Ritinha estava decidida. Nada e ninguém obstruiriam seu plano de delicadeza e formidade.

Apaixonada por História (graduação que não fizera por restrição de seu velho patriarca que berrava tratar-se do curso de rippie maconheiro), descobriu recentemente que ocorreu no ano posterior a abolição da escravatura, o exílio forçado da pobre Alteza Imperial Isabel do Brasil, obrigada a dormir sob as estrelas semitonadas do céu francês. Adoraria conhecer Paris: fumar um cigarro (que nunca fumara por restrição do médico da família) às margens do Rio Sena, fotografar-se debaixo da Torre Eiffel, bebericar vinho tinto no Café de la Rotonde ou perder-se nas eras e feras dos corredores do Louvre. 


Sempre achou Áurea um nome formidável. Queria ser uma borboleta. Todas as borboletas do mundo deveriam chamar-se Áurea. Dizia que se fosse princesa assinaria uma Lei Áurea para todas as borboletas presas nos casulos do mundo. Mas como não era princesa de reino algum (a vida tivera a deselegância de logo mostrar-lhe a realidade suburbana), tomou uma decisão. A decisão irremediável: assinaria sua própria Lei Áurea.

Tinha uma fiel companheira. A saudade da avó materna por vezes parecia esmagar sua cabeça de mulher aturdida. Porém, sabia que era preciso espremer a memória para ensaboar-se da lembrança: uma anciã, máquina laboral à frente, linhos e linhas ao lado, caneta. Máquina de costura, linhos e linhas, tecido negro e caneta fizeram a primeira toalha de Ritinha. Cheirar a toalha negra tornou-se antídoto para matar saudade. Decidira, subsequentemente: assinaria sua própria Lei Áurea num tecido negro. 

Fechou as portas e janelas do barracão para sentir a claustrofobia de borboleta (que deveria chamar-se Áurea) presa no casulo. É impossível mais de uma borboleta num casulo" - firmou uma tese. 

Pegou a caneta e o tecido negro.

Passado em negrito, presente itálico, não necessariamente nessa ordem. Ambos sublinhados, que é pra dar força e expressividade.

Aureou:

assédio sexual patrão filha mãe-puta & papai-beberrão infelizes  sempre lésbica estupro corretivo preta busao cheio o que fazer??? fome prato rachado cheio indignidade padre: candomble feiticeira inferno jornal centenas lesbicas assassinatos dez doze quinze vinte cinquenta cem arrobas gorda promíscua short curto cachorra feminista falta r* nordestina suja porca... 

Quando rabiscou a última palavra, percebeu que a norma imediatamente tornou sentença. 

O corpo morto estirado no cimento  não sentiu sequer um calafrio que arrebenta na espinha ao apoderar do sonho que ninguém explica e todos entendem. 


Borboletas nasciam dos pulsos cortados. Uma áurea carmesim conduzia-as às frestas possíveis. Levantaram um voo surrealista e invadiram a estratosfera. Despontou-se um arco-íris no céu. 


 
Italo Samuel Wyatt
Enviado por Italo Samuel Wyatt em 14/11/2019
Reeditado em 15/11/2019
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