CBH - MISCELÂNIA - PARTE III (cont.)
RECORTE de 2014 - "A música", de HUGO SUKMAN (adapt.) - O filho das revoluções. Em 1963, festinha universitária de bossa nova, gente esparramada em almofadas ou chão, violão de mão em mão, quebraram a dieta lírica de "Barquinho", "Insensatez" e "Minha namorada"... entrou "Berimbau", de VINÍCIUS DE MORAES: "Quem de dentro de si / Não sai / Vai morrer sem amar / Ninguém / O dinheiro de quem não dá / É o trabalho de quem não tem / Capoeira que é bom / Não cai / E se um dia ele cai / Cai bem..." - letra sobre o afro-samba seminal, gerador de novas obras, de BADEN POWELL. Alguém cutucou o jovem bossanovista ortodoxo CHICO: "Não é estranho samba falar em dinheiro?" Sim, estranhíssimo não falar apenas em dinheiro, mas cantar e tocar de forma tão vigorosa a música que começava 'afro' - com toques de capoeira, de estrutura modal, e evoluía para samba, estrutura tonal, recriando a própria origem da música brasileira. Aí, ele percebeu mudança desde que VINÍCIUS-JOBIM-JOÃO GILBERTO anunciaram, 4 anos antes, e revolução da bossa nova com "Chega de saudade": CHICO pré-festinha, filho dessa primeira revolução, tanto que as pioneiras composições apócrifas (não incluídas pelo autor em antologias e song-books) eram pura bossa nova, "Desencanto", ou tentativas de se ajeitar a temática proposta por VINÍCIUS à estética bossanovista, "Malandro quamo morre" e "Tereza tristeza". Após 1965, CHICO, filho da segunda revolução de VINÍCIUS, arrebataria o país, obra prima "Pedro pedreiro", justamente a falta de dinheiro para sobreviver, espera por tudo, "aumento desde o ano passado para o mês que vem". Guiado pela lição de BADEN e VINÍCIUS, clima da redescoberta do samba no bar Zicartola, show "Rosa de Ouro", realidade brasileira ("Opinião", "Arena conta Zumbi"), CHICO faz de suas primeiras composições um inventário da tradição musical brasileira pré-bossa nova - sambas de todo tipo, como os de carnaval, "Quem te viu, quem te vê" e "Sonho de um carnaval", os sincopados, "Juca" e "A Rita", os clássicos novelescos, "Logo eu?", "Com açúcar, com afeto", "Fica" e "A televisão", até bossa nova, "Januária", de modinhas, "Até pensei", marchas-rancho, "Noite dos mascarados", marchinhas, "A banda", e valsas, "Lua cheia" e "Realejo". Ao encarnar o espírito da época, daí para a frente chamada MPB, status de mestre em 1967, sem deixar de ser ídolo popular, herdeiro entronizado - cinquentenário do samba - do triunvirato formado por Donga=Pixinguinha-João da Baiana, ao lado de mestres como Caymmi e Ataulfo Alves - CHICO, dono do bastão passado por VINÍCIUS.
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RECORTE de 2014 - "Os livros', de JOSÉ CASTELLO (adapt.) - Ficção, aflição e angústia. Tensa/irrequieta a relação entre literatura e vida; em CHICO, homem plácido e suave, literatura de agonia e aflição, angústia regida pelo sofrimento e pela falta - inquietude que se derrama pelo espírito dos leitores: ela encena agitação interior e tormentos contemporâneos. Ghost writer José Costa em "Budapeste", 2013 - intensa aflição o domina desde as primeiras páginas, pela própria condição de 'fantasma', que escreve em nome dos outros, nunca de si mesmo; carregado para Budapeste, se transforma em Zsoze Kósta, nova identidade que não lhe empresta firmeza e só o comprime, agora em constante estado de turvação, coração mais aflito. Idem a angustiosa existência de Eulálio Montenegro d'Assumpção, protagonista do premiado "Leite derramado", 2009, que supostamente agoniza em leite de hospital, narrando sua vida... mas para quem narra? Ex-mulher Matilde, filha Maria Eulália ou enfermeira? Dúvida se de fato agoniza ou enlouquece e pensa que agoniza? Realidade intermediária, mundo prestes a tombar, sem fronteiras. sem forma. Toda essa aflição em "Estorvo", 1991, o próprio título sugere protagonista envolvido em incômodo, embaraço, desconforto - origem deste mal através do olho mágico do apê ao ver um desconhecido, barba sólida e rigorosa, visão de uma face que com a barba, encobre a si mesmo, ponto de partida para uma saga aflita entre sonhos e vigília, e nesse mundo desfigurado não há sossego. Muitos os exemplos tirados dessa literatura onde o mundo parece armadilha - coisas não confiáveis, pessoas indignas de crédito, mundo é máquina de triturar e, a qualquer momento, engolir. Leitor de CHICO BUARQUE em aniquilamento, desconfiado da leitura: entendeu, de fato? Tragado pelo estado de agastamento e desconfiança, literatura de desconforto, mas sem largar o livro.
Rio, jornal O Globo, 15/6/14.
F I M