CBH - MISCELÂNIA - PARTE V
RECORTE /rasgado/ de 1991 - Artigo (fragmento) onde "ele" é o tema principal, de MILTON BELLINTANI (adapt.) - (continuação) ......... Era 1967 e ele cantava "Roda viva" com o MPB-4. Apostei com meu pai 1.000 cruzeiros velhos, um Cabral, em "Ponteio", defendido por Edu Lobo e Marília Medalha - ganhei o Cabral na sensação de traição, coisa séria, contra pai, mãe e Chico, que sem saber era quase da família. O ano passou rápido. Na escola, trocou-se o lápis pela esferográfica, letra enfeiou. Viagens de papai para o interior, Aero-willis no acostamento para tiro ao alvo nos eucaliptos. "Marighela acha que o Partido Comunista deve fazer a luta armada." No caminho da casa da avó, avenida Rebouças, um soldado em cada esquina. Congresso fechado. AI-5. Festival Internacional da Canção. "Sabiá" X "Caminhando". Chico, Jobim e as irmãs Cynara e Cybele contra Geraldo Vandré e todo o Maracanãzinho. Chico era unanimidade, porém maior vaia de sua vida quando se anunciou a vitória de "Sabiá", canção do exílio sobre as flores de quem fazia a hora e não esperava acontecer. Vandré e Chico no exílio. Copa do México, Brasil tricampeão. Guerrilha urbana, censura, tortura, meningite. Agosto. Dia dos Pais, maio passara, esqueci de pedir dinheiro para Dia das Mães - da mesada, uma sidra para o pai ("Eu não bebo essa porcaria...") e um compacto para a mãe, sorriso de aprovação. Chico voltou do exílio em Roma e uma filha, Sílvia, ao colo - "Faça barulho na chegada", recomendou Vinícius de Moraes. Programa Flávio Cavalcanti. Perguntas evitando um ano e meio fora do Brasil. Cantou "Apesar de você", em seguida seria proibida, começo da fase de perseguição contra tudo com sua assinatura - primeiro, deixou de aparecer na tevê, músicas parcial ou integralmente censuradas. Calabar, peça escrita com Ruy Guerra, proibida, também proibida divulgação da proibição, dessa vez o elenco não apanhou do Comando de Caça aos Comunistas, como com os atores de Roda Viva. Mamãe comprou o novo disco, Chico Canta, capa branca como protesto à proibição da peça, várias música sem letra, crítica social contra país em dias sombrios. "Não existe pecado ao sul do Equador" - "Ai, essa terra ainda vai cumprir seu ideal / ainda vai tornar-se um imenso Portugal", referência à ditadura salazarista - com Chico, aprendi o que era metáfora, antes da aula de gramática no terceiro ano ginasial. "Não deixem seus pais votarem em Quércia para senador, vai entregar o país ao comunismo", 1974, enfático o professor de moral e cívica. Dessa vez, Brasil em quarto, Copa do Mundo, Alemanha. Caíram de moda comunismo e aulas de moral e cívica. Chico lança Sinal Fechado, cantando, entre outros compositores, um tal Julinho de Andrade; eu nunca ouvira alguém "chamar o ladrão" nem sabia quem era Paulinho da Viola, autor de "Sinal fechado". Acabou medo da meningite, pai preso, choques no DOI-CODI. Li Fazenda Modelo, não entendi nada. A obra de Chico e prisão do meu pai, portas abertas para o mundo adulto; eu já podia dormir depois de 8:30, mesmo sem ter 18 anos, a adolescência esperaria outra oportunidade. Nunca fui a bailinho, só tocavam músicas "alienadas", jamais "Construção" ou "Quando o carnaval chegar" como trilha musical. Primeira namorada veio tarde, dois anos mais velha, seus 19 a faziam mulher; adorava os olhos verdes de Chico, mas mal sabia a letra de "A banda", perdoável porque era bonita; todos os dias eu levava uma letra de música, primeiro as mensagens de protesto, acabaram, tive que descobrir as outras facetas das letras de Chico Buarque, gastei um bocado de papel; uma noite me convidou para o teatro, "Gota d'Água", Bibi Ferreira, Medeia fantástica, eu sabia de cor todas as músicas - parei de me sentir mexicano que atravessa a fronteira dos EUA, quando a moça da portaria pegou o meu ingresso, carteira escolar, idade falsificada para 18. Alguns meses antes, ciclo de leitura de peças proibidas no Teatro Ruth Escobar, anunciaram que Chico e Ruy Guerra estariam presentes na noite de leitura de Calabar, debate com o público; ninguém acreditava que ele fosse, mas completa lotação duas horas antes, assisti à leitura empoleirado no ponto mais alto da plateia, quase não se via o palco - ele identificado numa camisa florida, moda na época: primeira vez em que senti que Chico era de carne e osso, não personagem de toca-discos, como Pedro e o Lobo. Anos mais tarde eu o descobriria mais osso que carne, numa dividida, canela contra canela, partida de futebol - ele jogando no seu próprio time, o Polytheama, ao lado de "craques" como Vinícius Cantuária, Chico Batera e Vinícius França - os dois primeiros, músicos, o último, membro do staff buarquiano. Na véspera da estreia do show Francisco em São Paulo, onde Chico não se apresentava há quinze anos, recebi ligação da revista Placar, onde trabalhava, 1987 - era o divulgador do show de reestreia de Chico, doze anos após ter pisado o palco pela primeira vez, queria jogar futebol naquele dia para fazer o show mais relaxado e faltava adversário, pedi que o redator-chefe liberasse alguns repórteres e fotógrafos, não seria possível, fui sozinho para depois fazer uma nota para a revista, chance de entrevistar quem me parecia inintrevistável - fui escalado para jogar no gol de tima formado por funcionários do Palace, casa onde Chico mostraria o show Francisco - técnicos de iluminação, cenógrafos eletricistas, perdemos por 9 X 2, entre F vista jamais saiu; Chico marcou 3 (novo Pelé?), porém melhores gols no campo da MPB. Li certa vez que ele se dizia compositor por acaso, queria mesmo era ser jogador de futebol, impressão de que ele largaria tudo, carreira, fama e fortuna para defender as cores de alguma camisa num jogo de campeonato. Ele como, dentro do campo? Nada de moço tímido diante das câmeras ou o letrista talentoso... - meião abaixado, camisa fora do calção e um jeito assim desengonçado, o atacante Chico Holanda: Buarque ou Francisco, nomes aristocráticos demais para jogador de futebol - transfigurava-se, reclamava de tudo, não levava desaforo para casa, "O meu, maneira nas entradas"; acha que gol de canela, se for seu, é o "gol do Fantástico", só passando bola para os companheiros se não tiver outra opção: em suma, um cafajeste - como se diz, bastante real fora das quatro linhas. Das cerca de 400 canções que compôs, 100 versam sobre mulher ou tem temática feminina - no começo, conquistou o mulherio com jeito de menino abandonado e olhos de esmeralda, acabou por revelar a alma - ouça alguns de seus 29 discos, segredos femininos estão lá. Só não descobri ainda como dizer à minha filha Carolina, 8 anos, que Chico não fez a música para ela.
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FONTE:
SP, revista Cláudia, ano 31, n. 362, nov./91.
F I M