Deus na libreria de la Ciudad
Não costumo acreditar em estranhos e nunca, nunca acreditaria num estranho argentino, mas, neste caso, tive que abrir exceção. A inveja, a musa lasciva de lábios carnudos e sedutores, me beijou. Foi assim. Sebastian tinha alugado a casa de tia Tidinha, fez amizade com a vizinhança e todo mundo, até meu cachorro, Denner, era chamado de vecino (vizinho). No Natal daquele ano tínhamos feito vaquinha e compramos um corte de carneiro para que ele, o maior barbacoa (churrasqueiro) de Córdoba à Península Valdés, preparasse uma churrascada para a vizinhança, e posso afirmar: se ele não era o maior, com certeza, era o segundo. Àquela noite, lá pelas horas em que cerveja e vinho já tinham deturpado o que nos restava de juízo, Sebastian estava impossível. Falava das personalidades do Prata e fazia paralelos com as nossas, mas ninguém dava muita bola e o clima estava divertido, até que eu, em tom de provocação, disse: cala a boca cabeludo, a gente tem Pelé, dois Ronaldos e Machadinho; vocês só têm Borges e Maradona (à época Messi, o extraterrestre, ainda era um projeto em andamento no Camp Nou). A galera achou graça, mas a gargalhada de Sebastian foi mais larga. Ainda avermelhado, com o fôlego em recuperação, retrucou minha provocação: de Maradona eu não gosto, prefiro Veron ou Mario Kempes. E quanto a Borges, vecino, eu o conheci. Ao escutar essas palavras engoli em seco. Antes que eu pensasse em pedir provas, começou a contar como conheceu o argentino mais importante de todos os tempos: eu era estudante de oceanografia, trabalhava numa empresa como agente de turismo e estava no centro de Buenos Aires para regularizar documentos, entrei na Libreria de la Ciudad para registrar uma encomenda e lá, num cantinho silencioso, estava ele sentado; lia concentrado e muito, muito devagar, acho que sua vista já estava ruim, mas ainda permitia leitura; a alguns metros de distância, como eu estava, podia sentir sua aura mística, como a do bibliotecário do universo, sua respiração como a própria respiração de Deus (argentino idiota: Borges é Deus, o erro foi ter nascido argentino); ele estava tão concentrado que atrapé, não consegui me aproximar, disse Sebastian. Você tinha que fazer alguma coisa, seu burro, falei nervoso, nem que fosse sentar ao lado dele e ficar calado. Eu fiz, vecino, fiquei ali, sentei e olhei para ele sem piscar. Então, depois de sei lá quanto tempo, ele fechou o livro um instante e olhou na minha direção, riu e fez aceno com a cabeça, senti como se fosse a benção, o autógrafo que não pedi; acredita em mim, vecino? Perguntou com o cinismo que só os picaretas conseguem dominar. Claro que não, falei, imagine se Deus ia enxergar um piolho com cabelo de espanador. Mesmo que o desgraçado tivesse com a boca atolada na mentira, nunca, nunca a mentira foi tão bela e chegou tão perto de ser divina e minha inveja jamais, jamais chegou a picos tão alarmantes.