NO CABELEIREIRO (micro-conto)
Seu polegar gelado tocou o limite entre minha barba e meu cabelo. Tocava ali, nem toda a temperatura podia ser sentida, eram dedoa apenas frios que, quanto mais meus pelos se fossem indo, mais gelado de fato ficariam.
Tinha o olhar concentrado, cerrava seus olhos como uma profissional. Sua pele luzia, como o uniforme. Nada mais naquela cabeça podia se passar, senão seu objetivo. Se pudesse, imagino que podaria fio a fio, observando a aspereza e corrigindo a umidade de cada um, com um esguicho de uma gota só. O contato com minha pele talvez amolecesse seu coração, que não deveria ser mais gelado que sua mão. E firme, a mão era firme, jogava minha cabeça para um lado, fixava na posição segurando firme em minha nuca.
A ponta de suas unhas quebrava a firmeza de seu toque, não por evocar o feminino, mas porque a pressão se convertia em punção. Punção – uma pressão pontuda, algo que tenta perfurar... Menos pela delicadeza, mais pela beleza, pelo cuidado, suas unhas cintilavam. Ou ela era uma asceta de sua profissão. Eu via pelo espelho que levava trabalho pra casa, seus brincos, sua pulseira, seu cabelo, cúmplices da ponta de seus dedos.
A máquina já zunia quando minha nuca tinha se acostumado com a pressão e a punção. “Dois do lado e três em cima”, eu tinha instruído a ela. Cabelo de preto. O cabelo dela não era desse mundo – tinha um cabelo só dela, embora preta também. Primeiro a Três, cortando o grosso, depois a Dois. Esta fazendo um caminho delimitado pelos dedos – cada vez menos gelados –: quase o desenho de um arco cujo centro é a orelha.
Não escapa o detalhe àquelas mãos, terminada a primeira demão de máquinas, ela se esmerava fazendo o “pé”. Desenhava como quem concebesse meu cabelo pela primeira vez, a mesma luz da Criação gritava na navalha impecável e brilhante. A perfeição exige atenção, paciência, mas também aproximação. Ver de perto. Seu corpo quente irradiava calor verdadeiro, atravessando seu avental branco. Alguma alma havia ali, sentimentos se passavam por aquela cabeça – algum deles devia me olhar com, pelo menos,.... piedade.
Antes de partir para a barba, juntou a navalha e o pente, aparou, como quem penteia, as pontas hereges. A tesoura tinha muito menos luz do que sua irmã, mas cumpria sua função e ainda soava como que um chiado fofoqueiro, gostoso de ouvir. Nesse momento fecho os olhos, porque as pontas de cabelo de barba, ressecadas que são, voam em todas as direções e têm preferência pelos olhos. Rito perfeito: o cochicho da tesoura e aquelas mãos de mãe, que seguram o queixo para alimentar.
Retorna o esmero. As bordas da barba sendo delineadas por mãos agora mais quentes, cortando à lâmina cada fio dissidente acima do pomo de Adão. Meus olhos permanecem fechados, confortável, como num cochilo de colo... nem pude rever o brilho da navalha que, com a pressão e punção daquele coração gelado, agora ela enfiava na minha jugular.