A Bala de Maçã Verde

 

Hoje, fui assaltado, à mão armada, pela minha memória afetiva. A arma utilizada? Uma doce, despretensiosa e macia bala de maçã verde! Bateu uma saudade imensa da minha mãe! A velha ainda respira, no entanto deixou de viver quando perdeu o encanto pelas balas de maçã verde.

 

Puxando pela memória, chego a pensar que, para a minha mãe, a vida só fazia sentido porque tinha o sabor das balas de maçã verde. Naquela época, ela se orgulhava de viver dentro das paredes imaginárias de um casamento. Portanto, concluo que eu tive saudade foi da minha mãe casada com o meu pai. Saudade da época em que havia prazer no gosto e na textura daquela bala barata e viciante. Isso é bom? Não sei. Talvez!

 

Não acredito que os meus pais viviam um relacionamento feliz. Tenho uma forte tendência a crer e bons motivos para afirmar que, de certo modo, eles apenas estavam acomodados a uma infeliz conveniência. Tampouco acho que um dia tenham se casado por amor. Na metade do século XX muitas moças negligenciavam os seus sentimentos para casar com o ‘bom rapaz’ indicado pelo pai ou pelos irmãos mais velhos.

 

Pelo retrovisor da saga familiar, com meu olhar já míope, vejo que a minha mãe era uma mulher que não valorizava a qualidade da relação em si e sim o status social do pertencimento, o orgulho da mulher que assina o sobrenome do seu homem, ainda que este não seja tão seu assim – não importa se o sobrenome, o homem ou nenhum dos dois. Mas eu tenho saudade da minha mãe casada com meu pai! Aquela mulher empinava nariz e ombros para ostentar sua dignidade. Falava com voz empostada e segura. Sua vivacidade causava reverência e temor nas pessoas.

 

Minha mãe esposa do meu pai... Possuía dotes culinários limitados, porém felizes. Carne em pedaço inteiro, feita na panela de ferro, bife de porco acebolado, dobradinha, macarronada, salada com maionese, mingaus variados, sopas, bolo de panela, doce de mamão, curau de milho, doce de arroz gelado com canela...

 

Tenho saudade daquela mulher que gostava de rir... Não me lembro dela sorrindo para o homem com quem casara. Rir e sorrir são coisas distintas. Talvez ela até risse de um ou outro caso, no entanto não exibia aquele sorriso de prazer que sorriem os apaixonados. Não havia aquela coisa gostosa que cai dos lábios de quem gosta de estar junto e faz brilhar os olhos. Porém ela gostava de rir! Ria da vida, ria dos outros, ria dos causos... muitas vezes a vi às gargalhadas de perder o fôlego! Havia em sua alma um prazer por socializar, estar com amigos e família, comendo muito, falando alto, rindo sei lá de quê e, como não podia deixar de ser, me xingando porque criança não deve ficar perto da conversa dos adultos! Daquela mulher herdei o espírito risonho e gosto disto!

 

Minha mãe, com uma aliança no anelar esquerdo, emanava energia! Claro que às vezes tal energia não era bem direcionada nem muito apropriada, o que me causava alguns constrangimentos, algumas surras e muita raiva! Entretanto era energia de gente viva, dona de si e com certezas inquestionáveis. Era energia de quem mantinha as coisas nos eixos e sob seu absoluto controle.

 

Minha mãe... Apesar do pouco estudo, que não passou dos três primeiros anos primários, gostava de ler. Lia principalmente coisas relacionadas à saúde e ao Sagrado. Do Livro Santo, tinha um carinho especial pelas palavras do Salmo 40:

 

Esperei com paciência no Senhor. Ele se inclinou para mim e ouviu o meu clamor... firmou os meus passos... e pôs um novo cântico na minha boca, um hino ao nosso Deus...

 

Lia ainda as revistas da Escola Bíblica Dominical. Nelas, gostava de fazer anotações nas beiras das páginas, escrevendo as suas impressões e entendimento do texto. Por valorizar a leitura, respeitava meus momentos de imersão nos livros. Às vezes ela comprava discos de músicas religiosas, aos quais ouvia e cantava junto. Quase toda semana, permitindo-se um ou outro excesso, pedia para que eu a ajudasse a cantar o Hino 202 da Harpa Cristã:

 

Junto ao trono de Deus preparado / Há, cristão, um lugar para ti / ... / Sim, ali; sim, ali / De Seus anjos fiéis rodeado / ... / Junto a Deus nos espera Jesus

 

E ai de mim se eu risse ou dissesse que ela era muito desafinada! Não importava... a minha mãe até cantava!

 

A minha mãe casada com o meu pai cultivava um jardim de antúrios que era referência no bairro! Aquele jardim do Bairro Satélite, além de exalar vida e beleza, dava uma identidade à nossa casa. Rubem Alves, teólogo e escritor de alma poética, entendia que os jardins são entidades sagradas, pois antes de criar o homem, Deus plantou um jardim e viu que era muito bom! O meu pai também cultivava jardins. Ele plantou um belo jardim de azaleias e grama na nossa casa.

 

O jardim de azaleias harmonizava de forma delicada com o jardim de antúrios de minha mãe. As flores não se importavam com a provável incompatibilidade do casal, pelo contrário, ela os atraía para a poesia das cores. A fagulha de algo que possivelmente pudesse existir entre eles, estava ligada ao amor pelas plantas e ao prazer de cultivá-las. Minha mãe amava as plantas e detestava os gatos. Compartilho dos mesmos sentimentos, com menor intensidade em ambos os casos.

 

A minha mãe casada com o meu pai era uma mulher de fibra e fé. Era tanta fé em Deus que nem pensava no diabo! Aos oito anos, um escorpião me picou, na mesma semana em que uma menina da escola havia morrido envenenada por um maldito da mesma laia. Engana-se quem pensa que fui levado ao hospital. Fomos para a igreja e, após a oração, que o pastor fez com as mãos sobre a minha cabeça, minha mãe disse, com aquele tom de quem não aceitava ser questionada: Agora fica quieto que vai parar de doer. Estou aqui, não estou?

 

Minha mãe casada com o meu pai era outro papo! Ela vendia cosméticos de revistas, bordava, fazia crochês, promovia reuniões de revendedores de um monte de quinquilharias e andava a colher assinaturas para levar aos vereadores os abaixo-assinados pedindo melhorias para o nosso bairro. Arretada era pouco pra ela! Minha mãe, na época em que se sentia digna, gostava de ajudar as pessoas. Não sei como ela estabelecia seus contatos, porém sempre tinha o número do telefone de alguém com certa influência para arranjar um emprego para algum conhecido.

 

Em casa, ela tinha prazer em servir um café da tarde aos operários da prefeitura que capinavam o mato da rua calçada onde morávamos. Sempre tinha algo a dar para matar a fome também dos pedintes que batiam na nossa porta ou aos voluntários da Associação São Vicente de Paulo, que passavam recolhendo donativos para a “campanha do quilo”. Houve até um dia em que ela me pediu que fosse a outro bairro levando um botijão de gás nas costas para doar a uma amiga necessitada. Eu tinha quatorze anos. Não sei como, entretanto, eu fui! Aliás, sei como fui: fui com raiva!

 

Para entender como era a minha mãe, quando ainda era casada com o meu pai, saiba que ela era a referência da família para ser guia dos parentes que precisavam viajar a Belo Horizonte, capital do estado. Ela sabia todos os endereços, números dos ônibus, onde comer gastando pouco e como pedir informações com eficiência.

 

São muitas as histórias! Todas, passageiras dos muitos vagões do trem da memória que segue seu caminho por outras vivências.

 

Saudade mesmo eu tenho é da minha mãe, que quando era casada com o meu pai, gostava do sabor da bala de maçã verde! Não sei quando foi que começou esse gosto peculiar pelas balas, só sei que era legal ter uma mãe que tinha algum gosto fútil por uma guloseima de criança.

 

Como contei, ela ainda respira, no entanto deixou de viver no dia em que o casamento ruiu num desses vendavais que surgem detrás de alguma curva da existência. Ela não se preparou para ser sem pertencer. Não construiu alicerces próprios para viver em carreira solo e, muito menos, para se aventurar em outra dupla. No seu imaginário, uma mão sem aliança perde a capacidade de extrair poesia de antúrios e azaleias. Por não aguentar a perda do status convencional ao qual estava habituada e para o qual foi educada, ou adestrada, aquela senhora altiva se tornou um vulto da mulher que um dia foi.

 

Não faz mais doces, não dá gargalhadas de molhar os olhos, não tece belos forros de mesa, não lê as revistas da Escola Bíblica, não sabe mais como viajar sozinha. Trocou as flores por um concreto mórbido. Não sente prazer em reunir pessoas... Na sua solidão simples, às vezes um lampejo surge num bordado ou num caderno de palavras cruzadas. Porém, como fogo em carvão molhado, não passa de chama que logo sublima em fumaça. Infelizmente, a minha mãe desimpedida nunca compreendeu a verdade da poesia que era cantada pelo conjunto das senhoras da sua igreja...

 

Tens acaso mágoas, triste é teu lidar? / É pesada a cruz que tens de carregar?
Conta as muitas bênçãos, não duvidarás / E cantando alegre os dias passarás

Conta as bênçãos, conta quantas são / Recebidas da divina mão
Uma a uma, dize-as de uma vez / E hás de ver, surpreso, o quanto Deus já fez

 

Nas últimas três décadas, minha mãe não me pediu balas de maçã verde!

 

Ilustração: Gisely Poetry

Jefferson Lima
Enviado por Jefferson Lima em 18/10/2019
Reeditado em 09/06/2022
Código do texto: T6773112
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