Fora de Lugar
Letícia abriu os olhos e deu de cara com a escuridão do seu quarto. Tateou pela cama até achar o celular. A tela brilhou com um toque e ela pode iluminar o caminho até o lado de fora. Foi até o banheiro, baixou a calcinha e sentou-se no vaso sanitário sem mesmo acender a luz. Sobre a borda da pia encontrou a sua carteira de cigarros com um isqueiro enfiado debaixo do plástico. Achou aquilo oportuno e automaticamente teve vontade de fumar. Acendeu um cigarro e tragou enquanto urinava. Ficou ali até terminar de fumar. Depois deu descarga, abriu o chuveiro e se jogou debaixo d’agua. Ficou parada debaixo do fluxo de água gelada e só saiu quando começou a tremer. Se enxugou e estendeu a toalha na porta. Sentia-se ansiosa, e por isso acendeu outro cigarro. E um terceiro se seguiu logo depois. Até o ponto de ficar tonta pela fumaça.
Dava pra ouvir barulho de roncos vindo do quarto e ela lamentou por não estar sozinha. Se guiando pela luz do celular, Letícia procurou pela taça de vinho que tinha deixado sobre a mesa. Ela estava lá, ainda meio cheia. Bebeu tudo de um gole só e se sentou no chão, completamente nua. Pensou em ligar pra Ruth e dizer o que tinha feito. Mesmo que não tivesse nenhuma obrigação de fazer isso. Mesmo sabendo que não tinha sido nada de errado.
apesar de parecer completamente errado e fora de lugar.
Pensou em abrir outra garrafa de vinho, mas sabia que se abrisse terminaria bebendo tudo e queria estar sóbria quando ele acordasse.
Talvez tenha pensado alto, por que percebeu que o barulho dos roncos havia cessado e pode ouvir passos vindo em sua direção.
Quando ele acendeu a luz da sala, Letícia sentiu o impacto da luminosidade em suas pupilas dilatadas pelo escuro e talvez também pelo ácido.
- Tudo bem? – Perguntou Flavio.
- Não sei.
- O que aconteceu?
- Se você não percebeu, mas nós transamos, Flávio.
Ele se agachou perto de Letícia e fixou os olhos no chão.
- Se arrependeu?
- Não é isso. E é isso ao mesmo tempo.
- Eu forcei alguma coisa?
- Não. Não... O problema é que eu quis. Eu ter tido vontade é que é o problema.
- Não acho que você tenha feito nada de errado, Letícia.
- Você não tem que achar nada sobre isso.
- Tudo bem então. – Disse Flavio se levantando.
Ele se pôs a procurar a roupa que tinha deixado espalhada na sala, e logo estava vestido, diante de Letícia.
- Me desculpa. Só estou um pouco nervosa. Você não tem culpa de nada.
Flávio balançou a cabeça como se concordasse, mas seus olhos diziam o contrário.
- Veja só. – Ela continuou. – Minha vida toda foi baseada no fato da certeza que eu tinha sobre minha sexualidade. Desde que eu me entendo por gente eu sei que eu gosto de mulher. Não acho que eu goste menos agora, mas nunca havia me imaginado com um homem. E porra, eu não estava querendo esse tipo de novidade na minha vida.
- Não vou fingir entender o que eu não entendo. Mas eu posso respeitar. É o mínimo né?
- Ah. Você é muito bonzinho. – Letícia respondeu, carregada de ironia e cansaço.
- Olha, eu não estou aqui achando que poderia acontecer de novo. Eu estou tão surpreso quanto você com o que aconteceu. Mas se é o que você quer, podemos voltar ao ponto de sermos apenas amigos. Não precisamos falar mais sobre isso.
- Sim.
- Sim.
Letícia sorriu sem muita graça, se levantou, juntou suas roupas e também se vestiu.
- Você quer vinho? Perguntou ela, enfim.
- Se você quiser, eu quero. – Ele respondeu com um sorriso.
Letícia abriu uma garrafa e os dois beberam calados, e fumaram os seus últimos cigarros.
Quando acabaram, Flávio deitou-se pra dormir no sofá, mas Letícia o pegou pela mão e trouxe para o quarto.
Deitaram-se cada um de um lado da cama e não demorou muito pra que adormecessem. Quando amanheceu, Ruth chegou do trabalho com ar de cansaço. Andou pelo meio da bagunça que Letícia e Flávio tinham deixado na casa e foi até o quarto. Sorriu ao vê-los adormecidos e deixou sua bolsa em cima de uma cadeira. Tirou uma camisola de dentro do armário e foi até o banheiro. Tomou um banho silenciosamente, se vestiu e voltou para o quarto. Fechou a cortinas e as janelas pra diminuir a claridade e deitou-se no meio da cama.
Letícia abriu os olhos e se abraçou com Ruth. Elas se beijaram e entrelaçaram as pernas debaixo do lençol.
- Está tudo certo? – Perguntou Ruth.
- Agora está. – Letícia respondeu, abraçando-a com mais força.
Ruth adormeceu rapidamente, e Letícia ficou ainda por alguns minutos olhando para ela, antes de fechar os olhos e também cair no sono, sem que nada enfim, lhe parecesse errado, ou fora de lugar.