Yoko

Desci do ônibus e tomei meu rumo pelas calçadas cheias de vendedores ambulantes e de pessoas no meio das suas rotinas e absortas demais para observar a cidade ao redor.

Parei no meio da calçada e me permiti desperdiçar alguns segundos observando os prédios acinzentados pelo tempo e pela fuligem dos carros. As fachadas das lojas, os cartazes e as pichações. Eu já tinha visto aquilo milhares de vezes, mas sempre me deslumbrava de alguma forma diferente quando passava por ali. E eu acho que podia sentir um pouco das histórias que se passaram naqueles lugares e atrás daquelas janelas.

Recife é uma cidade de pessoas aceleradas, de ruas lotadas e de corações partidos. O recifense médio sempre está insatisfeito com alguma coisa. Seja por um amor perdido, pela mediocridade dos nossos políticos, pela derrota dos nossos times, pela morte dos nossos ídolos, e tem até quem ainda se lamente pela traição dos baianos à Confederação do Equador. O que é um testamento à incrível capacidade do recifense em guardar rancor.

Eu tinha as minhas próprias lamentações. Talvez mais do que a média das pessoas, e talvez por isso eu sempre me sentisse em casa quando se tratava do coração da minha cidade. Aquele pedaço que fica do meio da avenida conde da boa vista, até o marco zero, à beira do porto.

Assim, eu acho que foi bastante oportuno o fato de eu me apaixonar por uma mulher que morava num apartamento diminuto, num prédio acinzentado e envelhecido, no meio da centro da mais renitente das cidades.

Saí do meu torpor contemplativo, mais por medo de ser assaltado do que por vontade própria, e tomei o caminho do prédio d’ela.

O porteiro me reconheceu de visitas anteriores e me deixou entrar.

- E aí, tricolor. – Ele disse.

- Deus me livre – Respondi. - Pelo menos pra time eu tenho bom gosto... Pelo Sport Tudo.

Eu era Rubro negro. Já ele era alvi-rubro e sempre estava com rádio de pilha no ouvido, acompanhando senão um jogo, alguma resenha esportiva.

- O Timba vai ser campeão esse ano – Ele insistiu. – Dessa vez vai.

- Tem mais do que a obrigação, Seu Rodolfo. É Série C. E se for campeão tem que botar a estrela no escudo.

- Só quando for de Série A, meu filho.

Caímos os dois na risada, Seu Rodolfo voltou a prestar atenção no rádio e eu tomei o elevador.

Apertei o número 9. E o elevador começou a subir.

Quando a porta se abriu, dei de cara com um corredor escuro. Só havia uma luz acesa na extremidade esquerda. Fui até lá e percebi que a grade estava aberta.

Bati na porta e Yoko abriu. Tinha cara de quem não dormia há um tempo. Mas pareceu genuinamente feliz ao me ver. Deixou que eu entrasse e se jogou no sofá sem dizer nada. Pegou um cigarro e acendeu, e ficou me olhando.

- Acabou o pão. Esqueci de comprar. Mas fiz uma macarronada. - Ela disse finalmente.

- Está ótimo.

- Tá com fome?

- Agora não. Eu tomava uma cerveja antes.

- Tem na geladeira. Acho que sobraram umas quatro.

- Massa. Vou lavar o rosto antes.

Ela continuou fumando o cigarro e eu fui até o banheiro.

Abri a torneira, enchi a mão de água e joguei no meu rosto.

Me enxuguei com a toalha que Yoko deixava sempre pendurada atrás da porta, e voltei pra sala.

Ela estava futucando no celular e o cigarro queimava sozinho pendurado na ponta do cinzeiro.

Fui até a cozinha e voltei com uma lata de cerveja na mão.

Ela só bebia vinho e cachaça. Na vida ela não gostava de nada muito amargo. Me sentei no meio da sala. Em cima do tapete branco de lã que estava cheio de manchas de cinza e de vinho.

Tomei um gole da lata e me deitei de costas para o chão.

Fiquei observando o ventilador de teto girar, tentando inutilmente espantar a quentura e o mormaço de dezembro.

Dava pra ouvir o barulho de alfaias de um ensaio de maracatu numa esquina do lado do prédio. Dezembro era quase carnaval em Recife. E eu sempre ficava ansioso nesses dias. A data era uma das mais esperadas por mim. Para Yoko também. Mas por algum motivo, não passamos muitos carnavais juntos. Então eu sabia que ia ser novamente cada um pra o seu lado. Mas eu não morreria de véspera feito peru de natal, pensando nesse assunto. Deixei meus pensamentos escorrerem para boas lembranças de outros tempos, mas Yoko me interrompeu quando se deitou do meu lado e colocou a mão por debaixo da minha camisa.

Virei de lado e trocamos um beijo longo, até que ela se cansou e se postou por cima de mim.

Levantou o seu vestido e desabotoou minha calça.

Quando ela queria, era sempre num impulso. Era sempre um movimento unidirecional para o prazer dela, e logo me colocava pra dentro. E ela se derretia e me carregava pra algum lugar que só ela sabia como me levar.

Ela sempre me levava para onde eu queria, como prometia uma música que eu gostava de cantar no banheiro e que sempre a fazia rir, quando me observava.

“Eu vou te levar, aonde você quer chegar, eu tenho a chave...”

Eu cantava, mas a verdade é que pelo menos a minha chave, quem tinha era ela. E eu não sei se realmente eu fazia com que ela se sentisse da mesma forma. Apesar de gostar de pensar que sim.

Quando terminamos, ela estava ofegante e ao mesmo tempo distante. Sorriu e se levantou. Sem se preocupar com o vestido no chão.

Pegou minha cerveja e deu um gole. Só pra depois fazer uma careta e falar.

- Puta que pariu. Não sei como você gosta disso.

Eu sorri. Ela Sorriu e me senti bem como não me sentia há um tempo. Enfim algo parecia certo. No lugar que deveria estar.

Ela foi até a cozinha e voltou com uma taça de vinho.

- Eu quero fazer uma viagem. – disse.

- Pra onde?

- Não sei ainda. Quero passar tipo uns dois meses longe daqui.

- E o seu trabalho?

- Ah. To cansada daquela merda.

- E os boletos?

- Fodam-se os boletos, preto.

- Queria pensar dessa forma, mas não posso me dar ao luxo.

- Eu vou esperar minhas férias. Pego a grana, viajo e não volto mais pra lá. Deixo eles me demitirem por justa causa. Foda-se. Eu não quero mais aquilo pra minha vida.

- Parece um plano.

- Ainda não é um plano. Mas pode ser.

- O que falta?

- Você vem?

- Você sabe que não posso.

- É. Eu sei.

- Mas na real. Eu acho que você não aguenta dois meses viajando sem rumo. Nos primeiros quinze dias você já vai querer voltar. Eu te conheço.

- Conhece né?

- Não tô te subestimando. Só acho.

Ela bebeu o vinho, um pouco contrariada. E ficou me olhando... como se estivesse processando uma resposta.

antes que ela respondesse, eu continuei.

- Mas São Thomé das Letras é um lugar massa. Eu sempre quis conhecer.

- Já ouvi falar.

- Vê o preço das passagens, se não tiver muito caro eu posso ir contigo até lá. Passamos um fim de semana, e ai você segue com teu mochilão e eu volto.

- Parece um plano. Ela respondeu.

- Só tem que ser depois do carnaval.

Yoko abriu um sorriso e falou.

- Só eu mesma pra passar carnaval longe daqui não é, môre?

Sorrimos e ela se abaixou pra catar o vestido.

Se vestiu, sentou no chão e voltou a cutucar no celular.

Eu fui até a janela da sala e fiquei olhando o ensaio do maracatu lá embaixo.

As pessoas batiam nas alfaias e o barulho pareceu sincronizar com o passo do meu coração. Como se o humor da cidade espelhasse o meu. Pessimista mas teimoso demais pra desistir.

No apartamento do lado, o vizinho ouvia no rádio o discurso do presidente, aparentemente em êxtase pelo dilúvio de bosta misturada com a violência usual dos que estão em falta de inteligência. Talvez o vizinho fosse um daqueles sujeitos que se regozijam do sangue que escorria dos jornais, gente ruim disfarçada de gente boa.

Gente que também fazia parte do ambiente, mas que tínhamos nos acostumado a ignorar.

Agora não dava mais. E seguíamos todos embasbacados demais pra uma revolta. Partimos para os escárnios e para os memes.

Apesar da cidade seguir tão barulhenta e rebelde quanto sempre fora, eu não me lembro de ter me sentido tão sufocado.

Sufocado pelo ar de estagnação. Pela apatia.

Eu sentia, enfim, que Recife tinha parado um pouco no tempo.

E que eu também tinha parado,

Parado no pensamento que talvez Yoko ainda me amasse

ou que talvez, nunca tivesse me amado.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 04/10/2019
Reeditado em 05/05/2022
Código do texto: T6760923
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