VOLTANDO A DORIVAL CAYMMI - PARTE II
3---DORIVAL, o carioca. Música popular, um dos inventores da Bahia, exportada para o mundo - encantos, mistérios e personagens de sua terra, e também um dos fundadores do samba-canção moderno, lista pequena em quantidade, grandiosa em qualidade: "Marina", "Só louco", "Você não sabe amar", "Rosa Morena", "Nem eu", "Dora", "A vizinha do lado", "Sábado em Copacabana", "Doealice"... No primeiro ano de carioquice, 1938, CARMEN MIRANDA gravou "O que é que a baiana tem?", muitas portas abertas num mercado altamente competitivo em plena Época de Ouro da canção brasileira. NOEL ROSA partira precocemente aos 26 anos em 1937, mas estavam em plena atividade compositores como ARY BARROSO, LAMARTINE BABO, BRAGUINHA, ASSIS VALENTE, CUSTÓDIO MESQUITA, ISMAEL SILVA... As lembranças da terra natal e canções praieiras foram suas marcas registradas até o fim da vida; foram surgindo temas mais urbanos e românticos, sambas em novos caminhos estéticos, surgimento para a bossa nova. Duas décadas depois, 1959, JOÃO GILBERTO gravou "Rosa Morena" (samba lançado pelo grupo vocal "Anjos do inferno", 1942) no primeiro álbum, divisor de águas da MPB. "Rosa Morena", letra coloquial e direta, cantor tentando seduzir a musa para o samba, espírito e estilo dos bossanovistas anos depois - idem, "Marina", outro recado para outra morena, que partiu do filho DORI, então com 3 anos: "Tô de mal com você"... - 1947, quatro gravações simultâneas, do próprio inclusive. O CAYMMI dos anos 40-50 se inspirou no cotidiano caseiro e na agitada vida noturna no Rio já internacional. Período de intensa boemia, amizade com o jovem empresário CARLOS GUINLE, parceiro de noitadas e até sambas-canções, como os clássicos "Sábado em Copacabana", "Não tem solução" e "Você não sabe amar" - era Dorival com a canção, Carlos com o uísque. A essa altura, a família Caymmi trocara o Grajaú pelo Leblon e depois Copacabana. // Na passagem para os anos 50, um novo núcleo poético, os sambas urbanos (base do que mais tarde seria bossa nova), parte no lado A de seu segundo LP, 1955, lado B destinado aos famosos sambas sacudidos, temas tradicionais e personagens da atemporal Bahia - bifurcação mais ampla no projeto artístico do baiano - nova fase associada à vivência, quase uma década, na então Capital Federal que ditava as normas da modernidade: natureza + progresso, Copacabana laboratório, "Sábado..." anunciando sofisticação da classe média da Zona Sul carioca - bares à meia-luz, restaurantes e boates... prazeres nesse novo mudo. Primeiro verso: "Depois de trabalhar toda a semana. não vou desperdiçar........." - divisão da vida na cidade moderna, trabalho X lazer, trabalho agora visto como o oposto do prazer, da satisfação, um desperdício de vida. Violão mais discreto, menos cenográfico, acordes alterados, até então pouco usados na música brasileira, oriundos do jazz e da tradição erudita - nas letras, lírica do samba urbano na primeira pessoa; imagens de impressionante clareza e definição - rosa no cabelo de Rosa, vestido grená da vizinha, jangada voltando só... - logo substituídas por divagações mais abstratas sobre a natureza do amor. Introspecção solitária, urbana, cantar baixinho, último banco do bonde, perplexidade de um novo amor - o amor tanto pode acontecer como se esvair em mobilidade de afetos - não tem solução......... - ele exime-se de culpa: "quem inventou o amor não fui eu... ressalta a importância do acaso: "de nossas vidas, a vida fez um brinquedo também".
4---DORIVAL, o mineiro. Salvador cidade-mito, Rio cidade-encontro, refúgio longe do mar... No fim de 1943, alugou uma casa para veraneio em São Pedro de Pequeri, interior mineiro, cidade natal de STELLA MARIS - relação de intimidade tranquila, cercado de montanhas silenciosas. Construiu casa somente na década de 80, adoeceu, diminuiu o ritmo das viagens e tomou espaço de maturidade calma, com a mulher, boa parte da biblioteca e montou ateliê para pintura, hoje um memorial pessoal. NANA preservou coisinhas: louça e panelas da mãe, roupa de cama; do pai, a música. Na varanda, cheiro de rosa e jasmim, nenhum barulho de cidade, pássaros fecham bicos às 18 horas. Nos anos 40, trem a caminho de Pequeri - pegava na Estação Leopoldina, no Rio, seis horas de viagem. A neta STELLA conta na biografia"O mar e o tempo" de um período afastados da Zona da Mata Mineira, mas se reaproximaram na década de 80 - em 1987, uma carta aos "pequerienses ausentes", do historiador JÚLIO CEZAR VANNI, convite para o local, ele homenageado no Festival de Música de Pequeri - foram e em 1988 CAYMMI atuou em favor do festival. Em 1993, escreveu um poema clamando pelo nome original da cidade, versos de "São Pedro" com humor e coloquialidade - 1 de novembro, dia de todos os Santos. Numa entrevista ao Jornal do Brasil, 2004, descrevia seu cotidiano em Pequeri: "Ser preguiçoso. Lugar muito agradável (...) ponto de Minas Gerais daqueles de muita paz e tranquilidade, noites muito agradáveis, amizades boas, tudo muito sereno". Na cidade, acordava cedo, com o sol. Ali, observava paisagem, colinas, flores, floresta, pássaros, a natureza (muito respeito e amor). Varanda, para as netas STELLA e ALICE, lugar de contação de estórias. Os 80 anos também foram comemorados em Pequeri, onde a escola de samba local, "Agora vai", desfilou em 1984 com o enredo "Caymmi e Stella - De Salvador a Pequeri". Hoje, a casa, que abrigou o casal por tantos anos, virou o ponto turístico.
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FONTE:
"No Rio, entre mar e a morena", artigo de ANTÔNIO CARLOS MIGUEL -- "Tudo começou ali, em Copacabana", artigo de PAULO DA COSTA E SILVA -- "Em Minas, um lar sereno e íntimo", artigo de LEONARDO LICHOTE - Rio, jornal O Globo, Segundo Caderno, 27/4/14.
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