Expectativa Clarice
E ela esperou.
Cuspiu as sementes da maçã junto das demais de laranja, amendoim e melancia.
Quase imperceptível no tamanho, esperou sob a chuva de Novembro.
Se protegia, porém, sob as hastes abertas de um guarda-chuva.
Seria um erro de tradução terrível se fosse o caso, pois aquele objeto só consegue guardar a chuva mesmo quando está ele mesmo desprotegido e com as hastes abertas voltadas pra cima. Mas, deve vir de nos guardar, o nome. Nos proteger.
Chovia pesada e friamente naquela tarde de Outubro. A chuva, continuava sendo de Novembro, porém.
Ela mesma não entendia e há muito deixou de querer entender, então, só esperou.
A cada silhueta avistada ao final da rua, conseguia esconder os olhos lacrimejados ao levantar demais o guarda-chuva e receber no rosto gotas graúdas vindas do céu.
As silhuetas pareciam sempre desistir dela. Algumas viravam a rua à direita. Outras à esquerda. Outras pareciam fiéis e firmes vindo de encontro, mas elas paravam. Pareciam observar a garota que se molhava mesmo com um guarda-chuva. Alguns segundos sem movimento e logo aquelas silhuetas davam de ombros e retornavam de onde vieram.
E assim foi. Aos 18 anos. Aos 34. Aos 52 e enfim, era o seu aniversário de 67 anos.
Sem os ossos de adamantium de uma jovem, ela agora esperava sentada na mureta baixa da única casada que sobreviveu aos edifícios. Se alimentou, das frutas e cogumelos que nasceram no jardim da casa onde, quando jovem, cuspiu as sementes.
Já não chovia há muito e dessa vez era isso que a maltratava. Era visível a idade, mas, o suco da laranja que espreme nos braços junto da canela e cravo a fazia aparentar bem menos do que realmente tinha, ainda mais para alguém seca de sol. Todos os dias ás 08:00 e 15:00 ela abre os braços após espalhar aquela solução junto de outras sementes, pequenos galhos e terra. Pássaros de todas as espécies deixavam a guerra histórica, a disputa por ouro, casa e fama e se reuniam sobre seus braços e ombros. Ela já não sentia quando lhe arrancavam grandes pedaços de pele e carne. Ela já não percebia o próprio odor que se confundia com um bolo de laranja no Domingo de amanhã. Isso porque, a gratidão dos demais pássaros era sempre bem vinda e cada um na sua função, ajudava na anestesia e cicatrização. Doguido e Dogado, os dois cães da rua davam boas lambidas nos machucados, os urubus traziam no bico restos de outros animais e faziam enxertos na pele. Para fixar melhor, a família de João de Barro compartilhava e distribuía pouco a pouco a sua matéria-prima. Os sabiás chegavam com palha e feno e pássaros de bico fino costuravam tudo á pele.
Já não enxergava muito bem e já havia tido muitas miragens, mas, naquele 2 de Janeiro aconteceu.
Era finalmente quem esperava. Tinha certeza.
Esboçou um sorriso de leve no canto da boca e sob os óculos de fundo de garrafa sentiu a pele irrigar com um par de lágrimas que percorreu os rios do rosto.
Dessa vez não virou a esquina. Dessa vez não desistiu. E a cada passo se aproximava.
Ela se escorou na mureta e fez questão de estar em pé, como no início da jornada.
Era cada vez mais certo e se confirmou.
E os olhos dela brilhavam no reflexo do sol.
A silhueta, mesmo de perto ainda era silhueta.
Mas ela sabia, tinha certeza absoluta de quem era.
Se aproximou mais e mais. E passou.
Passou por ela.
- Podem derrubar tudo. - Foi tudo o que se ouviu.
A casa, o jardim e as árvores já não existiam.
Os pássaros e animais da rua procuraram e não mais viram ela. Alguns dizem tê-la visto se escorando pelas vidraças dos edifícios. Alguns dizem que depois daquele dia, os pássaros espalharam a notícia e desde então todas as árvores que nascem, crescem de braços abertos tentando encontrá-la e a fazer se sentir querida. Em casa.
Da última vez, ouviu-se falar que ela engoliu todas as sementes e se enterrou e que em algum lugar ela renasceu como um pé de todas as frutas do mundo, pra que talvez assim, a silhueta a note da próxima vez.
- Chefe, achei um guarda-chuva.