O GRANDE MENTECAPTO, de FERNANDO SABINO
1---Introdução - Livro divertido, hilário, alguma dramaticidade e crítica social, várias leituras superpostas: estória cheia de perseguições, crueldades e temperamento do homem mineiro, no geral desconfiado, reservado, fatalista e fértil em ardis - montanheses desconfiados com novidadeiros (hoje fake news) e 'grandezas' inventadas. Genealogia - lentos pela geografia acidentada, cautela com riscos e imprevistos, herança indígena; da imigração judaica, tenacidade em propósitos, hábitos de poupança, gosto por metais, pedras e dinheiro; dos portugueses, herança de probidade e amor à família e à terra, disposição para parcimônia, sobriedade e frugalidade; o pouco de entusiasmo, dança e bate-papo vem dos baianos e mais nortistas; dos negros, afetividade, doçura, fantasia e queda por folguedos. Caldeirão de influências, muito amalgamento em longos anos de lutas e tumultos, sempre senso grave da ordem em paralelo a resistência, tirania e opressão. "Ser mineiro é um estado de espírito, um jeito de ser. Manhoso, ladino, cauteloso, desconfiado, prudência e capitalização", palavras do próprio FERNANDO SABINO, cronista, contista, romancista... e sobretudo mineiro: predileção visível pelo humor. ----- Narrativa a partir de um elemento real - o escritor CYRO DOS ANJOS, também mineiro, na sua juventude conheceu o louco Geraldo, sempre engraçado e amigo dos estudantes, personagem rico, agora sob escritor onisciente que finge surpresa ante ações imprevistas - no trajeto biográfico, elementos picarescos e paródias, com mineiridade brejeira.
2---Elemento picaresco - Ao início do romance, definição do gênero e dedicatória em linguagem insólita, referindo-se à esposa, dama inatingível de um cavaleiro. Ora, antes de ser nobre, GERALDO (nome tradicional nas 'alterosas'), o caçula de 13 irmãos, nascido com o pai já desinteressado em sexo em casa, nasceu quase por acaso, ironicamente meio 'órfão', família numerosíssima, similar a desditoso Lazarillo. O livro não cuidará do destino de todos os irmãos, único personagem é GERALDO em característica picaresca. Atmosfera tem sombra de fatos sórdidos, duvidoso passado de que o pai tivesse cometido um crime. GERALDO é solitário, diferente de todos, enorme prazer em nadar à noite, conversando com estrelas, "solidão como uma força, dono do mundo e de si mesmo", e isto vai até o episódio do Pingolinha, menino que tinha GERALDO como herói por ter conseguido parar o trem. O menino morre ao tentar imitá-lo, rito de passagem do protagonista, conflito o faz chorar por toda uma noite, assiste ao primeiro enterro; acidente em eterna memória, toque de melancolia de uma "infância perdida". Após, solidão será diferente, pensativa, ensimesmada, afastando-se de todos, inclusive irmãos. Impulso andarilho o leva a lugar não sabe onde, resolução de seminário para ser padre, experiência que exarceba sua estranheza perante a sociedade, cômica sua linguagem "erudita", demarcação da missão de viramundo, "ainda que o mundo seja só Minas Gerais". Quando as aventuras parecem demasiado fantásticas, o narrador usa o recurso da verossimilhança, escudo para todas as estrepolias do personagem, pequenos grãos de verdade. Neste contexto, mencionada uma parenta em contato pessoal com GERALDO, sendo portanto elemento digno de confiança para dar fé ao relato das aventuras, transcrição de diálogo entre Viramundo e a tia. No capítulo seguinte, episódio do casarão assombrado. Verossimilhança situando-se o personagem num local determinado, momento concreto, GERALDO VIRAMUNDO integrando o Esquadrão de Cavalaria do Exército, em Juiz de Fora; amparado em tempo e espaço, novas ações mirabolantes por toda a narrativa. ----- 2.1---Um narrador onisciente, ladino, solitário. Biografia, narrador picaresco conhece todo o interior do personagem, mesmo quando ladinamente dá a entender um equívoco, ao dizer que um padre amigo, que estudou em Mariana na época, contou de um rapazinho que no terceiro dia de aula deu uma lambida na mão do bispo, Sua Eminência em visita ao seminário; pelos dados anteriores de VIRAMUNDO e sendo a época a mesma, não duvidarmos, embora o narrador maroto o mencione estar 'diferente' ao deixar a casa paterna: nem narrador nem leitor crêem. Ora, narrador soberano, digressões constantes na obra, ora para uma pausa entre duas ações ora para diálogo entre narrador e leitor, o primeiro declarando que não vai revelar agora os pecados da viúva Correia Lopes - eles bastariam por si para fazer com que GERALDO VIRAMUNDO de novo adormecesse. E narrador segue no relato das controvertidas aventuras do biografado. Outra razão para digressão é explicar algo necessário, como tediosas minúcias da política local ou negar um artifício: "Limito-me a vender o peixe (=repetir o que me contaram) - no caso, o cavalo - como me foi vendido... (...) sem realismo mágico" - em episódio anterior, dúvida num personagem sobre tal possibilidade: "O capitão, pensativo, coçou o queixo e falou para si mesmo: Então ela saiu montada noutro. Ou será mentira daquele cavalo?" Logo após negar intenção de ingresso no realismo mágico, admite o fato insólito de cavalo falar, pelo fato de já ter visto "cavalgaduras bem falantes" e narra este episódio que culmina com a fala do quadrúpede. Outra digressão anunciando que não vai usar a técnica de JORGE AMADO, ou seja, introdução de episódios com função decorativa, mas é justamente o que faz, quando em busca de "apoio" cita OSWALD DE ANDRADE que expulsou um personagem de sua obra. Dionísio pretextou para VIRAMUNDO um motivo qualquer e se afastou para sempre - protagonista não perdoara ao estudante a quebra do encanto. Mais uma digressão o episódio do castelo assombrado - ao contrário dele, VIRAMUNDO "absolutamente imperturbável, em vez de despencar escada abaixo como o narrador o faria, avança destemidamente..." - narrador é agora testemunha ocular da ação e não depositário de um mentiroso: senhor absoluto da narrativa, que controla a bel-prazer, fará muitas digressões, controlando o ritmo das ações com segurança e humor. ----- 2.2---Ritmo da comicidade, ritmo da vida. Sucessivas coincidências, às vezes absurdas, intuito de desenvolver as ações. Após um raro abatimento, estímulo de nova aventura, ritmo de várias batalhas contra o mundo e a sociedade, triunfo através do humor, de uma aceitação filosófica que o torna superior e imbatível. Abatido, mas veio de súbito a consciência da própria mentecapacidade, reagiu; ainda abalado com Dionísio, que lhe apontara uma realidade amarga e vazia, crise com reação inevitável, bastando mostrar solidariedade num novo amigo, como o caso do presidiário João Tocó, VIRAMUNDO em nova causa. O acaso, coincidência, o fez encontrar e apaixonar-se por Marília Ladisbão, transformando-a na Marília do poeta, amor impossível - no mesmo acaso, ela de novo em seu caminho para que ele, já sabedor do engodo epistolar a que fora submetido, cavaleiro triunfante renunciando ao grande amor - ao dar com os olhos nela, que com os demais o aplaudia entusiasmada, ele fez uma reverência, como toureiro ante a presidência das corridas, ela acenou, riu divertida e pediu-lhe que se aproximasse - ele limitou-se a um olhar, ao mesmo tempo mensagem de amor e despedida para sempre, virou as costas, perdeu-se na multidão: renúncia e irônica desgraça. Derrubado, espezinhado, sofre e mantém-se autoconfiante, bem humorado e indestrutível - personagem cômico. Grave crise após a morte do cego Elias: "O que fizeram com você, Elias... por que fizeram isso meu Deus" - tumulto no auge em sua alma, como ondas gigantescas que se chocam furiosas contra a pedra, tentando romper os diques. Após essa imagem hiperbólica, adormecido ao amanhecer, pomba branca sobre a cabeça, encontrara a paz - logo a seguir, ação, pegando touro à unha: até que cumpra seu destino, ciclo de aventuras redimido e intacto em sua pureza.
(Segue.)