O MUNDO AOS PÉS DA SANTA

De manhã nossa mãe começou a fazer o natal, tirou de cima do guarda roupa as caixas e abriu, eram de papelão. Assim foi abrindo o semblante como se cada miniatura fosse um santo que viesse ao mundo. São José, Nossa Senhora Virgem, dois anjos pequenos e um maior que tinha uma estrela sobre a cabeça, três cavalos, um boi, um jumento e três cabritos. O galo tinha o bico quebrado, por isso uma sombra cobriu o olhar de mamãe. Mas foi só um triz de sombra, passou logo que ela encontrou a manjedoura e depois o Menino. Nossa casa ficava mais clara de luz nessa época, era quando faltavam cinco dias para o natal.

Tudo ia conforme, todo ano era como se fosse a uma vez. Das primeiras, nessa feita, eu mesmo dei por mim no mundo, acordei num assombro e dele nunca mais saí. Nossa mãe, montando o presépio, pediu que eu, Maria e Joana, fôssemos buscar areia fina do rio para fazer de conta que era estrada de Belém. Assim foi.

Passamos pelo campo cercado de cajueiros onde uma leva de meninos maiores que eu jogavam pelada. O futebol crescia e a bola batia nas traves improvisadas que eram tocos secos de um pé de caju velho. Aos gritos de olé, o riso solto virava palavrão que eu não ouvia em casa. Maria fingia que não via nada demais, Joana se agradava. Os meninos vestiam calção e corriam sem camisa. Olé. Olé, olé!

Nesse campo tinha areia mais fina e mais branca que na beira do rio, mas no rio tinha o perigo de entrar na água e pisar em telas de arame farpado. Cair em fosso, ou cisterna que é a mesma coisa, era perigo maior ainda. O campo ficava do lado de uma grande refinaria de calcário que desfazia os montes da encosta. Mas como o risco é sinal de aventura, demoramos no campo.

O medo que assombrava todo mundo, no rio, é a cidade submersa, a antiga cidade coberta pelas águas da represa da Jaguara. O Rio Grande agora passava dois quarteirões abaixo da nova igreja e, nos dias em que as comportas eram fechadas, podíamos ver a cruz no alto da torre no meio do rio. Nosso pai trabalhou na construção da barragem, sempre avisou: “no rio tem presença de morte”.

Joana queria se arriscar, queria o perigo de reparar nos meninos, eles suavam e a pele do corpo deles parecia a prainha, uma mistura de água, arame, areia e fosso desconhecido. Nisto eu reparei, o Camilo era o mais forte e corria mais que os outros meninos que corriam muito. O Camilo corria mais que nosso irmão que via a bola, as traves, Joana olhando ensimesmada para os meninos. Mas o meu irmão via que eu notava o quanto Camilo era mais que todos os outros, todos sem camisa vestidos de areia.

Num grito nosso irmão parou o jogo: “tem nada pra fazer não?”.

A rifaina se estendia no mormaço sob o sol até a prainha.

Como eu não desandava, Maria pegou um caju do pé na calçada e eu chupei. Fruta madura mais doce nunca tinha visto. Matava a sede, escorria no peito e molhava a garganta por fora. Descemos a ladeira, relevo de cuesta, soube dizer mais tarde. A escarpa íngreme festonada separa duas superfícies de planalto e forma um relevo suave ali.

Tínhamos o que fazer, nossa mãe esperava a areia do rio porque ia pavimentar o natal sobre a mesa de canto da sala lá em casa. Logo o campo ficou atrás de nós.

A areia molhada, boa de colorir da cor que a gente quisesse o natal, esperava na margem do rio. Foi quando a gente voltava que o mundo deu de ficar grande, de ficar menor e caber na mão.

É que a Luíza estava sentada no primeiro banco da calçada, logo antes da rua e depois da faixa de praia. Tinha o mesmo olhar perdido no rio como em tudo que olhava. Luíza era irmã do Camilo e Camilo...

Camilo olhava para tudo com uma certeza que fazia cada coisa ter sentido.

O contado até agora é parte e parte é o conhecido, todo o resto é deslumbramento. O demais, maior que gigante, ia ser no enceramento da novena. Quando vier o que é, o que agora é pedaço será lembrado inteiro. A novena chegaria ao fim na noite de natal. Eu era menino, falava como menino, sentia como menino e discorria sobre as coisas como menino, mas logo cheguei a ser homem.

Distraída, Luíza perguntou se tudo estava pronto. Se a gente fosse à novena, se fosse na procissão, se ia na casa dela depois da missa. Tudo era alegria, só um problema. Alguma coisa podia fazer o mundo acabar.

É que Luíza temia a queda da Santa, da Santa que pisava a serpente enrolada no globo de gesso dentro do oratório no alpendre da casa dela. Temia casa cheia, tinha medo que a imagem caísse e caindo quebrasse tudo que era o mundo. Para ela o mundo era o globo de gesso sob os pés da Santa. A alegria podia se perder.

Coitada, a irmã do Camilo não batia bem da cachola. Maria ofereceu caju porque era tudo que a gente tinha e Joana riu chamando as ideias de volta: “mamãe espera”.

Na véspera do natal fomos encerrar a novena.

***

Íamos descer para a casa da Luiza e do Camilo juntos, papai mamãe Joana e meu irmão. Juntos, não fosse Maria me chamar para a missa. Fomos na frente, Maria queria ver o teatro porque disseram que nunca haveria festa igual na cidade.

A igreja estava lotada, sem lugar onde fosse, dava só para olhar se na ponta dos pés. Mas tinha o corredor e então Maria teve a ideia: “vamos entrar que nem dois anjos e fazer os votos”. Vê lá se eu tinha idade para voto, mas concordei.

Enquanto encenavam o nascimento de Cristo no altar, pisamos devagar o tapete. Eu era pé de pena de passarinho flutuando no silêncio que fiz. Não vi mais nada depois que Maria cochichou: “sou Clara, você Francisco” e apontou o Santo que tinha uma pomba na mão. Um silêncio encheu minha vista. Engoli seco, três nós apertados na garganta. Depois saímos invisíveis, ninguém viu Maria e eu de mãos dadas. Sinos trincavam a noite, do lado de fora duas luas iluminavam a praia. Fazei isto em memória de mim, rezava o padre.

No alpendre da casa de Dona Maria, a mãe da Luiza e do Camilo, uma luz vermelha iluminava bem de fraquinho o oratório, posto lá em cima onde o teto faz um T com as paredes. Dentro da casa a ladainha do rosário chegava ao fim, bem na hora. E, disposto, a vozeirão do Camilo anunciava: “tem bolo e pé de moleque”. Então, uma leva de criança deu de entrar na casa no mesmo instante que um tanto de menino saía pra rua. Todo mundo queria o bom da festa que era doce e bandeiras coloridas. E deu no que deu.

Num choque de gente afoita, bem aonde chegava Maria e eu, no alpendre aos pés da Santa, vi o mundo girar para cair de cabeça no chão.

Mas Camilo, que era o mais forte e o mais alto, me deu a mão e ergueu meu corpo para o ar. Ergueu mais e achou graça, ria e girava. Me erguia e girava como se eu fosse de papelão. Até mais alto que a cabeça dele, eu sentia asas nos pés que nem fosse anjo sobre tapete de nuvem. Erguia, girava, eu crescia. Crescia. Será que existe um céu onde só entram os meninos que fazem votos? Aquilo era toda a alegria de uma vez. Até cairmos contra a parede, ouviu-se um baque surdo, a parede tremeu e o oratório despencou.

Luiza estatelou olhar de medo, não aquele que sempre tinha, mas um olhar de perdição e pavor. O mundo ia acabar antes do natal.

O mundo, quieto sob os pés da Santa, caiu lentamente.

Enroscada na bola de gesso que era o mundo, a serpente sorria sem que ninguém percebesse. Luiza viu, o mundo acabaria antes do natal.

Agora, neste já.

Caindo.

A Santa no oratório, o globo a seus pés caindo.

Era o fim da rifaina, da prainha aos domingos, dos campos de areia fina. Adeus cajueiros das calçadas, adeus represa da Jaguara. Era o fim da cidade velha morta dentro do rio envolvida nos arames, lembranças dos vivos adeus. Era o fim da cidade nova erguida acima da colina, o fim do grupo escolar, o fim das peladas e dos meninos transformando risadas em palavrão. O munda caía sobre nossas cabeças e só Luiza percebeu. Só Luiza, meio santa meio louca, desvairada viu dentro do sucedido.

Camilo, já sentado e de mau jeito no escuro da incerteza, alcançou o que não ia. Com a mão direita me puxou pro seu colo e com a esquerda, tão firme como a outra, a Santa e o mundo.

Depois de tudo todo mundo riu, de alívio Luiza mais. Camilo e eu guardamos a certeza de que o mundo começava agora.

E deu-se nosso natal.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 22/10/2019
Reeditado em 06/11/2019
Código do texto: T6776450
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