Guia
Caio abriu os olhos, mas não conseguiu ver nada. Tateou o breu ao seu redor e percebeu que estava sentado no banco da frente do seu carro. Meteu a mão nos bolsos e achou um isqueiro e um maço de cigarros. Acendeu um, e usou a luz do isqueiro para tentar identificar onde estava. Viu que tinha parado num acostamento de uma avenida. O para brisa do carro estava trincado, mas de resto tudo parecia estar em perfeito estado. Tudo o seu redor estava escuro, como se tivesse ocorrido algum tipo de apagão. Apagou o isqueiro quando este já estava quente demais para segurar e Procurou seu celular, mas não o encontrou. As chaves do carro estavam na ignição, mas por algum motivo o veículo não ligou, quando ele virou a chave. Confuso, Caio resolveu se recostar no banco do carro e tentou puxar pela memória como tinha chegado àquela situação. Talvez tivesse atropelado algum animal na pista, ou alguma pedra tivesse atingido o para-brisa do carro e o choque pelo susto tinha lhe embaralhado a memória.
Abriu a porta do carro e continuou a fumar do lado de fora. Olhou para o céu e percebeu que quase não havia estrelas e muito menos uma lua para lhe guiar o caminho.
Esperou por muito tempo que passasse algum carro que lhe pudesse dar alguma ajuda. Mas ninguém passou. O silêncio era quase assustador, a ponto dele conseguir ouvir claramente o próprio coração batendo.
Quando já estava cansado de esperar, Caio largou o carro de lado e decidiu seguir pela avenida até algum lugar onde pudesse fazer uma ligação para que viessem lhe resgatar. Depois de um tempo andando, alguns carros passaram pela avenida, todos em alta velocidade e nenhum deles respondeu aos sinais que Caio fez, pedindo que parassem. Quando acendeu seu último cigarro, Caio percebeu a aproximação de um homem que vinha de trás.
A parca iluminação do isqueiro não permitiu que o identificasse direito, mas logo o homem acendeu um fósforo e tacou fogo num charuto. A chama permitiu ver o seu rosto. E ele pareceu ser um homem de quarenta e tantos anos, com uma barba curta e perfeitamente cortada. Estava todo vestido com um terno preto e uma gravata vermelha.
- Boa Noite, meu amigo. – Ele disse.
O homem tinha uma voz gutural e arrastada que fez um arrepio subir pelas costas de Caio.
- Boa Noite. – Respondeu, tentando disfarçar o susto.
- O Amigo está perdido?
- Estou sim, senhor. Bati com o meu carro e não sei exatamente onde estou.
- Ah Sim. Eu vi um carro parado uns quilômetros atrás. Era o seu?
- Era sim.
- Batida feia, hein?
- Não foi tão feia assim. Estou bem.
- Que bom então.
- O pior de tudo é esse apagão. Está complicado de achar ajuda.
- Tem dias que as coisas são assim mesmo, meu amigo. Mas tudo se resolve.
- Tem algum posto de gasolina aqui por perto?
- Perto é uma questão de referencial. Mas o meu trabalho fica uns quilômetros na frente. Lá pelo menos você pode esperar até amanhecer.
- Obrigado, senhor. Qual é o seu nome?
- Eu me chamo José Firmino das Almas.
- Das Almas?
- Sim meu amigo. E qual o seu nome?
- Caio. Caio Ferreira.
O Homem estendeu a mão e Caio a apertou.
Depois de balançar por alguns segundos, olhando-lhe nos olhos, José Firmino soltou-lhe e disse.
- Muito bem então, Senhor Caio. Vamos em frente
Andaram lado a lado pelo acostamento e apesar de não estar mais sozinho, Caio se sentia bastante apreensivo com a presença do homem.
- Onde o senhor trabalha?
- Trabalho num cemitério.
- O que o senhor faz lá?
- Eu administro as coisas.
- E o senhor vai trabalhar a pé?
José Firmino deu uma risada e depois tossiu tentando afastar o pigarro da garganta.
- Eu gosto de andar com os meus pés, Moço. Não gosto de ser carregado não.
- E quando o senhor tem que ir pra algum lugar muito longe?
- Não tem nenhum lugar do mundo que eu queira estar, que eu não possa só ir com meus pés.
- Mas de carro a gente chega mais rápido.
- E pra que tanta pressa, moço?
- Por que as pessoas tem muita coisa pra fazer pra estar perdendo tempo andando de um lado pra o outro.
- Andar nunca é perder tempo. Mas é só o que eu acho. E cada um acha de um jeito, não é?
- É verdade.
José Firmino deu uma tragada profunda no seu charuto e parou subitamente.
- Chegamos.
- Chegamos onde? – Caio perguntou, pois não conseguia ver muita coisa a sua frente pra saber onde estava.
José Firmino acendeu um fósforo e indicou apontou na direção de um grande portão de metal. O pequeno facho de luz permitiu a Caio identificar a entrada de um cemitério.
O portão se abriu sozinho como se fosse automático. E José Firmino o atravessou na frente de Caio, que o seguiu relutantemente.
- O moço não precisa ter medo não. Quem tá aqui dentro não pode fazer mal a quem está bem guardado.
Carlos balançou a cabeça positivamente, apesar de não entender muito bem o que José Firmino havia dito.
Andaram por uma calçada até que os dois puderam ver um pequeno altar cheio de velas acesas, de frente a uma capela.
José Firmino abaixou a cabeça e murmurou, fazendo uns sinais que Caio não reconheceu muito bem.
- Pelo sinal da Santa Cruz, Livra-nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos vivos e mortos.
E depois se abaixou e recolheu uma vela.
Caio hesitou em se aproximar, mas Firmino continuou.
- Repita o que eu disse, meu filho. E faça o sinal da cruz.
- Eu não sou Católico. Não tenho religião. - Respondeu Caio.
- O Cristo não era Católico, você sabia? Não é preciso ter uma religião pra prestar reverência ao que é sagrado. Mas o moço sabe o que faz. E o que não faz, né? Não tem nenhuma criança aqui.
Caio ficou um instante pensando sobre aquilo e relutantemente fez o sinal indicado e recitou as palavras que tinha ouvido.
- O moço tem que ter fé, quando fala as palavras. Tem que acreditar. Senão ficam só as palavras perdidas por aí. E o significado morre com o silêncio que vem depois.
Caio não teve o que dizer, mas ficou olhando pra as imagens sobre o altar e para as chamas das velas que crepitavam como se lutassem pra sobreviver na escuridão. E naquele momento, Caio sentiu um frio que nunca havia sentido na vida, assim como uma solidão que não teria conseguido descrever se pudesse falar. Mas ao mesmo tempo, aqueles santos e aquelas velas lhe trouxeram a memória lembranças familiares de seus tempos de criança. As novenas de sua avó e as orações de sua tia. As preces chorosas de sua mãe antes de dormir, que era o único momento em que ela podia demonstrar alguma fraqueza. E apesar de se sentir fraco e perdido, naquele instante, ele sentiu um calor do abraço de todas aquelas pessoas que lembrou.
José Firmino parecia ter percebido aquilo tudo e sussurrou com sua voz grave.
- Vamos em frente, Moço.
Caio seguiu logo atrás do homem e se não fosse sua presença ali, teria se perdido pelo meio dos caminhos do cemitério.
- O Moço parece que tem pressa...
- Tenho muitas coisas pra fazer quando chegar em casa.
- E é por isso que o Moço anda correndo?
- Acho que é um hábito que eu adquiri depois de adulto. O trabalho tem me consumido.
- E pra que o moço trabalha tanto?
- Pra pagar as contas.
- E que contas são essas que o Moço tem?
- Ah. Carro. Financiamento de apartamento. Viagens. Coisas pra casa mesmo.
- E por que o moço precisa de tantas coisas?
- São coisas que eu preciso pra viver. Coisas que eu gosto.
- Coisas que o moço precisa pra viver... Entendi. – José Firmino tragou fundo o seu charuto e soltou a fumaça para cima.
- O que foi, seu José? Falei alguma coisa errada?
- Moço. Quem sou eu pra falar o que é errado ou certo. Mas eu acho engraçado que o Moço ache que precisa disso pra viver.
- Não é que eu precise. Eu só quero ser alguém nessa vida.
José Firmino deu uma risada que pareceu tanto um riso quanto um deboche.
- O que o senhor achou engraçado?
- Acho que engraçado que o Moço pense que precisa ter tanta coisa material pra ser alguém nessa vida. E nem mesmo o saber é necessário pra ser alguém nessa vida. Taí o Moço, tão ensinado e estudado, trabalhando sem nem saber por que tá fazendo isso. Feito os Nêgo que morreram nessa terra, trabalhando pros senhores deles. Quando na vida, os homens que mais tiveram luz, não estavam nem aí pra riqueza. Mas vocês não ligam pra os exemplos deles, e terminam escravizados... no navio negreiro da carne.
- Então por quê o senhor não dá o seu salário pros pobres?
- E o moço acha que eu ganho alguma coisa pelo meu trabalho? Se o moço está achando que a minha paga é dinheiro o moço está mais enganado que sapo que engole bituca de cigarro achando que é um vagalume.
- E o que o senhor ganha?
- O que eu ganho não dá pra explicar com palavras. Por que os ouvidos do moço não vão querer ouvir. Primeiro o moço tem que fazer as pazes com a verdade.
- E que verdade o senhor acha que eu preciso fazer as pazes?
- Que da vida não se leva nada que não caiba no coração do vivente.
- Eu não acredito em vida depois da morte.
- Então o moço está de novo enganado.
José Firmino então parou e apontou pra uma lápide ao seu lado esquerdo. Mesmo com a pouca luz do ambiente, Caio pode ler o que estava escrito, como se fosse tão claro quanto algo escrito num muro iluminado pela luz do dia.
Caio Ferreira da Costa.
A data de morte era a data de seu aniversário de 30 anos.
O último dia que conseguia puxar pela memória antes daquele momento.
Caio então, olhou desesperado para José Firmino, que estava postado ao seu lado, com a mão em seu ombro.
- Agora o moço vai ter que aprender a viver só com o que trouxe do lado de lá. E quando o moço estiver pronto eu vou estar aqui pra te levar.
- Levar pra onde? – Caio perguntou, com a voz trêmula.
- Pra frente, moço. Sempre pra frente.
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Rômulo Maciel de Moraes Filho.
Laroyê Exu.
Saravá, Seu Tranca Rua das Almas.