DESJEJUM
DESJEJUM
Lílian Maial
Aquele teria sido um dia comum na vida de Nádia, não fora essa animação incomum, essa euforia desmedida. Tudo por conta daquele sonho/pesadelo, no qual matava Rubens. Em noites de outrora teria acordado suada e em prantos, com pavor da idéia de perder seu único amor. Agora, porém, depois de tantos desgostos, tanto marasmo, aquilo ao menos era excitante. Além do mais, isso era algo que Glória jamais teria coragem de fazer.
Glória era seu ídolo desde mais garota, amigas de infância e, de certo modo, também de Rubens nos últimos tempos, que para tudo a tomava como referência. E tinha aqueles peitos...
Glória era uma mulher, cujo nome já apontava para a sua realidade: interessante, de chamar a atenção, gloriosa. Estava sempre bem arrumada, mesmo que não intencionalmente (ela podia apostar que Glória sempre combinava calcinha e sutiã). Trabalhava fora, era independente, e conseguia manter seu espaço individual, apesar de filhos e marido. Dera sorte, por enquanto.
Perdida em seus pensamentos algo invejosos, não se dera conta da hora. É interrompida pelos brados do filho mais velho, exigindo seu café da manhã. Quase colocou sal, ao invés de açúcar, para vingar-se de mais um autoritário. Será que teria de dar um fim nesse “machistazinho” também?
Acaba a louça em silêncio. Estranhamente não retruca nenhuma provocação costumeira. Senta-se e observa.
Mecanicamente, Rubens faz sempre as mesmas coisas: demora a dirigir-se à mesa, como se quisesse irritá-la (e conseguia); faz de um tudo antes de tomar o raio do desjejum. Depois, levanta-se com aquele rádio estridente, notícias sem interesse, e deixa tudo ali na mesa: prato, faca, caneca, e ainda esquece, de propósito, o rádio ligado bem alto. Isso era diário. E Nádia, nada. Recolhia e lavava tudo. Deixava escoar pelo ralo toda a sujeira. Os filhos estavam saindo-se tão parecidos com o pai. Já nem colocavam um copo na pia. Nádia já havia sonhado acordada com uma pia enorme que não mais coubesse louça suja, e ela partindo às gargalhadas. Mas sabia que “rei morto, rei posto”. Contratariam logo uma doméstica obediente.
Finalmente saíram e ela voltou aos planos. Como fazer sem levantar suspeitas? (ela ficava surpresa consigo mesma com essa falta de horror, falta de temor à Deus e ao Diabo).
Pensara em envenenamento, mas sabia que seria descoberta. Escapamento de gás não daria certo, ele perceberia, tinha sono leve, e seria seu fim. Mexer nos freios do carro implicaria em envolver terceiros, além de outros acabarem pagando pelo seu problema, e isso não seria justo, já que ela não era uma criminosa, ora!
Violência não era sua praia. Praia! Afogamento... não, ele nadava bem, era capaz dela se afogar nos sonhos.
Céus! Homens matam tão mais facilmente, até nos contos.
Lavar a honra não colaria. Mulher já nasce desonrada, e depois que perde o cabaço então...
Recordou-se de sua primeira vez, quando Rubens a convencera a fazer sexo (ou fora ela?). Nem lembrava, naqueles tempos, que ele se chamava Rubens, tal era sua sedução.
Pegou papel e caneta e começou a enumerar as formas de se livrar de Rubens. Virava e mexia e uma doce lembrança daquele romance vinha à sua mente. Era o anjo, ela sabia, a soprar-lhe o ouvido direito. Mas logo vinha o capetinha pela esquerda, mostrando-lhe a verdadeira face de Rubens, seu enfado, seu desdém, sua vontade dos peitos de Glória.
Talvez fosse melhor acabar logo com aquilo e botar logo o silicone. Mas aí teria de aturar a boca de Rubens em seus mamilos e aquele bigode nojento lhe arranhando e lembrando o que havia comido no almoço.
Melhor seria o silicone e outras bocas. Quem sabe a boca de Marcelo, uma boca de 36 anos, sem bigode, cheia de lábios e dentes.
Ah, Marcelo, por tua boca eu mataria três!
Volta, mulher, volta!
E se combinasse com Glória um sexo eventual a três? Será que ela toparia? Tinha todo jeito que sim. Vai que se apaixonassem? Não, aí ele a deixaria com aquela ninharia por mês de pensão para os filhos. Nunca! Ela havia sacrificado seus melhores anos e seus peitos durinhos pela família, pela construção da casa, pela compra do carro, pela criação dos filhos, e ficaria sem nada, só por causa dos peitos de Glória? Nunca! Melhor seria contratar uma profissional. Ou um casal (um calor subiu-lhe as coxas, ao imaginar-se tocada por seis mãos, beijada por três bocas, ai!).
Vai tomar banho, mulher, ta na hora do batente!
Novamente atrasada, Nádia vai o caminho todo excitada com a idéia.
Imagina-se livre, até mais gostosa, arrumada, chega a se ver com os peitos de Glória.
Pensa na quantidade de veneno que teria de usar. Sabia que não terias forças para a faca e nem coragem de atirar. No fundo, gostava de Rubens, mas não suportava mais suas críticas, sua falta de educação, seus modos e as comparações com outras mulheres (pensaram em Glória, não é?). Não o perdoava por ter desaparecido o romantismo, as carícias, suas preferências. Eram mágoas e lacunas. Eram o que ele chamava de “bobagens”. Agora ficou esse carinho e essa raiva, quando pensa no que poderia ainda estar vivendo.
Chegou ao trabalho decidida a não levantar suspeitas, embora achasse que havia um letreiro de néon em sua testa.
Almoçou com facas e forcas. Sentiu cheiro de gás e gosto de sangue. Pediu para passar mais o bife. O cafezinho veio com um pó estranho no fundo. Estava ficando obcecada.
Voltou para casa ainda sem definir o método, mas deveria ser algo não muito chocante. Isso! Um choque! Troca de fusíveis, disjuntores, essas coisas de homem.
Na esquina da rua, viu a multidão agrupada, uma sirene ensurdecedora, com luzes circulando em vermelho. Foi-se aproximando de casa. Uma sensação ruim apossando-se de todo o seu corpo. Não se lembrava de ter fechado o gás após o banho, saíra apressada. Não havia mexido nos fusíveis, tinha certeza. O carro estava na garagem, Rubens havia chegado, não poderiam ser os freios (que bobagem, era tudo sonho, fantasia!). A poucos metros de sua casa, Glória surge e a interpela. Segura fortemente em seu braço direito. De súbito, seus peitos eram pequenos e murchos. E havia uma alça de sutiã encardida aparecendo sob a blusa. Os olhos de Glória passavam uma expressão de dor e pânico. Era notório que Rubens havia sofrido algum acidente.
Nada é dito, a sirene aumenta de volume, como o rádio de Rubens.
Nádia avança em direção à porta. Uma ambulância aberta. Todos a olham ela não os vê. Entra em casa. Sangue pelo chão. Muito sangue. As pessoas pegam nela. Tentam impedi-la. Sai, sai!
Então surge Rubens, rosto transfigurado, olhos de punhal. Desespero. Quem, então?
Lembra do mais velho e seu machismo. Não pode ser, está na escola.
Rubens a abraça com o mesmo carinho de antes. É reconfortante e inusitado. Quem?
Ela se desvencilha desse colo tão ansiado por tantos anos, anda em direção à maca e à equipe médica. Estão sobre um corpinho pequeno e frágil, mexendo, enfiando tubos, mais sangue...
Meu Deus, sua filhinha ali deitada! Desmaiada? Morta? O que acontecera? Como não pensara em Glória? O que havia acontecido com Glória?
Sim, a escola, o ônibus escolar. Perdera a hora da chegada do ônibus. Os planos... Perdera-se em seus planos. Mas e daí? Não podia perder Glória. Não sua família. Tantos anos de afinco, para que tivessem tudo do bom e do melhor. Era sua culpa. Estava preocupada demais com sua vida de pasmaceira. Foi castigo. Só pode ter sido castigo.
Joga-se aos pés de Glória. Remorso. Nunca se lembrava do seu nome. Tinha ódio desse nome que Rubens insistiu em chamá-la. Mas amava a filha. Agora restava a dor. Tudo era o resto, sem a menor importância. Mentira! Queria que tudo fosse bem diferente. Ver a filha ali não modificava sua realidade infeliz. Aumentava.
Rubens a conforta, faz promessas, tenta acalmá-la.
Nádia busca respostas em seus olhos. Sempre tentou lê-los, sem resultado. Mas lá estavam todas. Ou não?
Cai em prantos ao perceber sua vida. Encruzilhada. Todos os dias.
Desperta cansada. Arrasta os chinelos, sonolenta. Para a cozinha, como sempre. Desjejum na mesa. Rubens demorando. Júnior, vai lá chamar seu pai e sua irmã. Diz pra ele desligar a droga desse rádio!
Lílian Maial