CARTAS ENTRE DESCONHECIDOS
Não sei se o mais gostoso é escrever ou receber cartas. Carteiro na nossa porta (e não é multa de trânsito, intimação do senhorio ou cobrança de nada), que felicidade! (Em garoto, na minha coleção de figurinhas, o carteiro era precioso, raro, dificultoso; esta ‘loteria’ saiu para mim e.........) Cartas de tagarelice nunca enfadonha, formal, obrigatória. Linguagem corrente, policiada apenas a gramática se for muito absurda, ‘nois vai, nois foi’.... Ficam memórias sem preocupação de datas. Cartas perfumadas (duplo sentido: sândalo e paz) de novidades, sejam cartas esperadas ou cartas inesperadas, lirismo de surpresas ou bobajadas do cotidiano feliz, sem transladar Shakespeare ou Hobbes, sem dramaticidade de perdas, relatar o que acontece rotineiramente no nosso dia-a-dia... Muitas! Sem o clássico esconderijo de baú de pirata (madeira ou couro de jacaré?) a cadeado no sótão: em saco plástico solto, transparente, aquele teórico de “arquivo 4 furos”, papel não fica amarelado, serve para guardá-las durante décadas em cantinho na estante de livros, as que podem ser descobertas e públicas, ou no armário de roupas, as mais secretas... Linguagem é coloquial, entre amigos, risos ou lágrimas, emoções partilhadas, como se estivessem conversando. Na atualidade, não mais cartas para serem guardadas... Cadê a poesia da pergunta “tem carta pra mim?” - acabou?!... Hoje é e-mail de comunicação instantânea (deletados com indiferença após leitura e comunicação); pode até ser ‘bilhetinho’ na madrugada, “00:45 - cheguei da festa!”, mas vale como carta se for beeeeem grande!
Conheço a parte feminina de um par brasileiro, cidades distantes, que foi além das “bodas de ouro” de correspondência. Ambos estudantes, 14 anos, 1953 - pelo que me contou... - terceira série ginasial... e foram atingindo muito além da maturidade no papel, na caneta (ela, fora de ‘etiquetas’, formalidades de ‘isto-não-se-faz’, na máquina de escrever facilitando cartas longuíssimas)... e nos selos. Só computador nos ultimíssimos dois anos. Depois ele não podia nem digitar, voluntária na casa de repouso (eufemismo para... asilo pobre) escrevia o que ele ditava. “Papai-do-céu” (palavras dela) o chamou para ‘ensinar’ às anjas o idioma portunhol.........
Contar segredos e compartilhar medos e angústias é uma característica na amizade feminina; entre os meninos ou menino-menina, a amizade é sempre mais superficial, medo de confidências muito intimas, falar demais, mostrar insegurança... nunca mostrar desvantagem com ele ou com ela, na escola nota ‘vergonhosa e mínima’ /rsrsrs/ de “8” (jamais fotocópia de boletim!), mais fácil falar ou escrever sobre futebol e cinema. Questionam os valores dos pais e procuram pessoas que tenham pensamentos iguais aos seus. Nas cartas, não vemos o outro, o outro não nos vê e é (ou era?!) um tempo mínimo de dois dias entre cidades próximas ou cinco dias “estrangeiros” entre escrever e a outra pessoa receber do outro lado do Atlântico.
Meu amigo tolo quis ser piadista com a mulher e digitou uma CARTA de duplo sentido, dirigida à ‘sócia-literária-e-de-mesa-e-cama’, onde incluiu Shakespeare... a palavra “fim” (do casamento??? ah, uma loura de farmácia no caminho dele!)... e era o ‘último capítulo’ de um relacionamento de seis anos. Blá blá blá......... O cara vacilou e escreveu “sede feliz!” Humor negro. Tratá-la formalmente como “vós”... ou o doutor advogado, o Cigano Gatão Gigante Sedutor Hipnotizador (complô feminino: a mulher do meu amigo aprendeu esta linguagem de sedução com a minha mulher) errou a exata forma verbal? ELA respondeu em e-mail que lesse meu trabalho DIVÓRCIO, publicado em A&L-2013. Se o Marido Ideal leu, não sei. Depois, a mulher colou numa cartolina a conjugação completa do verbo ‘ser’, circulou a vermelho o ‘vós’, que ELA detesta, grudou na geladeira, ELE não ingere álcool, juntou recorte publicitário em cores da latinha do refrigerante de cola e gracejou: “Mate a sede com...” Nada de Lysistrata (Aristófanes, 411 a. C.), greve do sexo... Dez dias de castigo no sofá-cama, sem forração-travesseiro-coberta, ELE so-zi-nho, será o melhor remédio.
--------------------------------------
NOTA DO AUTOR:
LEIAM meus trabalhos “A figurinha preciosa”, “Carta enigmática” e “Cartas antigas... e selos”.
LEIAM lado a lado com a sua garotada - sem chorar de nostalgia! - os livros juvenis ANA E PEDRO (escrita pela dupla Vivina de Assis Viana, paulista, e Ronald Claver, mineiro, distantes como os personagens) e TEM CARTA PRA MIM? (da Fanny Abramovic, perfeita intérprete da pergunta - livro composto somente de cartas... e evidentemente emoções de uma jovenzinha).
F I M