Trem para Boa Esperança
Da estação
Nunca comi uma farinha de mandioca tão gostosa quanto a que meus avós faziam: papai Alonso e vovó Calu. Papai? É que eles criavam minha irmã mais velha, e ela os chamava de papai e mamãe-velha.
Geralmente durante uma ou duas semanas das férias de julho, ou janeiro, íamos com eles de Macapá para o interior: Pedra Branca, uma das localidades que surgiram ao longo da estrada de ferro do Amapá, cuja finalidade era o escoamento do manganês.
O contrato permitiu a uma empresa estrangeira saquear, nesse negócio, o solo brasileiro durante cinquenta anos. O mesmo só prescreve agora em 2003, mas ela já bateu em retirada desde o início dos anos noventa, deixando o povo da Serra a ver navios, podendo, se quiser varia, ir chupar o dedo nas ruínas das minas, com a mão no queixo, apreciando as crateras gigantes do lugar, maravilhados com a habilidade com que “os impulsionadores do progresso, apaixonados pela humanidade”, conseguem barganhar com países como o nosso, deixando o soro e levando a nata: paisagistas fúnebres que transformam imensas áreas verdes em deserto fantasmagórico, com a maior naturalidade, e sem a devida preocupação com o reflorestamento.
A viagem, para nós infantes, era o cruzeiro, às avessas, dos grã-finos pelas ilhas gregas. Meu avô passava a noite na estação para comprar as passagens às três da manhã. O trem saía às quatro. Às duas horas já estávamos lá. Ainda tirávamos uma soneca, enquanto os adultos não pregavam os olhos, atentos às mercadorias para evitar que criassem pernas.
O cheiro de cigarro exalava o ambiente. De cachaça também. O trânsito no recinto era complicado, pois o caboclo tinha de ser hábil em ouvir o brega dançando break, para não pisar em corpos ou bagagens estirados ao chão, ou trombar com fardos de alimentos, sacolas, bicicletas, ração, ou mesmo nádegas e cabeças alojadas em redes, que se entrelaçavam no alto da única parede que dividia em dois blocos a estação: um deles com saída para a ruela onde aportavam as cômbis, veículo, na época, muito útil como meio de transporte coletivo (os ônibus eram poucos e não trafegavam àquela hora), além dos táxis e uns poucos carros particulares que traziam os passageiros com destino a alguma paragem da ferrovia.
O outro bloco dava acesso ao trilho. De ambos os lados da parede com aberturas alternadas, viam-se bancos de madeira embutidos, cheios de frestas, pintados na cor acinzentada, a qual caracterizava todas as estações salpicadas pela estrada, bem como qualquer prédio ou residência construídos sob a tutela dos estrangeiros. Essa cor sombria poderia ser um mau presságio?
O banheiro se mostrava inócuo para atender as necessidades fisiológicas dos usuários. Estes, após lavarem de xixi todo o cubículo, iam se aliviar nos arredores da estação, qualquer canto escuro servia, tanto para adulto quanto para criança. A única venda bem próxima dali era a cantina da dona Maria, uma microbandola, na qual se podia encontrar de tudo, de papel higiênico a marmitex. Vovó não gostava do bolo lá vendido: muito pitiú, reclamava.
As crianças conseguiam dormir porque eram crianças. Para o adulto não era fácil, só os folgados conseguiam, visto o convercê também não dar trégua. Parecia até que todos ali se conheciam. Era compadre pra cá, era comadre pra lá que não parava mais.
_ Ô, cumpadre, vai subi cã garotada?
_ É, vão passá uns dias cum nós.
_ E quando cês tão baxando?
_ Lá pela segunda quinzena do mês.
Esse tipo de viagem, subir e descer a Serra de trem, era rotina para os colonos e para os trabalhadores da empresa estrangeira que explorava o manganês. Destes últimos, quem fosse alto funcionário tinha um vagão especial, chamado pelos caboclos de Calamazul, com cadeiras mais confortáveis. Contudo, a expectativa estampada no brilho dos olhos vermelhos com a chegada da locomotiva era surpreendente. Ficavam excitados, alvoroçados. Lembravam um bando de formigas, voltando às pressas, animadas, ao formigueiro.
Da viagem
Um estalar de dedos e já estavam todos embarcados, cada qual no seu vagão. Não sei como dava tempo, pois o trem demorava quase nada parado. Quando este anunciava a partida, eu ficava olhando para todos os lados, verificando se alguém o havia perdido. Às vezes, eu, Alice, e Ana, minha irmã, observávamos, comovidas, dois ou três marmanjos dormindo nos bancos da estação, pensando que haviam perdido a viagem. Meu irmãozinho Ambrósio, ao contrário, zombava dos dorminhocos.
Como era bom o frio da madrugada, com o vento gelando nossas bochechas! Eu me encantava com o trem. Era ele um corajoso desbravador que seguia veloz e determinado seu caminho, correndo e gritando para os caboclos matutos, cutias e outros desapercebidos na estrada: sai da frente, sai da frente, sai da frente... Seu apito rasgava o silêncio noturno, deixando as corujas ainda mais vigilantes.
Entre cinco a seis horas, quando a escuridão começava a fenecer, chegávamos à estação de D. Maria. A primeira depois do Km 78. A partir daí, iniciavam as paradas regulares: Munguba, Cupixi, Cachorrinho, entre outras, para só então, como formigas agora saindo do formigueiro, saltarmos em Pedra Branca, entre oito e oito e meia.
Interessante a passagem do trem sobre a ponte de Cachorrinho, dava a impressão de que estávamos mergulhando – glup, glup, glup... era o som que me vinha aos ouvidos.
Assim que o Valente partia rumo à última estação, púnhamos as sacolas nas costas e... pernas, pra que te quero?... Já estavam lá uns crioulos ou caboclos com seus jamaxis para fazer o transporte de mercadorias ou de fedelho molenga. Quando papai Alonso não viajava conosco, vinha também nos esperar com o seu.
Dos transportes
O jamaxi é uma espécie de cesto de cipó titica. Tem formato de cadeira sem pernas ou de uma grande sacola sem um dos lados, com uma alça bem resistente que se coloca na testa, e outras duas que são amarradas, em forma de xis, às varas apoiadas à cintura do peão. O corpo do jamaxi fica nas costas do caboclo, e lá se colocam as bagagens. O indivíduo sai andando como um poste meio inclinado para frente.
Sempre que coincidia haver trole na linha, pegávamos carona. De um jeito ou de outro chegávamos ao sítio Boa Esperança, nossa colônia de férias.
Meu avô era o mais veloz no caminhar. Não errava as passadas no trilho. Pé esquerdo no dormente da frente e o direito no de trás, sem falhar. Nós, crianças, tínhamos de andar a la canguru, saltitando para não tropeçar. Eu tinha medo de atravessar a ponte. Em Pedra Branca também há uma ponte para o trem, alta e bem comprida. Não podia olhar para baixo, pois as águas do Amapari (um braço do Araguari) arregalavam os olhos para mim, abriam um bocão e me diziam: te joga... te joga... te joga... Elas eram traiçoeiras, só faziam aquilo quando eu as olhava sozinha. Sempre que papai Alonso olhava comigo, ficavam quietas. Vovó era cautelosa ao atravessá-la, por causa dos netos. Num canto e noutro da ponte minavam pedras brancas cintilantes que, à época, eu achava que justificam o nome da localidade.
Depois da ponte, a estrada é cercada por altos paredões de terra alaranjada sulcada por ocasião da construção da ferrovia. O som ecoa longe. Ouvíamos o falatório de quem vinha na direção contrária a quase quatrocentos metros. O murmúrio de pássaros, insetos, pererecas e outros bichos nos acompanhavam o tempo todo. É como se estivéssemos andando em uma clareira no meio da mata. Eu gostava, gostava muito. Éramos saudados, de vez em quando, pelos vira-latas dos sítios vizinhos.
Chegando ao sítio Boa Esperança, os cachorros vinham nos cumprimentar, rosnando e fazendo careta, e nos dando linguadas nas pernas. Ufa!!! Estávamos em casa depois de alguns quilômetros de caminhada.
Do lugar
Ainda do trilho, avistávamos uns pedaços dos cavacos que cobriam a maloca. Seguíamos por um trecho, de cerca de cinquenta metros com aproximadamente uns três palmos e meio de largura nos vinte primeiros, que era uma mistura de piçarra e argila que, com a chuva, ficava escorregadio. Esse espaço era emparedado por mangueiras, cajueiros e jambeiros, até uns seis ou sete metros antes da choupana.
À direita, via-se a casa do forno, uma palhoça sem paredes, só com esteios sob a cumeeira coberta de palha, tendo no centro o forno feito de barro, na forma de mesa, cujas pernas não se discerniam e a superfície era um tacho enorme de cobre talhado como uma grande gamela retangular. Num canto do assoalho de barro batido acomodava-se o caititu, engenhoca na qual se rala a mandioca. Num outro, a prensa, espécie de cercadinho com peneira apropriada para aguar a mandioca ralada e espremê-la, separando a água (tucupi) da massa .
Era ali, em meio a todo aquele aparato rudimentar, que se fazia a farinha de mandioca, o beiju e a tapioca, obtendo-se esta última, colocando-se o tucupi para descansar. A massa alva e fina, que senta, é a tapioca (que ainda será lavada), e o líquido amarelado que sobe é o tucupi propriamente dito, que será posteriormente cozido para se evaporar o veneno; é muito apreciado pelos amazônidas. Esse extrato é indispensável no preparo do tacacá, do molho-de-pimenta da região e do famoso pato-no-tucupi, tanto no interior quanto em algumas cidades da Amazônia. O beiju resultava do apuro da massa. Tirava-se uma pequena porção da prensa, lavava-se e escorria-se mais vezes, depois era misturada a alguma gordura, açúcar, erva-doce (quando havia) e um pouco de sal, assada posteriormente no forno, envolta em folha de bananeira.
A farinha que meus avós faziam era, sem dúvida, a mais gostosa daquelas paragens. Não precisava por gengibre ou outro ingrediente para ter melhor aspecto e sabor. O segredo começava pela colheita da mandioca no tempo certo, sendo logo bem descascada. E aqui também um detalhe importante, pois possui duas cascas, uma fina e outra mais grossa que deve ser toda removida, caso contrário a farinha ficará com aparência escura (de suja) e gosto ruim. Depois de muito bem lavada ia passar pelo caititu, seguindo o processo de prensagem, retirando-se todo o tucupi, evitando assim uma farinha azeda, para só então, após a secagem, ser torrada (no forno) sobre o tacho limpo e untado com sebo de gado, tendo-se o cuidado de movimentar a massa para lá e para cá, com um rodo ou um remo reservado àquele uso, para não queimá-la.
Descendo por sobre uns dormentes, à direita da casa do forno, avistávamos esparramada uma saudável, ampla e farta lagoa, onde pescávamos traíras, acarás, piabas e outros peixes, comuns do lugar. Essa lagoa vivia margeada por palmeiras como açaís e buritizeiros. Era nela que os patos se divertiam. Quem passasse pelo trilho tinha dela uma bela e completa visão panorâmica. Meus avós dela cuidavam com esmero, não deixavam entupir o canal que a mantinha viva.
A residência situava-se a uns vinte metros em frente à casa do forno para dentro do terreno. As duas portas não tinham folhas e as duas janelas, como caboclas recatadas e sem fortuna, protegiam-se apenas com panos sórdidos. Dividia-se em três compartimentos: duas salas cinco por cinco, bem arejadas, separadas por uma parede. A primeira era de visita. A segunda servia de dormitório e de despensa. Por isso tinha como mobília, além da cama de cipó com mantas feito colchão, um armariozinho e um camburão de folha-de-flandres, com capacidade para doze latas, daquelas de massa de pintor, onde eram armazenados a farinha, pão e bolacha quando havia.
Um degrau após o dormitório, estava a cozinha, só com uma parede ao fundo. Nessa parede havia uma abertura no canto esquerdo de onde saía o jirau (lavatório). No lado direito da cozinha, suspenso ao meio, fora construído o fogão à lenha, feito de barro com duas bocas esculpidas. Uma pequena mesa retangular de madeira de andiroba, com apenas um banco comprido e estreito, ocupavam aquele minguado espaço. O lado direito era todo aberto. Dali, seguindo em frente alguns metros, encontrávamos a cacimba, um reservatório cavado na argila, que captava, de um olho-d’água, a substância líquida cristalino-azulada que matava nossa sede. Caminhando um pouco mais, chegávamos ao igarapé, um córrego (escondido entre a vegetação abundante) cuja água era escura (não suja) e geladinha. Ali vovó lavava as roupas e todos nós tomávamos banho.
Atrás da casa crescera uma limeira baixinha, cujo fruto era um mel e, sempre nessas épocas, ficava carregada de limas. Nós, ao chegarmos lá, cuidávamos para que nenhuma se perdesse. Vovó se admirava do potencial de armazenamento de nossas panças: uma nuvem de gafanhoto de passagem pela plantação.
Andando dos fundos da casa cerca de 60 metros, encontrávamos a rústica privada, onde ninguém fazia questão de se demorar. Fazíamos tudo para não ter de visitá-la durante a noite.
Prosseguindo, transpondo-se um matagal adiante, percorrendo-se um trecho entre plantas nativas não comestíveis, e andando um pouco mais, entrávamos na roça, onde se cultivava a mandioca, cercada com o plantio de outras sementes.
O terreno inteiro, excetuando-se o terreiro, espaço das galináceas comedoras de milho, o matagal que isolava a privada e as plantas nativas, era repleto de árvores frutíferas que nos forneciam boa parte da alimentação: jambo, manga, caju, laranja, lima, limão, cupuaçu, cacau, ameixa, jaca, banana, abacate e mamão. Também de palmeiras das quais vinham açaí, bacaba, coco e pupunha. Havia ainda pequenos roçados de milho, batata-doce, batata-da-china, cará (uma batata parecida com inhame), macaxeira, ananás, abacaxi, melancia e algumas hortaliças.
Você acredita que meus avós sozinhos era quem cuidava daquilo tudo? Mas é verdade. Eram agricultores natos, de mãos abençoadas por Deus, como se dizia por lá. Geralmente tudo o que plantavam germinava e prosperava.
Apenas raras vezes, no replantio da maniva (haste da mandioca), em que se precisava preparar a terra, e em algumas colheitas, quando estavam ameaçadas, é que contratavam algum ajudante. Na verdade, o que havia era a troca de serviço entre vizinho: ajudava-se no plantio e na colheita de um, depois juntos se revezavam no roçado do outro. Um escambo de mão-de-obra.
O camapu, planta selvagem de frutinha suculenta e deliciosa, nascia por conta própria pelo matagal. Nós, crianças, costumávamos sair à caça de suas bolinhas protegidas por folhas, que se fechavam em forma de concha, retornando cheias de mucuins e coceiras pelo corpo.
Raramente comprávamos carne bovina, por sermos abastecidos pela caça: cutia, paca, tatu e tucano. Às vezes, comíamos outros animais silvestres, além da pesca, feita em período propício.
Da vivência
Às dezoito horas, depois de as galinhas e patos já terem comido e estarem agasalhados, começávamos a atar os mosquiteiros, visto às dezessete já termos tomado o último banho.
Pouco antes de a escuridão cobrir o céu, com apenas a lua e algumas estrelas a lhe fazer resistência, dona Calu (vovó) acendia as lamparinas, enquanto papai (vovô Alonso), sempre depois de todos, tomava seu banho, para, em seguida, cercarmos a mesa na derradeira refeição do dia, ao som do noticiário do jornal A voz do Brasil. Os cães, como sempre, eram os últimos a jantar.
Antes de deitarmos, para ouvir melhor os ruídos do mato, o murmúrio dos bichos, como os sapos chamando as fêmeas para o acasalamento, com o incessante zunido dos carapanãs, e com o vento trepidando as folhagens, papai nos contava histórias do lugar, recheadas de superstições. Falava da Matinta- Perera, uma velha cabocla macumbeira, amante e tanto de um fumo, que se transformava para atrair incautos e vagava noite adentro, assobiando em busca de alguém que a chamasse para lhe oferecer tabaco. Ai de quem não tivesse! Mas biólogos dizem que Matinta Perera não passa de um pássaro noturno, de canto soturno e solitário, como o é o do tucano durante o dia.
Quando começava o barulho rotineiro lá para o meio do mato, no pé da colina, como se alguém cortasse lenha àquela alta hora, papai nos dizia que estavam lhe indicando o local onde havia ouro em abundância, e se tivesse coragem de ir até lá sozinho naquele exato momento, encontraria o filão dourado, que lhe seria mostrado com riqueza de detalhe. Aproveitava o ensejo para nos ensinar alguma lição de vida. Ele e vovó eram muito trabalhadores, tinham ojeriza à preguiça e não demonstravam medo de enfrentar as dificuldades para sobreviver. Quantas e quantas vezes um e outro vigiava solitário o tão bem cuidado sítio, tendo como companhia apenas os animais domésticos e o consolo da Proteção Divina, resultado de sua fé inesgotável. Também antes de deitarmos, vovó nos punha de joelhos e nos fazia rezar o Padre-nosso. E exigia contrição.
Certa vez, contava-nos papai, à sua maneira e tentando imitar a fala dos envolvidos, que um crioulo, natural de Suriname, chegou à casa do conterrâneo, aqui no Brasil, e topou com este plantando um coqueiro: “Ê, ê, cumpade, tá plantande coco? ”, “É, é, cumpade, tá plantande poquá eu gostá muito...”, “Ê, ê cumpade, eu também gostá, mas eu não plantá mais. Eu já tá nessa idade, dificimente eu vai cumê do quá eu plantá agora. E eu que não vai plantá pra deixá pra outra malandro qualqué!”. Passado algum tempo, o crioulo sentiu vontade de prosear com o conterrâneo e foi visitá-lo outra vez, encontrando o tal comendo coco: “Ê, ê, a cumpade já tá cumende da coco que plantá?”, “É, é, eu tá sim, cumpade. Esse é a primeira cacho que dá ...”, “Ê, ê, cumpade, se eu tivesse plantade junto cum a cumpade, agora eu também já tava cumende do minha...” É, é , cumpade , mas inda dá tempo da cumpade plantá! ” , “Ê, ê, cumpade, se eu não plantá daquele vêgi, agora é que tá difícili de eu chegar a cumê! Eu num vai plantá não...”
Contava-nos história da época em que andava embarcado como estivador pelas ilhas do Amazonas, costa do Amapá e Guianas, da vida perigosa de quem cobiça ou descobre o ouro. Disse-nos que um operário da famosa empresa, conhecido seu, havia descoberto uma mina de ouro na região próxima ao local onde se fazia a exploração do manganês, na Serra do Navio, e desaparecera misteriosamente, com a empresa alegando acidente de trabalho, então sustentava que a mineradora e sua comparsa, junto com a extração do manganês, fazia, sorrateiramente, a exploração de ouro e diamante na região.
Falava-nos sobre como conquistara minha avó, também sobre a história de outros agricultores e de como viveram o noticiário da Segunda Guerra e dos voos rasantes dos aviões norte-americanos quando vinham se abastecer na base de apoio no município de Amapá.
Papai era de temperamento calmo, tinha paciência de boi no convívio familiar e social. Gostava de amassar açaí, outra fonte de alimentação, rica em ferro, dizem os especialistas, que quase sempre constava no cardápio. Toda vez que ia até a estação, ficávamos com os olhos grelados, esperando vê-lo surgir na entrada, para pedirmos bombons, que ele, previdente, sempre trazia.
Vovó era mais irritadiça, não tinha lá muita paciência conosco. Com ela andávamos miudinho. Mas compreendíamos o seu jeito particular de demonstrar afeto. Nunca aprendeu a ler e a escrever como os que têm a oportunidade de frequentar a escola institucionalizada. Sim, porque, outras coisas, vovó lia muito bem. Sabia ler o mapa do céu: identificava facilmente os pontos cardeais, o Cruzeiro do Sul, as Três-marias, as fases da lua etc. Sabia ler as marés, o tempo certo para o plantio e para a colheita. Sabia ler as más intenções por trás de qualquer eloquência. Vovó aprendeu a fazer outros tipos de leitura, e escreveu seu nome na história de seus netos.
Temperamental, não tolerava moleque xereta, mexelhão ou malcriado. Cômica era a dança que dona Calu e meu irmão executavam, sempre que ela se dispunha a dar-lhe uma sova para tomar termo. Com a mão esquerda, segurava-lhe o bracinho esquerdo, e com a direita testava a qualidade da havaiana no bumbum do mano, enquanto ele fazia circunferências perfeitas em volta dela, só choramingando com voz meio grossinha: ai vovó, ai vovó, ai vovó... Até que papai Alonso se intrometia dizendo: já chega Calu, deixa disso, já esquentaste demais a traseira do menino, já tá até fumegando! Então vovó não aguentava e começava a rir.
Quando estava zangada, ficávamos com receio, pois a qualquer momento uma lambada poderia se iniciar. Aí dançávamos ui, ai, pra todo lado. Todavia, quando vovó estava alegre, dava gosto ficar perto dela! Tinha um sorriso generoso, verdadeiro, bonito, muito bonito... Poucos sabem sorrir francamente como minha avó. Ninguém bulisse com seus netos: Virava uma onça! Só ela poderia repreendê-los. Vovó tinha um vício que tempos depois conseguiria vencer: gostava de um cachimbo com um bom tabaco. À tardinha, depois do almoço, a louça lavada, o fogão e o jirau limpinhos, recomendava-nos a não fazer peraltices.
_ Vê se vocês vão se acomodá, seus moleque. Não quero ninguen lá pro trilho. Vou puxá uma fumaça e me esticá um pouco na cama, descansá um pedaço pra logo mais agi de novo.
Então dava uns tragos no cachimbo e em seguida se encolhia todinha na cama como o feto no útero, tentando sua merecida sesta. Duas horas depois, levantava-se e ia cuidar dos últimos afazeres antes do anoitecer.
Cinco da manhã, ainda escuro, quando os galos, despertadores pontuais, teciam com mais veemência sua rede de comunicação com seu chamado estridente, papai Alonso já estava de pé, ouvindo rádio, fazendo fogo para o café e lavando alguma batata para cozinhar. Sete horas vovó nos fazia pular da rede e nos mandava logo para o banho afugenta-manha, no igarapé de águas friíssimas.
Era gostoso despertar ali, ouvindo a ópera dos pássaros, executada com eficiência indizível. Nenhum daqueles sons escapava aos meus ouvidos sensíveis. E a paisagem? Que coisa linda! A neblina ofuscando a lagoa, o mato e as enormes árvores. A colina ficava quase toda encoberta. Parecia uma tela de pintor talentoso, buscando, no jogo de cores, imprimir luz, sombreado e movimento perfeitos ao objeto.
Da janela da sala, enquanto esperava a coragem vencer a preguiça do corpo para descer ao igarapé, eu ficava, contemplativa, observando o dia acordar e recolher a névoa como um cavalheiro, regendo com maestria aquela sinfonia sem igual. Se fechar os olhos, posso vislumbrar tudo detalhadamente, posso sentir a friagem da manhã na pele arrepiando os pelos, posso sentir o cheiro do lugar, posso distinguir o acorde de passarinhos do canto solitário do tucano, o discurso dos patos da satisfação dos pintainhos...
Dos nativos
De vez em quando, no princípio ou no fim do dia, alguns caboclos, homens e mulheres, passavam por lá com sacas nas costas, cortando caminho, indo ou vindo do centro (garimpo), atravessando quilômetros e quilômetros, mata adentro. Como o camelo que viaja léguas e léguas, resignado a serviço do que o monta, assim aqueles perfaziam incansáveis sua rota a serviço do ouro que os seduzia.
Os mais chegados paravam para uma prosa ou café. Tínhamos de tomar a benção das pessoas mais velhas e o fazíamos mecanicamente. Não víamos sentido na obrigação. Não eram nossos parentes! Mas isso é costume nas comunidades interioranas.
_ Tomem a bença da comadre e do compadre, meninos!
_ Bence! ...Bence!...Bence!...
_ Deus te abençui !...Deus te abençui!...Deus te abençui!...
Muitos se consideravam compadres por haverem pulado a fogueira em festa junina. Nesses grupos andava um crioulo muito trabalhador. Diziam que mexia com bruxaria e já havia mandado uma porção para os sete-palmos. Em princípio, tínhamos medo dele, e não entendíamos por que nossos avós se davam com ele. Aos poucos, porém, o medo foi sendo substituído por uma certa afeição, pois ele garantia que não fazia mais aquelas coisas e se mostrava muito cordial. Alegava exagero na imaginação do povo.
_ Bom Dia, cumpade Alonso! Bom dia, dona Calu!
_Bom Dia, Muchê Ralê! Tá indo pro centro?
_ É, eu vai bateá um pouco. Eu qué fazê minha roçado ante da inverno.
_ Que Deus o acompanhe, compadre!
_ Amém. Quede criançada? Ó, tá aqui esses balinha pra vocês se distraí.
_ Oba!... Oba!... Oba!...
Assim, já o aguardávamos com alegria, esperando “uns balinha” que trazia para nos agradar. E lhe tomávamos a bênção desinibidamente. Numa ocasião em que o Muchê retornava do garimpo, foi por nós interceptado:
_ Deixem de apresentamento, seus moleques, vão se acomodá! – ralhara vovó. Deixá, deixá, dona Calu. Meninada qué vê uro. Eu mostrá.... Ó, vê, meninada, vê uro...
_ Nossa! Olha só essa pedra aqui! _ dizíamos admirados.
_ Esse é um pepita de bom tamanho! Pegá, pegá esse menó aqui pra vocês. Tomá, tomá, ficá com esse.
_ É minha!... É minha!... É minha! _ contendíamos pela posse da pedrinha amarela.
_ Parem de brigá ou devolvam já a pepita pro Muchê, mininos _ ordenara a vovó.
_ Tá bom, vovó... a gente não vamo mais brigá!
Prometemos com olhos de peixe morto e nos afastamos para continuar a discussão longe da vovó. Por fim, ela decidira com papai Alonso a melhor serventia do metal.
Muchê Ralê também nos contava história. Ensinava-nos a nos proteger do trem quando este nos apanhasse pela estrada. O tratamento Muchê deve ser uma espécie de corruptela do francês Monsieur, pois todos os crioulos da Guiana Francesa assim se apresentam para nós.
_ Se criançada tivé na trilho e ouvi apito da trem, tem que saí logo para lado, se afastá máximo e segurá nalguma coisa pra vento não atraí corpo pra trem.
Uma vez ouvi papai Alonso falando para o Muchê sobre o caso do operário, trabalhador da empresa. Este e uns amigos estavam jogando e bebendo. De repente se puseram a discutir por dinheiro ou bebida. O mais furioso deu com o taco de sinuca na cabeça de um dos colegas. Os outros companheiros se inflamaram pensando que havia matado o colega e o levaram à força para a estrada, amarrando-o ao trilho.
_ E agora, furioso? Te esforça pra te desamarrar antes do trem passar.
E largaram à sorte o companheiro. No outro dia encontraram pedaços do corpo arrastado e decepado pelo trem.
Passei a ter receio do trem. Ficava preocupada quando papai Alonso ia até a estação e logo em seguida via da lagoa o trem passar veloz. Papai dizia sentir a aproximação do trem desde muito longe. Não se preocupava. Contou-nos que, uma vez, quando estava na Serra e vovó sozinha no sítio, ao receber o recado de que ela estava passando mal, abalou-se de lá até o terreno, andando aquela eternidade pelo trilho (a noite estava escura), trazendo um pequeno lampião nas mãos para afugentar algum bicho que aparecesse pelo caminho. Tão concentrado vinha no estado de vovó que só notou o trem quando este estava a poucos metros. Pulou rápido para o lado, mas não havia muito espaço e a fúria do vento produzido pela locomotiva tomou-lhe o lampião. Garantiu-nos que essa foi a única vez que temeu o Valente.
Tudo o que se produzia no sítio _ fora o que se retirava para o consumo próprio, na verdade, agricultura mais de subsistência _ era vendido na Serra do Navio e principalmente em Santana, depois em Macapá. Muita coisa se estragava por falta de veículo que a transportasse. Os agricultores negociavam o fruto de seu trabalho por um preço tímido. Eram pessoas simples que se contentavam com pouco, mas que também tinham sonhos de ampliar e emparedar suas malocas, aproveitar melhor sua terra e, quem sabe, comprar uma casa em Macapá ou em Santana para facilitar a escola para os filhos maiores. Contudo, as raposas eram hábeis ao menosprezar seus produtos, só aceitando negociar por um preço miserável. Então, para não perder, os agricultores se sujeitavam àquela extorsão. E dessa leva de explorados muitas vezes meu avô participava. Quando ia à feira, vovó ficava assustada com o valor dessas mercadorias.
Numa das últimas férias que lá passamos com os dois, dona Lia, do sítio vizinho, foi visitar vovó:
_ Que tal comadre? Sente aí e converse, enquanto eu passo um café. Como vai a comadre Bebé?
_ Ah, comadre, a mia fia andava desgostosa da vida por cosa do Dino. Tava discunfiada de que ele tinha outra muié e não gostava mais dela. Bebeu uma inquantidade enorme de soda cártica... Foi horrível, comadre, o fim da Bebé...
Dona Lia relatava chorando o caso da filha à vovó. Nós escutávamos do terreiro, debaixo da casa, e viramos uns para os outros com os olhos embaçados, fungando comovidos. Conhecíamos dona Bebé. Era uma senhora distinta. Lutava pela sobrevivência ao lado do marido, tanto na lavoura quanto em garimpo. Carregava sacas de açaí nas costas junto com ele. E teve aquela ingrata recompensa por seu companheirismo. Porém, mais tristes ficamos foi com a última notícia que tivemos de Muchê Ralê.
_ Ei, cumpadre Alonso, cumo vai?
_ Vou bem, seu Chico. Tá indo pro garimpo de novo?
_ É, cumpadre, tem que sê. A coisa tá pegando. Tem que pagá uns caboco pra me ajudá a fazê caieira e perpará o roçado.
_ E o Muchê Ralê? Nunca mais passou por aqui.
_ Cuitado do Muchê, cumpadre! O senhor num sube, não?! Cunsiguiu fazê uma boa inquantidade de uro. Se embrenhou lá com umas mulhé sortera e elas, pra tomá o que o pobre tinha, embebedaram o homem tudinho. Ele vinha cambaliando pela estrada, tropeçando nos trilhos, té que caiu sem pudê levantá. O trem pegu ele de jeito. A cabeça ficu prum lado e o corpo estilhaçado...
O Valente era um assassino. Não o admirava mais. Só o temia.
Crescemos e deixamos o hábito de, nas férias de julho ou janeiro, ir para o terreno. Depois que vovó faleceu, papai vendeu o sítio, muito cobiçado por quem tinha algum dinheirinho ali, por um preço camarada. Não muito depois, papai Alonso também foi ao encontro de vovó.
Nós, irmãos, já maduros, rememorando os bons tempos de colônia de férias que lá vivemos, resolvemos visitar o atual proprietário, ou melhor, saborear mais uma vez o sítio Boa Esperança. Qual a nossa estupefação quando lá chegamos?! A imagem que víamos era desoladora: a lagoa não existia mais, havia secado por completo: falta de zelo com o canal. A casa de forno fora destruída. A residência não era mais livre, agora estava toda abafada por portas e janelas de madeira. As árvores frutíferas desapareceram. Não havia mais roçado de mandioca, milho, abacaxi e outros. Só o que subsistiu foram as palmeiras de açaí, aliás, tinham se multiplicado.
Retornamos no mesmo dia, convencidos de que o sítio Boa Esperança morrera junto com nossos avós.
Atualmente, existe uma mineradora explorando ouro lá pelas bandas entre Cupixi e Pedra-Branca. Meu avô tinha razão quando garantia haver por ali um filão gigante do cobiçado metal. Dizem que a mineradora que explorou o manganês anos a fio é que está por trás desse negócio. Papai afirmava que os estrangeiros já haviam mapeado toda a Amazônia e conheciam sua riqueza, da fauna, flora e do subsolo, mais do que os próprios brasileiros. Ele dizia que nossos governantes, com raras exceções, ou não tinham o devido amor à pátria e negociam o país por favores pessoais, ou eram muito incompetentes ao avaliar as exigências dos estrangeiros para “impulsionar” nosso progresso, ou entregam de mão beijada o Brasil às multinacionais por pura covardia.
SANTOS, J. S. Boa Esperança (crônicas e contos). 1ed. Rio de Janeiro: CBJE, 2002. [Título original do conto principal: 'Boa Esperança']