A ÚLTIMA DO COLIBRI

Otacílio finalmente localizou Natália e pôs-se a observá-la. Desde que se transformara em colibri, ele vivera bem mais vigoroso, ativo e feliz do que em sua pregressa existência humana, mas subitamente começou a sentir que algo lhe faltava. A antiga namorada poderia completar essa lacuna.

Seria preciso, contudo, avaliar a situação com absolutas objetividade e isenção. Teria de estar seguro de que a moça requeria idêntico processo de transformação. Não podia permitir-se transgredir o código dos colibris salvadores da humanidade (que ele antes alcunhava, erroneamente, de vampiros) e, movido apenas por sua paixão ressurgida, injetar na veia de Natália o néctar que a faria ingressar no seleto grupo de beija-flores. Só caberia esse passo caso viesse a verificar que sua amada levava uma vida medíocre e desprovida de futuro, como se passara com o próprio Otacílio antes de ser convertido.

Semanas voaram sem que o passarinho, já meio aflito, chegasse a qualquer conclusão. O cotidiano da moça pouco parecia haver-se alterado, a não ser pela ausência, até então inexplicável para ela, do namorado de outrora. Natália continuava no mesmo emprego, saía bastante com os amigos, tinha casos ocasionais com um ou outro rapaz, curtia o cinema, teatro, bares e restaurantes. Aparenta estar feliz, refletiu o colibri, não sem certo toque de decepção e melancolia, ao julgar ameaçada a expectativa de trazer a menina para junto de si em seu novo mundo alado.

Não se dando por vencido – afinal, coração e energia de beija-flor são sabidamente poderosos -, continuou na vigília dia e noite sem esmorecer. Passava horas na janela do escritório da ex-namorada, a buscar indícios de monotonia com o trabalho ou com os colegas que a cercavam. No apartamento dela, mostrava-se ainda mais ousado, penetrando por eventual abertura na janela ou na porta de vidro da pequena varanda para ocultar-se atrás de móvel ou cortina e acompanhar, incansavelmente, todas as conversas e expressões no semblante da jovem. Com extrema resignação, assistia às ocasionais cenas amorosas de Natália com algum amante de turno. Nessas horas, particularmente constrangedoras para ele, Otacílio recordava-se dos bons momentos em que desfrutara do amor da antiga companheira e arrependia-se das vezes em que deixara transcorrer, como simples fato rotineiro, aqueles atos sublimes. Como era triste haver permitido que a mediocridade do seu dia-a-dia contaminasse relacionamento digno de empolgação! Sente, agora, cada vez mais forte, a premência de redimir-se.

Com o passar dos dias, o colibri nada descobre de significativo e só faz aumentar suas dúvidas se a vida de Natália padece de nível de mediocridade similar ao que ele certamente revelava em sua existência, ou melhor, inexistência humana.

Obcecado pelo dever de observação e análise (nas quais, convém lembrar, ele nunca fora exímio em sua vida pregressa), Otacílio descuidou-se certa tarde e não se ocultou a tempo. Ao entrar no quarto, a moça o surpreendeu e abriu um lindo sorriso, como aqueles com que o costumava brindar nos tempos de namoro.

- “O que faz você aqui, passarinho? Entrou e não sabe sair? Que gracinha! Você me faz recordar que meu ex-namorado Otacílio gostava de pássaros e, particularmente, de colibris”. Ao dizer isso, o rosto da menina entristeceu nitidamente. Deixando escorrer uma lágrima, acrescentou com voz embargada: “quanta falta sinto dele! Era tão feliz e nem me dava conta. Quando ele desapareceu de forma inesperada, há tantos anos, sofri demais e somente então me conscientizei do quanto nosso amor era importante. Acho que nunca fui capaz de transmitir meu sentimento profundo ao meu amado Otacílio”.

Ao ouvir essas palavras, o beija-flor exultou. Não cabia mais dúvida de que Natália deveria ser “resgatada”. E com urgência! Imediatamente, o pássaro introduziu seu bico na veia da amada. Diversamente do que ocorrera com ele em seu tempo, quando recebera a bicada com total estupefação, sem reagir, a moça esboçou um gesto como se fosse afastar o colibri do braço. Por sorte, a ação do néctar regenerador é instantânea. Ela imediatamente se acalmou e permitiu que se consumasse o ato da injeção.

Tudo transcorreu como de hábito a partir daí. Otacílio visitou-a seguidas vezes e inoculou-a do néctar até que o processo de transformação se completasse.

Numa manhã – radiante – de domingo, ao ingressar pela janela do apartamento, o visitante constatou, orgulhoso e feliz, que a amada se convertera em um lindo colibri, pronta a acompanhá-lo na relevante missão de recuperar seres humanos que padeciam de mediocridade, esse mal que ainda está a merecer maior atenção das ciências.

Após trocarem breves trinados, os dois partiram.

No meio do voo, Otacílio pretendeu aproximar-se de Natália e tocar-lhe o bico como num beijo de reencontro.

Qual foi sua surpresa quando seu par não só evitou o contato por ele desejado, mas respondeu ao intento com firme bicada em sua cabeça, à guisa de reprovação. Para piorar a situação, Natália mudou a rota do seu voo, em clara indicação de que queria afastar-se dele e seguir o próprio rumo.

Desconcertado por essa atitude, o colibri tentou, repetidamente, acompanhá-la e reaproximar-se. Todas as tentativas foram malogradas. Cada vez que se acercava, a tão ansiada companheira voltava-se contra ele e o repelia.

Magoado no corpo pelas bicadas, mas muito mais em seu coração, por sentir-se rejeitado, Otacílio lembrou-se dos beija-flores que pelejavam pelos bebedouros sob o telhado de um dos restaurantes que frequentava quando ser humano. Não havia dúvida quanto ao espírito territorialista desse gênero de pássaros. Tudo bem que os colibris não admitissem a concorrência do “inimigo”. Mesmo assim, acasalavam-se, constituíam família. Não havia explicação para o comportamento de Natália, sobretudo após as declarações de amor que ela proferira antes de transformar-se.

Manifestou seu desencanto a outros companheiros de espécie, que prontamente lhe esclareceram a razão de tudo. O desavisado membro do clube ainda não percebera que os colibris salvadores eram individualidades únicas, incumbidas de missão estrita. Como tais, dispensavam o acasalamento e a vida a dois, até mesmo porque seu modo de reprodução consistia exclusivamente em gerar novos beija-flores mediante a transformação de seres humanos medíocres e inúteis.

A revelação de semelhante particularidade prostrou Otacílio profundamente. Talvez ele não houvesse recebido doses suficientes do néctar regenerador. Talvez não estivesse preparado, por outro motivo, para assumir a função de colibri. Pouco lhe importava entender melhor. A dura realidade é que ele acordara tardiamente para o amor e perdera a desejada companheira de modo impensado e definitivo.

Tão atormentado ficou que pousou no meio de uma árvore, disposto a nunca mais alçar voo.

JAX, setembro de 2019.

Sequência inédita de “O Colibri Vampiro” (Traços e Troças, ed. Lamparina Luminosa, SP, 2015) e de “A Volta do Colibri Vampiro” (Afinal de contos..., ed. Illuminare, RS, 2019), disponíveis nesta Escrivaninha.