Descuidado

“Não sejas descuidado!”, ela dizia, enquanto eu chacoalhava a ponta do robe na tentativa de apagar o fogo. Essa era a frase que eu mais ouvia. Muitas vezes com razão. Muitas vezes com nem tanta razão assim. Eu era mesmo descuidado. Eu tentava de todo modo não atrapalhar toda aquela encenação. Quero dizer, todo aquele ritual. Eu nem sequer acreditava naquilo, eu só queria uma desculpa para passar um tempinho com ela. Eu nem acreditava, mas eu gostava de toda aquela ambientação, eu gostava da empolgação e do comprometimento dela. Ela parecia acreditar muito naquilo tudo. A barra do meu robe já estava toda chamuscada. Eu volta e meia me descuidava e deixava o fogo das velas pegar. Roupas longas e fogo definitivamente não combinam.

Começamos o teatro. Digo, o ritual. Era suposto que eu lesse um tipo de oração em uma língua tal que eu definitivamente não conhecia. Eu não fazia ideia de como pronunciar aquelas coisas. Eu não tenho certeza se ela sabia também, mas ela falava tudo de uma forma tão convicta e, mais importante, sem gaguejar, que eu colocaria minha mão no fogo por ela. O robe eu colocava no fogo sem querer mesmo. Era só descuido. Peguei o livro e fui tentar ler. A cada erro ela suspirava e me corrigia. “Precisas ler com atenção. Não precisas ler rápido, só dizer tudo claramente.”, dizia ela conforme eu, morrendo de vergonha, a passava de volta o livro. Havia chegado o momento em que deveríamos fechar os olhos e fazer silêncio. Devíamos pensar apenas em coisas que nos traziam calma, tranquilidade, felicidade. Eu tentava. Eu realmente tentava. Mas de tantos em tantos segundos eu não resistia e abria os olhos. Eu abria os olhos só pra ver aquele rosto dela. O quarto escuro iluminado apenas pela luz das poucas velas deixava tudo muito mais bonito, aliás. De repente ela levantou o rosto e abriu os olhos. Eu, completamente distraído, não consegui fechar os meus olhos a tempo. É claro que ela percebeu que eu não fiz o que ela mandou. “Ver-te de olhos fechados e assim tão tranquila trouxe-me muito mais paz do que qualquer coisa que eu poderia ter imaginado.”, soltei sem pensar. Descuido, descuido. Ela me olhou séria, quase como se estivesse brava, mas dava para perceber que ela estava mesmo é com um pouquinho de vergonha. Eu também estava. Eu estava morrendo de vergonha. Eu sei que sou absolutamente descuidado, que sou muito transparente sem perceber, mas eu podia jurar que ela ainda não sabia o quanto eu gostava dela. “Certo, não há hipótese de continuarmos hoje, de qualquer forma. Ajuda-me a guardar tudo e depois vamos ao café, está bem?”

De casa até o café era uma caminhada de uns poucos minutos. Dez, no máximo. Fomos os dois calados. Ela olhando pro chão, eu olhando pro céu. Chegamos, sentamos, pedimos cada um um café. “Sabes do que aquilo tudo se tratava, pois não?”, ela perguntava enquanto me olhava fundo nos olhos. Senti meu rosto quente. “Não, na verdade. Eu só queria ficar mais próximo de ti.”, respondi. Morrendo de receio, mas respondi. Ela suspirou e riu. E riu. Pensei em rir também, mas a confusão que aquilo me fez suprimiu meu riso. “Tens que gostar mesmo muito de mim para aguentar aquela cena até o fim sem questionar.”, ela falava enquanto ria-se. Eu ainda não sei muito bem do que se tratou aquilo tudo, ela não deu muitos detalhes. Nossos cafés haviam chegado e eu ainda não havia me recomposto. Estava confuso e ao mesmo tempo bastante hipnotizado por ela, que agora abandonara aquele jeito sério e parecia bem alegre. Peguei a xícara. Tentei levá-la até a boca para dar um gole e, no meio do caminho, escapuliu-me. Tomei, praticamente, um banho de café. Enquanto eu permanecia estático e sem saber como reagir, ela não conseguia parar de rir. “És mesmo muito descuidado!”

Pedro Paz
Enviado por Pedro Paz em 05/10/2019
Código do texto: T6761559
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.