Assim morreu meu pai. / Meu neto goleiro.

Vi meu pai morrer quando eu tinha apenas sete anos de idade e ele pouco mais de quarenta. Estava na rua de casa, brincando com outras crianças, algumas da minha idade, tantas mais velhas e mais novas. Jogávamos futebol. Nossa bola era feita de meia, costurada por uma das vizinhas. Eu era o goleiro. Ficava posicionado em frente ao gol feito de pedras de paralelepípedo, esperando os chutes que viriam em minha direção.

Vi meu pai chegar a casa. Era a hora da pausa para o almoço. Ele vestia terno cinza claro, chapéu da mesma cor e também usava gravata. Mamãe o aguardava em frente ao portão, de avental amarrado na cintura, manchado de molho de tomate. Um beijo no rosto e meu pai entrou. Sentou-se na ponta da mesa. Mamãe o serviu. Em seu prato havia arroz, feijão e carne ensopada; dava para ver as batatas cozidas e o chuchu nadando naquele molho suculento.

Após a refeição papai foi até o quarto e lá se deitou. Todos os dias antes de retornar ao trabalho ele tirava uma soneca. Quando acordava lavava o rosto, vestia o paletó e voltava para o serviço. Papai era mestre de obras. Construtor de casas. Ele era o responsável por todas as obras ocorridas dentro da usina onde morávamos.

Foi precisamente doze passos, a mão no coração, o rosto assustado, as pernas falseando, a perda do equilíbrio e papai indo ao chão. No silêncio da minha cabeça ouvi pessoas correndo em direção a ele, vi três homens carregando-o nos braços e levando-o para uma casa vizinha. Não deu, papai estava morto.

Lembro-me do desespero de mamãe, das pessoas em volta do meu pai, deitado no chão de cimento queimado e com aquela gente em volta dele. No dia seguinte todos os moradores da usina, desde o mais humilde ao mais rico acompanhavam em procissão o cortejo que levaria o caixão com corpo de papai para o cemitério. Minha mãe, e meus irmãos mais velhos iam à frente, ela vestida de preto, de véu cobrindo o rosto e de olhar distante e perdido no chão.

Com sete anos de idade, eu acompanhava tudo a distância, meio sem entender muita coisa, porém tendo a triste noção de que nunca mais veria meu pai novamente, nunca mais o veria sentado na frente da nossa casa, sentado e com o bandolim apoiado em sua perna esquerda. Adeus o som lamuriante do chorinho tocado por ele, adeus vida de fartura, bem-vinda vida de sofrimento.

Quando o caixão baixou à sepultura deu para ouvir o soluço contido e o choro rasgado e sofrido de mamãe. Eu não lembro se chorei, devo ter chorado. Com a idade que estou eu me recordo do meu pai todos os dias, nos meus pensamentos, nas minhas orações, ou quando estou reunido com os meus filhos, todos já crescidos e bem criados. Perder o pai como eu perdi, da maneira como foi, com a idade que eu tinha, foi sim um doloroso golpe, mas serviu como aprendizado. Cresci e amadureci rapidamente. Tornei-me homem antes do tempo, pulei etapas e virei chefe de família. Ajudava minha mãe no sustento de casa; engraxei sapato, vendi jornal e revista, catei papelão e até comida do chão eu peguei; não me envergonho disso, tenho orgulho em dizer o que fiz na minha vida.

Agora estou aqui. Sentado na arquibancada assistindo ao meu neto jogar bola, ele é goleiro igual o avô foi um dia, igual o pai dele também foi, e agora é vez dele. O novo goleiro da família faz uma defesa decisiva, todos levantam e vibram; gritos de felicidade. Daí eu olho para o céu e recordo do dia em que eu ainda menino me posicionava debaixo das traves de paralelepípedo e olho para o meu neto, grandão, cheio de talento; e eu de sorriso na cara e lágrimas nos olhos finalmente choro, talvez de saudade do meu pai ou quem sabe de orgulho daquele alemãozinho de doze anos, de luvas nas mãos debaixo das traves.

Fernando F Camargo
Enviado por Fernando F Camargo em 14/11/2019
Código do texto: T6794427
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