Ego
Dona Alzira, no auge dos seus setenta anos recém-completados, era a irmã mais velha e mais voluntariosa. Dona Maria, tinha sessenta e oito e era de poucas e certeiras palavras. Desde o falecimento da mãe, há um ano, as irmãs únicas e que durante a vida toda se tratavam respeitosamente, agora não se falavam mais. Nem mesmo em redes sociais. O grupo da família havia sido desfeito e nem sobre a amizade virtual ficara pedra sobre pedra. Nem Alzira, a mais conectada delas, fazia questão de contato.
O motivo? O velho faqueiro de prata que havia sido da falecida mãe das distintas senhoras, utilizado somente em datas comemorativas e conservado como tesouro egípcio encontrado por arqueólogo famoso. As matriarcas bateram boca por duas semanas para decidir quem ficaria com a lembrança materna.
- Sou a mais velha! - Exclamou por muitas vezes Alzira- a ceia de natal era minha responsabilidade! Sempre foi. Tenho direito!
- E eu sou a caçula. Sempre ofereci o almoço de dia das mães e sempre dei os melhores presentes. Além disso, tenho filhas. Assim, o faqueiro vai permanecer na família pelas próximas gerações - afirmava Maria enraivecida.
- isso não importa porque sempre fui a mais cuidadosa de nós e você sabe disso.
As discussões foram substituídas por um silêncio sepulcral entre as irmãs quando José, o padrasto da dupla obstinada e viúvo da finada detentora do motivo da guerra, decretou que o objeto não sairia de casa nem que todas as vacas tossissem. Como era dono da casa em que morou durante anos com a esposa e ninguém ousava contrariar um digníssimo senhor de noventa e três anos, assim foi feito e, sobre o assunto, estendeu-se a irremediável taciturnidade. Um ano já havia passado e nenhuma delas fazia questão de contato e nem dava o braço a torcer, afinal, as duas se achavam em maior direito.
Dizem que foi durante uma madrugada tranquila que a casa do senhor José foi invadida. Como na ocasião o ancião dormia sozinho e seus habituais remédios lhes intensificavam o sono, não percebeu o roubo senão na manhã seguinte com a porta arrombada, um pouco de dinheiro levado, além do desejado faqueiro de prata. E mais nada.
Um vizinho sugeriu que fosse feito um boletim de ocorrência, mas as irmãs negaram-se a ir à delegacia e responderam como se combinado fosse:
- Viu? Se estivesse comigo...
Passados os meses, o ocorrido começou a perder-se como nuvem cinza que se dispersa em início de manhã de primavera. No almoço de aniversário da filha mais velha de Maria, o velho José organizou a festa, fez as honras e já havia até mesmo comprado outro faqueiro de prata, buscando a retomada da harmonia familiar. As irmãs, embora cumprindo o protocolo dos encontros familiares, mal se olharam durante toda a festa, enquanto os convidados brindavam e sorriam. Após um ano, esqueceu-se a causa, a consequência ficou.
Acabado o almoço, e depois de um formal “Até mais”, Nem Maomé foi à montanha e nem o oposto. Não importando mais o motivo, os braços jamais foram torcidos, apesar de terem ficado os dedos e o anel roubado já ter sido esquecido e substituído. A infância já havia ficado muito distante para permitir novos enlaces. Afinal, o orgulho é de material mais resistente que a prata, e o silêncio é de ouro bruto e não precisa de motivação.
Enquanto isso, a aniversariante, guardou no quarto duas peças do novo faqueiro, como um presente que tomaria aos poucos para si mesma. Desta vez, não dava pra arriscar.