SEARA VERMELHA, de JORGE AMADO (1946)
Na montagem, esse texto permite uma aproximação da forma barroca, isto é, arquitetura textual de palavras soltas e depois recolhidas num só verso final, isto é, os elementos se isolam e depois se entrelaçam até a solução derradeira. Tema "viagem" - ideia central da obra, toda a narrativa comprometida influenciando e obrigando o leitor a uma definição. Título da obra extraído de um verso de CASTRO ALVES - "Cai, orvalho do sangue escravo, / Cai, orvalho na face do algoz. / Cresce, cresce seara vermelha, / Cresce, cresce, vingança feroz..." ----- Saga de uma família camponesa expulsa pelo latifúndio no início da década de 30.
1---ESQUEMA GERAL DA OBRA - articulação do romance ----- Prólogo - a seara, a festa -- Livro primeiro: os caminhos da fome, a caatinga, o rio -- Livro segundo: as estradas da esperança, José, João, Nenen -- Epílogo: a colheita, Tonho. ----- Feita a apresentação do espaço físico geográfico (Prólogo e Livro Primeiro), são mostradas as tentativas de solução para o Nordeste, reificadas pelas quatro personagens (Livro Segundo e Epílogo) - José, João, Nenen e Tonho - que indicam os caminhos testados para a anulação das causas e consequente ruptura do círculo vicioso que retrata a estrutura da região. Relações humanas eu/outro nos grupos sociais fechados e as formas de comunicação entre eles. ----- Um grupo familiar nordestino se desloca na direção de São Paulo, utopia frustrada, e pelo caminho vencem ou são vencidos por obstáculos, dispersos, os elementos integrados a novos grupos. ----- Lévi-Strauss, em "Tristes trópicos", sobre as sociedades ditas primitivas: "...o conjunto de costumes de um povo é sempre marcado por um estilo, que formam sistemas - estes não em número ilimitado. (...) As sociedades humanas, como os indivíduos, jamais criam de maneira absoluta, mas se limitam a escolher certas combinações num repertório ideal que seria possível reconstituir."
SEARA VERMELHA constitui-se num universo fechado onde se movimentam as personagens, configuradores da estória e informadores dos acontecimentos Aspecto linear dentro da geografia, certa circularidade detectável nos elementos da dispersão (diáspora) e também nos grupos de parentesco biológico e/ou ideológico. O Nordeste brasileiro é mostrado com um sistema de natureza estática que tende a não se modificar, apesar das tentativas de alteração interna dos seus elementos que o querem romper - Nordeste, sistema complexo, resultado da combinação de sistemas elementares (unicidade dos elementos e diversidade das relações, isto é, o viver em sociedade), de natureza dinâmica, movimentos sem cessar, atraindo-se e/ou repelindo-se, entretanto sempre absorvidos pelo englobante sistema maior - noção de reciprocidade é a oposição do eu e do outro: a transferência do valor de um indivíduo a outro os transforma em companheiros e agrega uma nova qualidade ao valor transferido. // Ao lado do sistema familiar, surgem sistemas de aliança e de natureza sociológica (não confundir com relações consanguíneas biológicas). Como indivíduos, José-João-Zefa etc. pertencem à série Natureza, como também o jumento Jeremias e a gata Marisca; mas racionais, pertencendo a grupos sociais determinados, agindo subjetivamente e escolhendo seus caminhos, os elementos humanos inscrevem-se na série Cultura; tendo vontade própria, relacionam-se com elementos do seu grupo (relação endogrupal) ou de grupos diferentes (relação hetero e/ou exogrupal). Como indivíduos da série Natural, as personagens se equivalem: camponeses ou fazendeiros, cangaceiros ou soldados, cada um por si como exemplar de uma espécie; personalizados, passam a pertencer a grupos aculturados. dotados de procedimentos, valores e convicções próprias que os diferem entre si. // Constituintes grupais - O primeiro e mais amplo sentido da palavra "grupo" implica noção de relação, isto é, ligação a um conjunto de elementos pertencentes a um mesmo sistema de categorização, seja relação natural e/ou cultural. Em SEARA VERMELHA. grupos - família de Jerônimo, beatos, cangaceiros, soldados, fazendeiros etc. - numa relação geográfica, os elementos de um grupo se deslocando para outro, de formação ideológica, social, profissional etc. - não estratificados, imutáveis dentro do grupo primitivo, pois a estória se arquiteta na rotação - alterações observadas dentro de contextos diferentes. // O grupo familiar - Homem, ser gregário por natureza, família é o primeiro grupo social, formação ao nível biológico e as relações de consanguinidade atuam como princípio aglutinador. Principais grupos familiares: a) família do coronel Inácio, proprietário do latifúndio; b) família de Jerônimo. --- Relações endogrupais deste grupo familiar - elementos unidos primeiramente por fatores arbitrários de consanguinidade e subgrupos de ordem subjetiva no interior do próprio grupo, ou seja: 1-elementos que abandonam o grupo por vontade própria a fim de encontrar uma saída individual para seus problemas --- "fiéis entre si": José-João-Juvêncio(Nenen)-Zefa-Agostinho-Gertrudes; na tentativa de solução pessoal, quatro se integram em novos grupos: José/cangaceiros, João/Polícia Militar, Zefa/beatos, Juvêncio/Polícia militar e depois Exército; abandonam o grupo primitivo, não para se integrar a novo grupo, ficam pelo caminho, trabalhando numa fazenda: Agostinho e Gertrudes --- 2-Outro grupo é de "fidelidade ao grupo" e dele fazem parte os elementos que abandonam a família não por vontade própria: os mortos pelo caminho, Noca e Dinah, mortas na caatinga, Ernesto, morto no rio, e Marta, que fica em Pirapora depois de ter se prostituído para conseguir a passagem para Jerônimo. // Sistema de latifúndio - O grupo familiar de Jerônimo pertence a um sistema elementar, o latifúndio, que por sua vez se insere num sistema complexo, o Nordeste. Latifúndio, dois grupos principais: minoria economicamente forte, os fazendeiros , acima da maioria esmagada, completa relação de dependência dos primeiros, os camponeses - oposições sob a forma de luta e tensão, resolução desse antagonismo corresponderia à situação ideal. Estrutura do latifúndio é atitude de mando dos fazendeiros X obediência por parte dos camponeses. Além dos dois grandes grupos, dois conjuntos unitários: Bastião, a quem o coronel Inácio doara um pedaço de terra X Leocádio, dono da venda - Bastião, na intersecção dos dois conjuntos, proprietário e... obediente. Leocádio, unitário, não pertence a nenhum conjunto - é uma força concorrente, não proprietário, mas insubmisso. // Estrutura social do latifúndio - Como decorrência do poder econômico, um novo tipo de poder é o político, dono da terra tendo controle total da região. Entre as duas classes do latifúndio, um grupo intermediário usa a força das armas, duas violências - polícia, institucionalizada, e cangaço, não; no sistema de latifúndio, só acidentalmente a fazenda, base econômica, precisa de banditismo e de polícia; aí, os três formam o sistema do sertão geográfico.
2---ROMANCE DO ESPAÇO GEOGRÁFICO --- Preconceito difundido que a causa da miséria do Nordeste é a seca, região semi-árida impede o desenvolvimento. JORGE AMADO, em "Seara vermelha" procura desmistificar esta crença, mostrando que a miséria do Nordeste independe de fatores apenas climáticos. Seria, em resumo: miséria = não água, caatinga --- miséria = água, rio São Francisco (segmento principalmente no Livro Primeiro). Não se pode dizer que miséria/morte sejam devidas apenas à presença/ausência da água, pois se encontram em ambas as eventualidades. ----- a) Miséria = caatinga. Espaço geográfico do sertão, grupos humanos inconformados. Excetuando-se a força policial, que só esporadicamente entra na caatinga, três grupos humanos; cangaceiros. beatos e camponeses em trânsito. Na caatinga, não diferença de classes, mas a existência de lideranças, grupos permanentes aglutinados em torno de um chefe, acolhido pelas virtudes de chefia, que é um direito de conquista, substituído por morte como continuação do processo. Para o jagunço, liderança armada, habilidade, experiência e malvadez; bordão do chefe religioso é força capaz de romper com o sistema do latifúndio - nos dois grupos, homens arregimentados entre os trabalhadores das fazendas, atuando no sentido de oposição ao sistema, bases ideológicas sob o comando de um chefe - relações sexo grupais de troca: proteção e/ou esperança de salvação. Em trânsito, os camponeses pensando na realidade utópica: São Paulo. ----- b) Miséria = rio. Se há morte na caatinga pela escassez de água, há morte também no rio, de ordem social. Fome da caatinga X doença do rio, disenteria fatal que dizima camponeses não acostumados com excesso de alimentação. No rio, diversificação de tipos humanos devido ao poder aquisitivo: preço da passagem os separa e divide em ricos e não-ricos, estes subdivididos em retirantes e barqueiros - sem relacionamento, confinados no navio, espaço comum sem comunicação.
3---ROMANCE DA UTOPIA --- Os componentes do grupo familiar (Jerônimo e familiares) , assim como grande parte do Nordeste pobre, abandona sua terra em busca de outra, livre e farta. Embrenham-se na caatinga e começam a viagem. Ao sair da fazenda, 13 "viventes" - Dinah, mulher de João Pedro, muito supersticiosa contara pessoas e bichos, "T'esconjuro..." - Jerônimo, sua mulher Jucundina, filhos Marta e Agostinho, netos Tonho, Noca e Ernesto; irmão de Jerônimo, Joaõ Pedro, sua mulher Dinah, filha Gertrudes e Zefa, irmã de Jerônimo e João Pedro, jumento Jeremias e gata Mariusca; à exceção de Marta, morrem pelo caminho Agostinho e Gertrudes, chegam a são Paulo apenas Jerônimo, Jucundina, João Pedro e Tonho. Atribulações durante o percurso, obstáculos para camponeses em geral: 1-caatinga, pior inimigo é a fome, obstáculo de natureza fisiológica; 2-preço da passagem do navio, de ordem econômica; 3-rio, onde grassam disenteria e impaludismo, de natureza patológica; 4-passe para o trem de ferro, de ordem burocrática. Na caatinga, mortos Dinah, a gata comida pelos retirantes e o jumento que comeu erva venenosa; Ernesto morre de desinteria no navio, pequeno corpo atirado ao rio; Agostinho e Gertrudes abandonam o grupo e ficam como trabalhadores numa fazenda, sem esperança na utopia paulista; Marta é expulsa pelo pai, mulher-dama que se vendera ao médico de Pirapora em troca do passe de Jerônimo. Cerca de menos de 40% da grupo familiar faz a travessia - saem da fazenda para a caatinga 11 pessoas e 2 animais de estimação; saem da caatinga 6 pessoas e chegam a Juazeiro; saem de Joazeiro 5 pessoas e chegam a Pirapora; saem de Pirapora 4 pessoas e chegam a São Paulo. Saem do grupo - mortos, 3 pessoas e 2 animais; vivos 2 pessoas por conta própria, 1 sem vontade própria. Do grupo primitivo, só chegam a São Paulo os velhos (primeira geração, Jerônimo-Jucundina-João Pedro) e um dos netos (terceira geração, Tonho), todos os outros tragados pelo percurso - Tonho resume a realização das esperanças - como Moisés no êxodo, a geração intermediária é anulada para que as esperanças na terra prometida não se contaminem com os ranços da servidão. // São Paulo, configuração da utopia. Os camponeses, sem condição de lutar em sua terra, enfrentam duas alternativas: ou uma mudança de região (êxodo) ou o ingresso em um grupo ideológico: força policial, cangaço, fanatismo religioso -- o êxodo leva geralmente a São Paulo, movimento migratório em duas direções, ida e volta, o que confirma as características "de trânsito" desse grupo - na viagem de ida, visão da terra paulista idealizada, ouviram maravilhas da terra escolhida, para uns a esperança X não o que ouviram, mas a própria experiência vivida, a desilusão dos retirantes que voltam desiludidos - maior miséria dos que ficam ou dos que retornam? Palavra "utopia" inadequada para designar São Paulo. (Também idealizadas sociedades perfeitas, organizadas socialmente com alto grau de desenvolvimento, capazes de eliminar os problemas que afligem a humanidade, em "Paraíso perdido", de Milton, e "Admirável mundo novo", de Aldous Huxley - estas obras apresentam, como constante, sociedades isoladas, perdidas nas montanhas ou no oceano, desconhecidas e desconhecendo o resto do mundo, evitando contato com outro tipo de cultura, não existindo desnível social nem formação de classes.) A solução dos problemas do Nordeste não se resolve em termos geográficos regionais e a saída é a recuperação do homem através da instituição de meios que o possam nortear, o mais importante é a instrução, que engloba as necessidades essenciais à sobrevivência: saúde, discernimento, independência ideológica e econômica, livre de ser joguete em situações que lhe são impostas.
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FONTE:
"O romance nordestino de "Seara Vermelha", de Jorge Amado", de Maria Consuelo Albergaria Prado - Rio, Revista Cultura, MEC, ano 12, n. 42, jan.´dez./84.
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