Alma roubada
Ela saiu atrasada e distraída. O celular guardado no fundo da bolsa estava no modo silencioso, por precaução. O dia amanhecia nublado e sonolento como extensão dela mesma, como se, ela se olhasse no espelho após o banho da manhã. Enquanto isso, o trabalho já a aguardava. Na bolsa, além do celular, estavam os papéis costumeiros: textos, exercícios, atividades organizadas para a semana toda. Ela era metódica. Precisa, porém fugidia. Não sei se bela, mas certamente carregava algo no fundo dos olhos que refulgia e negava qualquer definição.
Eram seis e quarenta da manhã e o ônibus em breve chegaria ao ponto mais próximo. Verificou mais uma vez a bolsa e incluiu seu caderno de anotações. Como o período de deslocamento para o trabalho favorecia, e da mesma forma seus horários de professora, que traziam sempre alguma hora vaga, anotava pensamentos e idéias, pedagógicas ou literárias, e dizia com orgulho: “poderão me levar tudo, menos conhecimento. Menos as minhas ideias.”
A poucos passos do ponto de ônibus ainda arrumando os longos cabelos apressadamente, percebeu a aproximação de um homem em uma moto que disse em voz ríspida e grave “Passe a bolsa. Agora! É um assalto.” Ela olhou-o de cima a baixo e pensou em não entregar. Contudo, pela aflição do momento, não conseguiria correr. Pensou nos pais velhos e distantes. Depois, não pensou em nada. Foi apenas um segundo. Resolveu então atender e entregou a bolsa.
Atônita, começou a fazer o caminho de volta para casa, para usar o telefone fixo e assim avisar o ocorrido para os seus gestores, além de cancelar o número do celular. Paciência. Agora deveria comprar um aparelho novo e, posteriormente, recuperar seu número. Sentia-se muda e impotente.
Ao entrar em casa, levou a mão ao rosto e sentiu os lábios amargarem ao lembrar-se do caderno de anotações e da profecia não cumprida. Suas ideias, pensamentos, desejos, devaneios e projetos foram levados e certamente seriam abandonados pelo assaltante em um lugar qualquer. Sentiu o suor escorrer morno e febril juntamente com uma lágrima solitária.
Quem sabe alguém anunciaria em suas redes sociais o material encontrado em lugar próximo? Apesar de assinar tudo somente com as inicias A.F e nunca usar nome completo, saberia de imediato que os escritos eram os seus. Frutos dos momentos nos ônibus e de insônia. Deixou o coração se aquietar e foi alertar as pessoas sobre o que havia se passado. Dois meses depois, ela viu uma de suas frases postadas no facebook. “A alma caminha com seus próprios pés e, sendo a maior expressão de liberdade, repousa nas mãos de quem a abriga.” Reconheceu-a logo. A página era de uma editora.
A assinatura não era como de costume, as suas inicias. Nome de homem, mas desconhecido, certamente um pseudônimo. Nesse momento viu um filme passar diante de seus olhos, desde as primeiras histórias escritas ainda na infância. Ainda engasgada e surpresa, viu-se diante de um pedaço de si. Perplexa e paralisada, como uma mãe que tem seu filho levado de seus braços em meio a multidão.