A VOLTA DO COLIBRI VAMPIRO

Fazia tempo que Otacílio se transformara em um colibri. A partir de então, sentiu-se revigorado pelas características dessa espécie de pássaro. Os fortes músculos impulsionavam seus vôos, cada vez mais confiantes e ousados. Cedo, descobriu a capacidade de até mesmo voar para trás, proporcionando-lhe um sem fim de movimentos imaginativos, de acordo com a ocasião. Divertia-se, particularmente, com a possibilidade de agitar as asas até oitenta vezes por segundo, em gratificante sensação de vigor. Comparava aquela energia ao cansaço que experimentava no trabalho e fora dele, em sua fase humana pregressa. Que diferença!

A visão aguçada dos beija-flores também o deleitava: nada parecia escapar aos seus olhos vigilantes, estivesse voando ou pousado nas árvores. Mais uma vez se lembrou dos velhos tempos em que deixava de ver erros de substância e de forma nos documentos que examinava no escritório. Por mais que se esforçasse, seus olhos não colaboravam, dormiam no ponto sem detectar as imperfeições nos textos lidos e, o que era pior, nos redigidos por ele próprio. Somente a relativa indiferença com respeito às suas funções reduzia o dissabor da sua mediocridade em termos de trabalho.

Como colibri, Otacílio passou a beneficiar-se, acima de tudo, de um coração potente, que corresponde a cerca de quinze por cento do pequeno corpo do pássaro. Isso lhe conferia maior energia, algo de que sempre careceu enquanto foi bicho homem. O novo órgão estimulava-o, adicionalmente, a ter mais amor pelo próximo ou, talvez melhor dizendo, pelos distantes de si (já que não mais fazia parte da espécie dita humana). Nos seus antigos tempos de homo sapiens (sic), mostrava-se um tanto indiferente aos desfavorecidos pela sorte, quando não se tratava de pessoas do seu conhecimento direto. Agora, compadecia-se de imediato ao identificar alguém que sofresse de mediocridade, mal ainda mais grave do que a pobreza material. A missão dos “colibris vampiros”, como ele ainda costuma rotular seus congêneres, reside em resgatar os medíocres, injetando-lhes o néctar da vida para transformá-los em beija-flor.

Não obstante o dinamismo de sua existência alada, e a felicidade daí decorrente, Otacílio questiona-se no momento. O poderoso coração parece ressuscitar, com sua força ímpar, certa inquietação que antes mal o perturbara. Sua mente, até então libertada das limitações humanas, põe-se a indagar o sentido dos vôos, quase sempre solitários, e das eventuais injeções de néctar vital em pessoas desmotivadas e tendentes a perpetuar seu vazio existencial.

O colibri tem consciência do seu papel salvador, o qual valoriza sem sombra de dúvida. Ocorre, no entanto, que sua missão começa a afigurar-se repetitiva, no seu modo de entender. É duro admitir pensamento tão preocupante, mas sua nova realidade já lhe soa como rotina. Todos os dias, desperta e alça vôo em busca do néctar das flores que lhe dão sustento, dos humanos necessitados de seu auxílio e, naturalmente, do convívio com outros colibris, com quem troca informações e opiniões. As conversas com seus pares podem ser substanciais, estimulantes, mas às vezes percebe alguma falta de sintonia com seus questionamentos.

Em seu coração de beija-flor, ameaça bater, mais firme, a angústia do tédio, experimentado em tantas ocasiões passadas no velho corpo humano, mas de modo passageiro, como se sua vidinha pequeno-burguesa não oferecesse via de escape, fazendo com que se resignasse à situação. Agora é diferente. Mente, coração e corpo de colibri possuem outra dinâmica, a impulsionar atos e pensamentos. Talvez lhe falte inteligência maior do que a do pequeno pássaro para solucionar suas questões. Se fosse inteligente como um corvo (para não fugir à classe das aves e pássaros), quem sabe resolveria melhor a dúvida que ora o aflige.

Vem à lembrança o célebre autor francês, cujas obras lera entre a adolescência e a idade adulta. Não concluíra a leitura do livro sobre o homem revoltado, inclusive porque sua transformação o impediu. Retém, todavia, muito - ou um pouco, pelo menos - das profundas considerações relativas ao absurdo da existência humana. Estaria prestes a descobrir o similar absurdo da vida dos colibris? Sorri ligeiramente em seu íntimo ante semelhante conjectura.

Seria irônico, de fato, se ele viesse a concluir que tudo são fases na vida de qualquer ser vivo. Da fase original de bicho homem acomodado, passara à de bicho pássaro realizado (momentaneamente) e questiona agora se evoluiria à etapa de outro animal insatisfeito, estágio para a revolta liberadora definitiva.

Desvia o pensamento novamente para Natália, a ex-namorada, com quem Otacílio cuidou de terminar o relacionamento tão logo notou que se formavam penas em seu corpo. Ainda devotava carinho à antiga amante, mesmo se ela não fora capaz de alterar a continuada existência de tédio e mediocridade em que estava imerso. Após a transformação em beija-flor, ele a reviu em várias oportunidades. O sofrimento dela pela separação ampliou-se ao saber do misterioso desaparecimento do rapaz. Levou tempo para que Natália superasse os momentos difíceis e iniciasse novo namoro. Parecia feliz ao lado do novo par, mas o colibri acredita que ela ainda não o esqueceu, com base em sua perspicácia de passarinho e no compreensível desejo, tanto humano quanto animal, de nunca deixar de ser amado.

Ele também sente falta da ex-namorada. Reflete que o amor seria mais forte do que qualquer causa revolucionária. Talvez nada falte para renovar o sentido do seu mundo emplumado senão a força de uma paixão. Convencido disso, afasta quaisquer dúvidas quanto à recaída na rotina e passa a avaliar em que medida Natália poderia ser prisioneira da mediocridade, como ele o fora. Chega à conclusão de que deve observar a moça com regularidade e redobrada atenção proximamente. Somente mediante a observação e a análise exaustivas, poderá vir a decidir as providências a tomar. Assim como agira o beija-flor que o transformou para uma nova vida e como o próprio Otacílio já havia igualmente feito com outros indivíduos, caberia preparar-se para outra eventual transformação.

Sente a responsabilidade da futura decisão. Deverá lutar consigo mesmo para que o desejo de reencontrar-se com a companheira de outrora não prejudique a avaliação isenta quanto à necessidade de convertê-la em colibri.

Voa, resoluto, para a crucial missão.

Afinal de Contos..., 2019, ed. Illuminare, Torres, RS.

Sequência de “O Colibri Vampiro”, disponível nesta Escrivaninha.