ALMOÇANDO COM DORIVAL CAIMMY E STELLA MARIS - PARTE II
Eterno retorno ao brilho eterno.
Acontece que ELE é baiano, de Salvador, 1914, virou síntese universal da baianada artística ao criar em suas composições a mitologia (pode-se chamar assim) de pretas do acarajé, morenas, mar, pescadores, sereias, vizinhas, igrejas, coqueiros... Pertence a vários lugares e tempos - Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e o Planeta Terra.
Das primeiras memórias musicais, "Elégie", do francês JULES NASSENET, que aos 4 anos ouviu na casa de uma (bendita!!!) vizinha e, ainda menino, cantou no coro da igreja católica (era muito religioso, sim!) e nas festas juninas fazia balões de papel de seda coloridos.
Bahia - emergiu a faceta 'pintor', tema central dos personagens, como os pescadores de Itapuã, e cenários locais, como a Lagoa do Abaeté, "escura, arrodeada de areia branca", onde praticava naturismo com amigos. Aliás, lembrar sempre, a Bahia foi o primeiro berço do Brasil. ----- Rio - encontro entre a modernidade ancestral eterna e a contemporaneidade, base para novos voos do samba-canção, e há quem diga inspiração, mais tarde, para a bossa nova ('remember' JOÃO GILBERTO & violão inovador) - inspiração para muitos compositores e cantores. ----- Minas Gerais - cidade de Pequeri, Zona da Mata, temporadas longe do mar hipnotizante, a tranquilidade, o refúgio na maturidade.
O "D" de seu nome e dos irmãos é promessa dos pais, alusão a Deus - Dorival, divinizado. Bisavô veio da Itália para trabalhar na construção de Elevador Lacerda e a mudança de Caimi para Caymmi foi um erro na ALFÂNDEGA. Dorival, patriarca que casou uma cantora e inauguraram uma dinastia principesca, filhos NANA, DORI e DANILO. Apaixonou-se por STELLA MARIS ao ouvi-la cantar "Último desejo", de NOEL ROSA - casou aos 26 anos, padrinhos SAMUEL VAINER, jornalista, e JORGE AMADO. Como escreveu CAETANO VELOSO, tudo bom ou ruim, sob "o jugo da calma de Stella, de sua infinita paciência, doçura e luminosa inspiração". Ainda de Caetano: "Escrevi 400 canções e Dorival, 70, todas perfeitas, as minhas não". De MARIA BETÂNIA, "Para falar de Caymmi, tem que ficar de pé".
Curiosidades sobre ele --- na escola, sofreu 'bolos' de palmatória por ter feito uma trova rimando com 'pororoca' (odiava matemática); ainda criança, ganhou 200 réis por um desenho, e comprou outro lápis - no bolso, até idade adulta, pedrinha, flor, minhoca, palito, coquinho - guardava pedrinhas de riacho e colecionou moedas no fim da vida; pintor como hobby; cantou o mar, doce filosofia de "É doce morrer no mar", porém não sabia nadar; adorava canivete suíço; afanava as bengalas de JORGE AMADO e até pegou um rádio novo para ouvir os jogos da Copa de 70; comia banana de garfo e faca e não resistia a balas; no relógio de pulso, dormir às 23 horas, acordar às seis - refeições em família - bebida preferida, conhaque; amava cadeira de balanço, de palhinha, espaldar alto; agenda para tudo: memórias, afazeres, palavras novas entre 1960 e 80 (cerca de 40 na biografia); sonhador, amava os moinhos de vento em "Dom Quixote", de MIGUEL DE CERVANTES; sua música foi tema de muitas novelas; clássicos preferidos, Bach-Brahms-Beethoven; guardou os dentes de leite dos netos numa caixinha... e também 500 cartas recebidas ao longo da vida, a maioria de JORGE AMADO e TOM JOBIM; detestava gente 'opiniosa', sabe-tudo que dizia "eu acho"... - segredo, admirado por TÔNIA CARRERO ("Um pão!") e pela cantora francesa EDITH PIAF; não segredo, e admirador de FERNANDA MONTENEGRO; explicava a fama de preguiçoso porque nasceu na véspera do Dia do Trabalho - a mulher dizia, sob recomendação médica: "Ele caminha um dia, descansa 40" --- "Tudo bem?" - resposta dele: "Tudo a lesma lerda..." Em 2005, um desfile de coleção de verão inspirada na obra do baiano.
Era Obá Onikoyl, espécie de ministro da entidade XANGÔ no candomblé (mesmo posto de GILBERTO GIL) --- Oju Obá, mais tarde, PIERRE VERGER.
Trabalho --- letra bonita, primeiro emprego aos 13, jornal "O Imparcial", escrever o nome dos assinantes; esperteza de dever de casa para os amigos em troca de ingressos para o "Cinema Jandaia"; primeira música aos 16, "No sertão", lugar onde nascem a vida e a alegria; aprendeu violão aos 17 e criou com amigos o grupo "Três e meio", o meio com 10 anos; tempo de vender barbante nas ruas. Em 1938, foi de Ita para o Rio, mais tarde inspirando "Peguei um Ita no norte", indo morar numa pensão da rua das Marrecas, local de prostituição, polacas fugidas da Europa, que às vezes simulavam "Ein Kranke" (doença em iídiche), daí, a carioquíssima expressão "encrenca". --- Primeiro sucesso em 1939, na voz de Carmen Miranda, "O que é que a baiana tem?" e orientou o gestual da artista, que depois virou sua linguagem corporal, no filme "Banana da terra". Em 1940, primeira participação no cinema, "Estrela da manhã", com PAULO GRACINDO e DULCE BRESSANE. Em 1942, conheceu no Brasil WALT DISNEY durante a realização do desenho animado "Alô amigos". "Acalanto", embalo para a filha recém-nascida. Levou 9 anos para concluir "João Valentão", inspirado num pescador brabo da Vila de Itapoã, o Carapeba. Escondeu por 10 anos "Saudade da Bahia" no bolso de um casaco - composta num bar em papel de embrulho. Inventou o samba-receita, "Vatapá", todos os ingredientes, gravado pelos Anjos do Inferno em 1942, que Caymmi só gravaria em 1957. (Fazendo coro, "Feijoada completa", de CHICO, em 1978, e "Peixe com coco", Clara Nunes, 1980). Aos 70 anos, ganhou de CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE a crônica "Que são 70 anos?" e título de Doutor "Honoris causa" da Universidade Federal da Bahia. Em 1984, dançou em público o passo do "siri-boceta" que JORGE AMADO inventou para o personagem Vadinho - os de Dorival, todos os personagens das canções eram reais. "Tem xinxim e acarajé........." - Mangueira, campeã em 1986, tema sobre Caymmi.
Expressões --- as preferidas eram "Segura o homem!"; "Tá com tudo e não tá prosa"; "Sossega, leão" - criou expressões, como "trabuquear o croquete" e a popular "patolada"; gostava da palavra "dengo", origem do samba "O dengo"; ressuscitou a palavra "balangandã" - CÉSAR LADEIRA, diretor da Rádio Mayrink Veiga, o batizou "Colombo dos balangandãs"; "Maracangalha", corruptela do nome da madeira usada para equilibrar carga nos burros - virou jingle de comercial de rum; em 1955, ARY BARROSO fez um comercial de cerveja, "É doce beber no bar..." - se Dorival reagiu, não sabemos. Muitos logradouros públicos com nome dele - em Salvador, uma avenida, uma rua, uma travessa e uma praça - no Rio, Leblon, onde morou e fez amigos, como VINÍCIUS DE MORAES, há uma rua Caymmi.
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NOTA DO AUTOR:
"Acontece que ele é baiano..." - frase em música do próprio, homenageando os amigos JORGE (que só conheceu no Rio) e ZÉLIA. O primeiro verso da canção "É doce morrer no mar" foi tirado do livro "Mar morto".
FONTE:
"Dorival Caymmi 100" - Rio, jornal O Globo, Segundo caderno, 2014.
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