AMADO E CAYMMI - MUDANÇAS...

1 - O que ainda resiste da cidade retratada por JORGE AMADO (1912/2001) há tantas décadas no guia "Bahia de Todos os Santos - Guia de ruas e mistérios de Salvador"? Em 1945, Salvador era, nas palavras do escritor, uma cidade pobre de hotéis, paupérrima de restaurantes, sem teatros e com pequena vida noturna. E cinemas? O livro foi revisto/atualizado em 1960-66-70-86... adaptações feitas por AMADO. "O livro é um canto de amor à cidade, contando estórias da história da gente, do sentir, da beleza, dos grandes personagens ali nascidos e criados e, sobretudo, da maneira de ser física e original dos habitantes", diz PALOMA AMADO, filha do escritor. A partir de 1945, muita coisa mudou; como dizia Jorge, aquela cidade "provinciana, descansada, tranquila, doce, bela e única", pouco mais de 300 mil habitantes, se tornou uma metrópole "ruidosa, movimentada, turbulenta, sua doçura fundamental entrecortada de violência". A partir de 1986, ainda mais ruidosa e movimentada, mas muitos cenários e personagens listados no guia se conservam. AMADO, novamente: "Dos "filhos" de CAYMMI, o mais louco e angelical, JOÃO GILBERTO. Dos segredos das camarinhas, GILBERTO GIL, acento negro na voz límpida, melodia que desce da senzala para conquistar a praça e o poder. Da festa de Nossa Senhora da Purificação em Santo Amaro, de comício impossível, proibido, desembocou CAETANO VELOSO, barco em mar de temporal!" Entre muitos outros artistas ainda ativos, o escultor MÁRIO CRAVO, ilustrador dos livros de AMADO, como "Suor" e "Navegação de sabotagem": no guia, chamado de "mestre", dono de "uma arte revolucionária", um dos pioneiros da arte moderna na Bahia, e aos 89 anos /artigo-fonte deste trabalho, 2012/, trabalha diariamente pela manhã em seu ateliê. CRAVO falando: "AMADO foi o maior contador de estórias do século XX". A fotógrafa ARLETE SOARES, 72 anos, à frente de sua editora Corrupto, lançou em 2011 o livro "Anônimos", com fotos de suas andanças por China-Tibet-Índia-Nepal-Egito - no guia, AMADO dizia que ela, "devorada sempre pelo fogo da paixão", era um dos "promotores de cultura mais importantes do Brasil" - JORGE embelezava as coisas, otimista, sempre de bem com a vida. No livro, mãe STELLA de Oxóssi, ialorixá do Ylê Axé Opô Afonjá, uma das principais líderes do candomblé do país, muito ligada a AMADO (já gostava dele antes de conhecê-lo: toda moça gosta de escritor, como se ele encarnasse os personagens), assim como CAYMMI e CARYBÉ; em "Bahia de Todos os Santos", ele a define como "prudente e forte, flexível e inteligente, capaz e firme", fazendo retornar os dias de grandeza do ylê. AMADO era Obá Arolu da casa, título dado aos amigos e protetores do terreiro - aos 87 anos, cumprindo intensa rotina de obrigações, rituais e reuniões. Em 1960, ele passou a frequentar o centro, horas conversando com mãe SENHORA, na época STELLA era apenas filha-de-santo - dela e dele, orixá Oxóssi, ligação espiritual. ----- A geografia da cidade espalha-se pelo livro. Em 1986, a Rua Chile é "o coração da cidade", onde "exibe toda a gente", cenário do comércio "mais elegante, do footing, da conversa, negócios também, namoros, brilho, exibição" - importante no passado, era a rua dos coronéis e dos granfinos, "hoje não presta mais", diz o vendedor de água de coco em frente ao Elevador Lacerda (a ser erguido no antigo prédio do jornal "A tarde" o primeiro hotel Fasano do Nordeste, em frente da Praça Castro Alves). Um dos capítulos do guia se detém nas igrejas - diz a lenda que Salvador conta com 365 igrejas, uma para cada dia do ano, mas entre igrejas e capelas somam 70. Uma das mais populares é a de Nossa Senhora do Rosário dos Negros do Pelourinho, "sempre cheia de gente extremamente ligada aos ritos do candomblé" - do século XVIII, reaberta em abril/2012, após ano e meio fechada para obras; Em 1945, poucos restaurantes "apresentáveis" e para uma boa comida baiana AMADO recomendava o "Estrela do Mar", em 1986 a proprietária não mais existia, tradição agora restaurante com o seu nome; neste ano, o "Maria de São Pedro" dividindo espaço com o "Camafeu de Oxóssi", outro restaurante que AMADO frequentava, no Mercado Modelo - moqueca e galinha ao molho pardo, pratos preferidos. // 2 - Perto às águas da Lagoa do Abaeté, já nem tão escuras, senhoras e músicos no ensaio antes do cortejo que no dia 30 de abril de 2014 percorrerá as ruas do bairro de Itapuã, em Salvador; na "Casa da Música", de 1993, a canção "Suíte dos pescadores", coral feminino, dona MARIINHA, 80 anos, presidindo o grupo cheia de animação, e a delicada dona NICINHA, de 76, soltando versos de sua autoria - para acompanhá-las, pequena orquestra com percussão, flauta, violão e violino, todos animados para a noite de homenagens a DORIVAL CAYMMI, programação do grupo cultural "Ganhadeiras de Itapuã", de 2004. Parte dessas mulheres moradoras da região ganhava o sustento enxaguando e quarando roupas na beira da Lagoa, assim como a lavadeira de "A lenda do Abaeté", música de CAYMMI - com a transformação da região em parque metropolitano, na década de 90 foram proibidas de permanecer lá embaixo, só restando os tanques construídos na "Casa da Lavadeira", quase sempre vazios. "Lavar em lavanderia?, diz dona EUNICE-NICINHA. Eu faço então em casa. A gente vinha aqi por causa do Abaeté". ----- A Itapuã que inspirou CAYMMI com coqueiros, pescadores e morenas, está muito mudada, aquele pedaço de Salvador e o resto do litoral ao norte eram isolados da cidade, cerca de 21 quilômetros a pé, às vezes parando em Jaguaribe - com a maré alta, ninguém passava por causa da correnteza e CAYMMI cantava: "quando a maré baixar, vou ver Juliana..." - e como uma vila de pescadores, Itapuã era formada por casas de palha e chão batido, sem água encanada. Aos poucos, a "modernidade": novos donos de redes na praia, estradas asfaltadas e uma base aérea avançando sobre a região, a colônia virou bairro balneário e a especulação imobiliária o incorporou à cidade. Nos tempos de CAYMMI, pescadores espalhados por toda a costa, atualmente, associados da colônia de pesca, apenas 200 pescadores profissionais cadastrados, os mais antigos acabando, poucos filhos 'herdeiros'. Trânsito engarrafado, barulho, profusão de casas comerciais, barracas de comida e bebida; ainda assim, o mar e o reencontro de paisagens e outros recantos que encantaram CAYMMI e, mais tarde, VINÍCIUS DE MORAES, a magia ainda viva na temperatura, na vegetação, no coqueiro, no mar, no vento e na morena. Barraca do acarajé de CIRA, tradição do tabuleiro que herdou da mãe. Vendedores ainda apregoam peixes. Nas ruas de Pituba, comum o anúncio de "camarão pistola, marisco e vermelho". ----- Aqui e ali, certas pérolas do passado e a memória, alma do povo, se recusando a se entregar à realidade industrial.

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FONTES:

"Passeio pela Salvador de hoje e de 1986", artigo de MAURO VENTURA -- "O que é que a Bahia ainda tem?", artigo de JULIANA BARRETO FARIAS - Rio, jornal O Globo, 29/7/12 e 27/4/14.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 09/11/2019
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