LAZARUS
Existia algo de insuportável naquelas noites. Ora virava a cabeça, observava pela janela: esperas. Só que antes daquelas noites, talvez no terceiro ou quarto dia da semana ele tinha enlouquecido. Dito dessa forma parece que eu compreendo o que vem a ser a sanidade ou a normalidade ou a não-loucura. Começou de uma forma bem sucinta. Primeiro o caos, depois o mergulho, em seguida veio a loucura – é que na ausência de outro termo não consigo dizer outra palavra que não loucura.
Passou a escrever histórias que nunca terminavam. Da sala se podia ouvir os rocks antigos, vozes fatigadas de cantores mortos, tão mortos quanto o presságio de que sua loucura estava iminente. Em outros termos diriam – os outros, os complacentes – Nossa, ele é genial. E era. De uma inteligência, de uma sensibilidade, de um estar no mundo sem as certezas e aceitar que não existia um roteiro específico para seguir, porque ele nunca precisou de roteiros, pois criava a si mesmo todos os dias entre a dose de cachaça pura, os cigarros espalhados pelos cantos da casa e seu potencial demasiadamente criativo – Como lera em alguma dessas histórias que tanto se apegava para não. Para não.
Porém, voltando. Ele havia enlouquecido e não sei se via borboletas, como naquela história sobre borboletas saindo da cabeça das pessoas, não sei se faria algum ato catastrófico. Creio que não: para ele nada seria mais natural que seguir agarrando-se nessa... Loucura? O problema é que diferente dos outros, antes de compreender que ele não andava bem – ele nunca andou bem, diga-se – Ninguém havia perguntando como ele estava ou se dado ao trabalho e olhá-lo em uma noite qualquer – dessas noites em que ele virava até ficar dormente e dopado de cachaça.
Eu pressenti seu descontrole. Quando se divide a casa com um estranho também se passa a notar seus atos, suas rotinas, seu estado de ser. Porque ele era. Nunca vou saber dizer o que ele era com exatidão. Tinha um brilho no olhar, isso antes de ficar louco, tinha uma esperança, tinha algo tão indecifrável que o tornava sensato e distante. Distante dos outros, distante da terra, sobretudo, ao falar a respeito do Major Tom, da lata lá depois da lua. Era dessas coisas que ele costumava falar.
Só que eu ia dizendo: Ele enlouqueceu. E quem dera tivesse acessos de raiva, tivesse relutado por não ser trancafiado. Tivesse resistido. Depois de dias sem ouvir o som da música, dias sem ouvir o som da voz embriagada, dias sem notar que dentro dele emergia algo maior: e triste: a vida.
Eu costumo pensar nele como alguém que a vida deixou enlouquecer. Só que sei que não foi a vida. Foi só essa coisa podre e porca que a gente tem entalada na porra da garganta. Primeiro, eu não fiz nada, passei alguns dias – Antes de me dar conta do terceiro ou quarto dia quanto tudo se tornou esquisito – Pensei: Ele deve está descansando. Depois de tanta obsessão por terminar a grande obra, acho que ele deve ter conseguido e o sono veio.
Sua grande obra foi a loucura. Porque, depois do quarto dia ele já não respondia. Eu chamava, batia na porta, gritava, queria que ele me ouvisse, dissesse que tudo estava bem. Só que nunca ouvi resposta. E foi quando entendi que ele já não estava lá.
Primeiro, arrombei a porta – Claro, foi uma dificuldade enorme quebrar aquela porta. Entrei no quarto, restava um cigarro aceso no cinzeiro, um litro de cachaça pela metade, papéis com palavras que diziam: Eu não consigo mais. Eu não quero mais. Eu não tenho mais capacidade. Eu não sei viver. Trechos de livros, poemas, diálogos de cinema, fotos antigas coladas em todo o quarto. E não havia a presença dele. Fiquei atônito. Medo.
A janela estava aberta e pensei que poderia ter ido embora. Mas, indo embora e me deixado? Por que ele faria algo assim? Logo comigo. Foi quando comecei a lembrar do seu corpo. Aquele conjunto de cicatrizes que não poderia serem vistas pelas pessoas comuns. Eram marcas que apenas eu poderia ver, e, agora, dentro desse quarto, observando cada vestígio que ele deixou penso na minha incapacidade de ir para o mais fundo, para o espaço que existia dentro dele e que talvez também existisse dentro de mim.
Apesar de falar de sua loucura, creio que esse não era o ponto. O ponto era o toque, era ter dito mais de uma vez: Eu também estou aqui. Disse algumas vezes para ele sobre esses afetos que não se completam, que não chegam a ser afeto ou talvez sejam afetos que a gente nunca sabe como receber ou como ofertar, porque ele se foi e não volta. Algo dentro de mim sente essa ausência, porém: Será que poderia eu lidar com toda aquela loucura do caos que foi se fazendo presente no terceiro ou quarto dia?
Sim.
Eu poderia, mas não o quis, pois, quando entrei no quarto e vi que ele não estava lá e li, reli e continuo aqui, nesse quarto lendo tudo que ele escreveu notei o espelho. E notando: olhei-me e tomei consciência que também fiquei louco. Tirei toda a roupa. E já não era ele ou sua partida ou sua ausência ou os dias fatídicos e horríveis que viverei daqui para frente: Porque, veio a verdade – Que não liberta nada – Eu sou ele.
Eu sou o louco que escrevi e enchi o quarto de frases e poemas e fotos. Eu sou a cara que enlouqueceu no terceiro ou quarto dia e não tem mais ninguém para me salvar dentro desse quarto, dessa casa, dessa rua, desse bairro, dessa cidade, desse planeta.