A LIBERDADE DO TEMPO
Pergunto. Perguntas. Pergunto-me sobre esse espaço aberto escancarado fenda de onde saí de onde emerge tudo aquilo que chamo nomeio declaro como involuntário. A morte de cada presságio ou cada presságio que norteia ao meu redor, o meu campo magnético, o medo de ficar preso dentro do teu campo também é algo sempre em aberto que demarca os meus dias como esse dia de hoje em que nem o vento que entra pela janela e nem a presença de outra pessoa consegue estourar a bolha de sabão na qual me encontro dentro suspenso tateando de alguma forma fugir separar deixar ir o que ainda não sei se estou pronto para perder como se eu tivesse perdido porque na verdade passei a achar que ganhei uma certa liberdade desde aquele dia o dia exato o ponto exato tudo é exato e paradoxal porque nós nunca fomos exatos perdidos seria uma palavra melhor perdidos dentro fora em todos os lados perdidos e demasiados eloquentes verborrágicos autodestrutivos como sempre foi é e será.
Tornou, volto: Pergunto-me de onde advém a certeza de nossa autodestruição? Comecei a perceber o quanto ainda é complicado aceitar fins, mesmo que esses fins sejam necessários, porque sempre é preciso. Preciso deixar que algo morra, seque, feito manhã de São João com fogueiras que não passam de cinzas, cinzas também como cores que marcam esses dias mesmo que o céu, agora, encontre-se cheio de um negro absoluto e só se percebe os pequenos pontos luminosos e mortos. Mortos. Tão mortos quanto nós, agora, antes, sempre, as mortes, a loucura, a destruição e percepção de que é preciso é tão preciso quanto a linha do equador – que é imaginária – preciso romper a bolha deixar isso de dentro ir embora como as águas do mar caindo das mãos ou o vento levando cada grão de areia. E retrocedo, dou voltas loucas em torno de mim, talvez eu seja o ponto pelo qual começa e termina o estar em você dentro de mim e torno a querer voltar porque sou fraco e não tenho força ou porque sou forte, mas não. Não sou forte. Silêncios, ausências e distâncias. Cronos é só um pedaço de chão. O tempo é melancólico. Psicológico. Autodestrutivo: nós.
Nós? Na verdade: Você. Indo e vindo e dizendo aquelas palavras e eu me sentindo machucado violado transtornado e isso são apenas os ados de cada termo que escolho com uma paciência surreal para tentar entender o que dentro de mim ainda volta a ter os sonhos ou impedir você de ir embora, pois eu vim embora porém você ficou dentro, marcando-me, destruindo cada possível presente e futuro que eu poderia vir a ter e dando-me o poder de manipular até o que eu nem me dei conta que sentia e a pergunta gira dentro da minha cabeça como uma chave contorcendo-se na fechadura errada: Eu quero mesmo deixar você ir? Eu quero mesmo deixar tudo aquilo para atrás de lá daquele lugar onde tudo era tão horrível quanto vivo?
Criei histórias, metáforas, conheci pessoas, o fato de deixar ir sempre foi tão inerente a mim. Sempre acabo em silêncios. Eu fico mudo, naquele tempo por medo de falar, mesmo. Medo de dizer e ouvir o que eu sabia que já era dolorido. Porém, sempre acabei ouvindo e aceitando e concordando até no que era mais escuro, errado, perverso. Eu: conivente com seus delírios, sua loucura que também era minha, sua insanidade que também me pertencia, sua dor cheia de planos sequências e plot twits que eu já sabia como seriam.
Agora? O que devo fazer com a minha insanidade? Como se deixa ir algo? Eu deixei ir três amores, três afetos, três homens, eu deixei ir uma irmã, eu deixei ir alguns amigos, eu deixei ir minha capacidade de existir e ser. Eu deixei ir como quem se prepara para a grande partida e nunca tive culpa medo nojo desgosto. Mas, tem a bolha, os sonhos e a necessidade de matar você dentro de mim, porque eu quero, porque mesmo não tendo a certeza eu sei como você é, e não quero me tornar você, não quero sua mão na minha pele, seus olhos nos meus olhos, seu campo magnético, nem as roupas, os livros e os discos. Não quero ser parte de sua existência e você precisa deixar de ser parte da minha.
Tudo vai acabar onde começou? Eu não sei. Tenho medo sim, medo de voltar e olhar e sentir mais veemente aquele descompasso da vida que é a única possibilidade de ir chegando mais perto e descobrir como se deixa você ir para fora de mim, para longe e transformar Cronos em algo ilógico, pois ele não pode ser reduzido a cronologia de relógios, distâncias físicas e ausências inúteis. Inúteis ausências porque nada do que se pode fazer agora modifica o fato de nosso fracasso em ser, em sermos, em sermos algo.
Reverbera e dilata-se dentro de mim esses pedaços de tempo, esses delírios demarcados por restos de sanidade ao passo que olho pela janela e percebo esse escuro que se é rompido pela fumaça que percebo escapar do cigarro. Essa fumaça, como as cinzas das fogueiras, vai perdendo-se junto ao ar deixando-se ir também. E, é inútil acordar no meio da noite depois de sonhos intranquilos tendo a percepção de que tudo aqui é usado para mascarar um vazio, embora seja desse mesmo vazio que sempre volte e recomece e se contorça e tome forma as memórias tão irremediáveis quanto doloridas: quem sabe por tudo que fomos, que sabe por tudo que poderíamos ter sido se não tivéssemos nos afogado em outros mares, sem barco, remo, salva vidas, apenas dois corpos perdidos e levados pelas ondas para cantos opostos do grande oceano.
A sutileza de perder chega a ser a mesma de deixar que se vá, vá embora algo, vá embora você, ainda vindo a necessidade de cortes e sangue como um pacto selado durante a história da humanidade. Perdi, deixei ir, desfiz-me de amores, amigos e irmãos. Agora, procuro um modo de te libertar, ainda que venha em trevas noites escuras silêncios perturbadores: não consigo conviver com as memórias antigas, ainda que seja através dela que me alimente os dias, ainda que essas memórias sejam um traço que já foi existência em algum ponto desse caminho travado entre duas pessoas.
Matar não é o mesmo que decepar um corpo até o último vestígio de carne. Matar é também fazer morrer o que não pode ser, o que não deveria ter sido, o que não será concretizado. E matando-te caio em liberdade e o chão já não está sob meus pés. Cronos vai se transformando na ausência de toda lógica da bússola norteadora. Kairós vai descendo e me transfigura em outro tempo: tempo de deixar ir, talvez o sentimento, talvez a cidade. Porém, deixar que se perca entre os muros, os edifícios que um dia nos circundaram. Perder-se no tempo, na vida, nos sentimentos procurando em cada lata lixo espalhada, em cada bueiro sujo da cidade o que é amargo ou agridoce, como somos agora.
Deixar ir para perder-me, perdes-te, reencontrar eu a mim de outra forma, de outro jeito, feito faca de dois gumes, perpetuar-se no outro lado, naquele que você não existe. Somente: te deixo ir, fujo dos teus descampados, das tuas planícies, do teu magnetismo. Daqui, deste lado, o lado de cá, de Cronos enquanto tempo espaço e terra encontro Kairós transfigurando-me para o que não me prende. Sou Kairós: oportuno, instante-agora, já, quando te deixo ir.
Para que possamos seguir nossas liberdades é necessário o ato máximo de qualquer existência, as mortes cotidianas. Morro hoje, morro amanhã, ontem também morri. No instante-agora não me movo, olho ao redor e percebo o vento. O vento, enfim, afaga a bolha na qual me encontro, jogando-me contra a parede. Ela estoura, eu entro em queda livre. Liberto: você já se foi, restam-se poucos minutos, uns segundos, quase nada para aceitar como um santo em penitência no deserto a escuridão da noite que me aguarda. Avanço pela escuridão e te deixo ir. Deixa-me ir também?