Memória (ensaio)

Ela passou por mim, olhou-me um instante como se alguma coisa em mim a atraísse, ou fosse apenas o exótico da estranheza. Desceu a escada que vai do setor de livros ao de empréstimo e retirada carregando alguns indiscerníveis volumes. Seu perfume narcotizou minha mente destreinada, que se perdeu em deliciosas operações sinestésicas. Alguma coisa havia nela, alguma reminiscência. Do vidro fumê da biblioteca pública, já no setor de livros para onde me dirigira, observei-a atravessando a rua e subitamente se virar para minha direção, onde me deixou um último olhar, e eu senti o choque. Enquanto o sol se punha numa longa hóstia de sangue, fiquei ali, olhando pelo vidro fumê a saudade das coisas da vida deixando seu apelo na irrespondível e inencontrável distância, enquanto uma mão anônima acenava a um táxi que a levaria a algum lugar onde ela encontraria o sentido da sua existência, nem que fosse num pedaço de pizza ou num café bem quente na sala de uma casa dublando a solidão na tevê.

Vagner Rossi