- Eu sei. Mas é melhor do que viver anestesiado.

- Deve ser.

- Você não quer sair daqui? Não estou afim de esperar uma hora pelo mesmo blablabla de sempre.

- Pode ser. Pra onde você quer ir?. Perguntei.

Eu realmente não me sentia disposto a esperar todo esse tempo pela consulta. E a verdade é que eu não achava que precisasse daquilo. Então a sugestão me soou como mais do que adequada.

- Podemos ir para um bar aqui perto, tomar um chopp.

- Eu topo. Mas como é o seu nome mesmo?

- Elisa. E o seu?

- Rômulo.

- Diferente.

- O que?

- O seu nome.

- Não é nem tão diferente assim.

Ela sorriu e apagou o cigarro na mureta da janela.

- Vamos?

- Vamos.

Ela andou na frente até o elevador e apertou o botão.

Descemos e eu segui andando do lado dela até chegarmos ao bar.

Ela cumprimentou o garçom, e sentou-se numa mesa perto da entrada.

- Dois chopps e uma carteira de malboro vermelho. – Disse.

O garçom assentiu com a cabeça e nós dois sentamos.

- Eu gosto muito daqui – Ela disse.

- Parece legal.

- É sim. Tem muita gente boêmia que vem aqui. Alguns artistas locais. As vezes eles começam a recitar poesia ou tocar violão. É bem atrativo.

- Você vem muito aqui?

- Costumava vir mais, com meu ex marido.

- Você é separada?

- Vai fazer dois anos.

- Sinto muito.

- E por que sentiria?

- Sei lá. Só não sei muito bem o que dizer.

- Não precisa dizer nada, moço. Essas coisas acontecem.

- Acho que sim... Foi sua a iniciativa da separação?

- Foi algo mútuo. No fim das contas nosso casamento não fazia sentido nenhum.

- Por quê?

- Eu descobri que meu marido gostava de sair com travestis.

- Sério? – Perguntei incrédulo.

- Sim. Pagava para os travestis comerem ele. Até que um deles tentou chantagea-lo e ele me confessou.

- Deve ter sido horrível lidar com esse tipo de coisa.

- Não exatamente.

- Mas você foi traída.

- Veja só. Eu não vejo meu ex-marido como culpado disso tudo... o pobre... Ele sempre foi gay. Mas os pais dele eram extremamente homofóbicos. Meu ex-sogro era militar inclusive... o pior dos tipos. Eu chego a ter pena do meu ex-marido, por ter tido que viver uma vida de fachada pra agradar os outros. Hoje ele está muito bem fora do armário. Enfim. Muito mais feliz do que quando estava comigo.

- Não sei o que dizer.

- Quase ninguém sabe.

O garçom chegou com os cigarros e com os chopps.

- Muito obrigado, meu bem. – Elisa disse. E rapidamente deu um gole da bebida.

Tomei um gole da minha e fiquei calado, olhando para ela.

- E você. Qual a sua história?

- Eu tenho dificuldade em deixar o meu passado para trás.

- que tipo de passado?

- Traições. Quebras de confianças... dentro de relacionamentos.

- É comum hoje em dia. Mas por que você iria querer deixar esse passado para trás?

- É o que todo mundo diz pra fazer.

- Todo mundo não sabe de nada. Ninguém sabe de porra nenhuma. E a única pessoa que sabe o peso que você carrega é você mesmo.

- Eu sei. Mas acho que todo esse passado não me faz bem.

- Mas não é uma questão de deixar o passado pra trás. Ou esquecer o passado. Mas é não deixar que ele afete o seu presente.

- Então eu acho que o meu problema é exatamente esse.

- E você acha que um psiquiatra vai resolver o seu problema?

- É o que dizem.

- Bem. Ele vai enfiar um tanto de remédios na sua cabeça, à ponto de você ficar sem sentir muita coisa. E aí depois que você estiver suficientemente castrado, ele vai reduzir as doses, pra que as coisas pareçam mais normais pra você. Teu caso é mais pra um psicólogo do que pra um psiquiatra. E infelizmente, hoje em dia, os psiquiatras acham que podem resolver tudo à base do remédio.

- Você parece estar bem por dentro do assunto.

- Eu sou psicóloga, meu bem.

- Deve ser por isso.

Elisa sorriu e acendeu um cigarro.

- As coisas são mais simples do que parecem, às vezes. Mas as pessoas preferem tomar um remédio pra resolver um problema, do que de fato enfrentar o problema.

- Mesmo assim você disse que estava indo ao psiquiatra por causa dos remédios.

- Por que no ponto que eu cheguei, quando vem uma crise de ansiedade, o melhor que eu faço é me anestesiar por um dia ou dois, do que sair por aí, correndo pelada.

- Pelada?

- Sim. Já aconteceu. Mas faz um tempo. Hoje eu estou sob controle.

- Que bom.

Elisa sorriu e esvaziou o que restava do copo de chopp num gole só. Fez sinal para o garçom pedindo outro e voltou a me olhar.

- Você é solteiro?

- Sou. Não me sinto bem pra estar com ninguém.

- Eu também. Mas para isso que eu tenho os meus garotos.

- Como assim?

- Eu não sou celibatária, meu bem. Eu gosto demais de sexo para viver sem. Apesar de que eu não quero estar em um relacionamento. E não tenho paciência para lances casuais. Então sendo bem objetiva, eu procuro alguns rapazes que me dão exatamente o que eu preciso e não me cobram nada mais do que eu posso dar.

- Garotos de programa?

- Michês. Garotos de programa, acompanhantes... o nome não importa.

- E você se sente à vontade?

- Por que não me sentiria?

- Sei lá. Não é algo muito comum.

- É mais comum do que você imagina. Se as mulheres deixassem o falso moralismo de lado, seria tão normal quanto quando um homem faz.

- Acho que você está certa.

- Mas eu também saio com homens fora desse contexto. Pra mim é só uma questão de praticidade.

- Você parece ser uma pessoa bem objetiva mesmo.

- A vida faz dessas coisas com a gente.

- Queria ser um pouco mais assim.

Elisa sorriu e voltou a bebericar do chopp.

Ela era uma mulher atraente e sabia se expressar. O tipo de coisa que me tirava do eixo. Sabia exatamente o que estava falando e fazendo e não parecia ser o tipo de pessoa que perdia tempo com nada. Por alguns momentos eu achei que ela estivesse flertando comigo, mas não dava pra saber ao certo. Talvez por isso eu não conseguisse desviar o olhar dos olhos dela.

Do outro lado, Elisa parecia estar se divertido com a situação e assim continuamos bebendo.

Depois de um tempo encarando o copo de bebida, ela quebrou o silêncio.

- Somos todos escravos das nossas urgências, você sabia? – Ela perguntou.

- Como assim?

- Somos escravos dos nossos desejos, das nossas vontades, das nossas ansiedades.

- Você acha?

- Quando foi a ultima vez que você se negou algo que queria muito, mas que estava ao seu alcance?

- Não sei.

- Pois então pense mais sobre isso, e da próxima vez que nos encontrarmos você me responde.

- Tudo bem. – Respondi, sem saber se realmente íamos nos encontrar de novo.

- Então. Eu preciso ir.

- Certo. Está ficando tarde mesmo.

- Tenho algo marcado pra hoje a noite. Mas se você quiser, podemos nos ver outro dia. Num contexto mais agradável.

- O que você tem em mente?

- Bem. Você pode me ligar e ai nós pensamos em algo.

Ela tirou uma caneta da bolsa e escreveu um número de telefone num guardanapo de papel.

Peguei o papel e guardei no bolso, e ela abriu um sorriso jovial. Ela realmente parecia ser uma mulher de muitos sorrisos.

- Tá aqui minha parte da conta. Se sobrar algo dá pro garçom.

Ela deixou trinta reais sobre a mesa e se levantou.

Fiquei observando enquanto Elisa andava até a calçada e estendia a mão para um taxi.

Nesse momento, o garçom veio até mim e perguntou

- O senhor quer mais alguma coisa, ou posso fechar a conta?

- Me traz mais um chopp e fecha, por favor? – Respondi.

Quando olhei de volta para a rua, Elisa tinha desaparecido.

Peguei o guardanapo e salvei o número no celular.

Enfim.

talvez não fosse uma má ideia encontra-la novamente.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 16/11/2019
Reeditado em 16/11/2019
Código do texto: T6796438
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