Berenice

Berenice.

De dentro da casa se podia ouvir a chuva no telhado atiçando o desejo e a lembrança ainda fresca de como seria bom estar na cama embrulhada nas cobertas e com aquela pequena vontade de fechar os olhos e apenas ouvir a chuva cair. Estar num lugar que não este agora, onde o aconchego o calor e o silêncio pudessem acalmar minha ânsia por estar onde estou.

Nos braços ela carregava o peso de toda sua angústia e invejava os sorrisos leves e espontâneos de todas as crianças. Pensava nas alcovas de sua mente e via o sofrimento que um dia lhes tiraria aquele brilho resplandescente de suas peles. Invejava aquele instante delicado em que elas estavam e era abalada por lembrar que um dia teve isto, um dia foi assim.

Da janela observava o céu cinza reclamando com seus trovões todas as mazelas que já sofrera e deixando-se ver aos prantos com suas gotas que caiam nervosamente. Da janela sentia-se olhando para dentro de si. Os trovões engasgavam-lhe na goela e as gotas de chuva afogavam-na. Ela era uma tempestade que não transbordava e que nunca descobria sol. Ficou ali, imóvel, devaneando em seus pensamentos entrelaçando-os com a imagem da tempestade. Num leve suspiro desviou o olhar do horizonte e viu seu reflexo no vidro da janela enquanto as gotas de chuva escorriam. Ela percebeu que não conseguia lembrar-se da última vez que chorara, por tristeza ou alegria, nada, nada, não se recordava de nenhuma lágrima.

Depois do surgimento desse pensamento em que foi toda sua energia para essa lembrança esquecida, voltou do transe, levantou-se da cadeira com a pele gelada e voltou para cama, acordou no dia seguinte uma hora antes do sol nascer e não sabia distinguir o que foi sonho do que não foi, tudo parecia desalinhado, não era como se estivesse faltando uma peça do quebra-cabeça, era como se não existisse um quebra-cabeça, as coisas eram confusas e não tinham um sentido.

Ficou na cama por mais alguns minutos olhando as redes sociais, depois se aprontou, comeu a primeira coisa que viu em sua frente, tomou seu remédio e pegou o caminho em direção ao trabalho. Era perto, trinta minutos de caminhada e podia ver o sol nascer e se por na volta acompanhado de uma trilha sonora que variava dependendo da playlist. Ela adorava seu trabalho, apesar de mal paga e mau cheiro das fraldas dos bebês, ela adorava. Suas colegas da creche sempre vinham com alguma reclamação em relação aos seus maridos ou filhos ou dinheiro mas ela era uma mulher doce de mais para dizer a elas que seus ouvidos não tinham sido achados no esgoto e que elas já deveriam ter percebido que todos os dias, todos santos dias elas reclamavam das mesmas porcarias vivendo como se a vida fosse apenas ter que repetir tudo o que aconteceu ontem. Não ela não era assim. Ouvia, perguntava como, por que e como se sentiam e ao contrário de um psicologo sem vocação para profissão não dizia que entendia no final das reclamações, mudava de assunto ou acabava se ocupando com outra coisa, sempre tinha alguma criança chorando ou fazendo algo que não devia.

Crianças, todos já fomos e ninguém sabe mas sente, como era ser criança. Berenice era alta e magricela, não tinha curvas sensuais nem uma história para contar, não digo que vivia um dia de cada vez porque não vivia, ela sofria um dia de cada vez, mas pobrezinha, não sabia, tomava seus remédios e sempre acordava no meio da noite por causa de algum pesadelo. Era uma mulher acostumada a solidão e não é fácil se acostumar a algo que pode fazer tanto mal a um humano mas ela não sabia disso, ninguém nunca lhe falou, então, apenas vivia do seu jeito.

Dormia e acordava, dormia e acordava. Várias coisas aconteciam durante o seu dia e é sobre isso que quero contar. Mas ela não percebia, apenas dormia e acordava, dormia. Seus sonhos, suas amizades, seu jeitode ser, suas alegrias, suas emoções, seus pensamentos, suas atitudes, tudo passava despercebido. Existia apenas naquele instante, depois dormia e o dia começava outra vez. Tudo se repetia exceto pelas roupas que trocava todos os dia mas na segunda voltavam a se repetir.

A única coisa que não se repetia era seu sofrimento, ela se esquecia das coisas pelas quais já havia sofrido porém os sofrimentos atuais eram sempre novos. Depois dos vinte e três não sofreu mais por amor, depois dos dezenove não queria mais ser como suas amigas, depois dos quinze não queria mais brincar de boneca e sofreu por não querer mais estas coisas, sentia um vazio que lhe sugava para dentro de si mesma, sentia-se como estar num lugar onde direita e esquerda não faziam a menor diferença, onde palavras eram apenas palavras e sentidos não existiam. Os sofrimentos eram diferentes. A dor era sempre a mesma. Se você não sabe para onde quer ir, qualquer caminho serve disse o gato para Alice. Infelizmente Berenice não se encontrou com um gato falante.

Ela morava numa casinha que ficava aos fundos da casa onde a dona da casinha morava, tinha dois cômodos e o banheiro, ambos minúsculos, mas era uma casa e ali suas orelhas um pouco desproporcionais com o tamanho de seu rosto ouviam a chuva chocar-se contra o telhado, não era como o apartamento onde somente seus olhos castanhos podiam velá cair.

Sua relação com a chuva começou ainda quando criança, fora encontrada da porta da igreja por uma freira. Está morta! Pensou a freira ao ver a neném debaixo da chuva sem chorar e com a pele toda roxa e enrugada mas quando foi pega ao colo se mexeu e a freira, uma anciã que se chamava Berenice, sentiu que havia presenciado um milagre. Chovia fazia seis dias seguidos e no dia que foi encontrada por Berenice sol se abriu.para freira isto era mais um indício do milagre. Era como uma luz em meio as trevas, dizia a freira quando contava a história para Berenice ainda quando criança. Você apareceu e o sol apareceu junto com você.

Certa noite quando acordou após um sonho lembrou-se dessa história que lhe acompanhava a vida toda, lembrou-se da freira Berenice e do amor enorme que sentia por ela e pensando na história imaginou o sol surgindo entre a nuvens e a chuva de seis dias sendo absorvida para dentro de seu corpo, porque ela não se sentia como o sol e sim como o céu cinza de um dia de chuva.

era uma manhã fria de outono, ventava lá fora e se ouvia o som das folhas batendo umas nas outras. Berenice acordou e ficou um tempo encolhida nas cobertas com a intenção de fazer seu corpo ficar um pouco mais quente, era sábado e ela não precisava ter pressa em se levantar e logo se levantou e calçou suas pantufas. Vestia um pijama branco com bolinhas verdes e assim caminhou devagar até o banheiro. Era uma mulher de altura mediana, magra e sem curvas de cabelos lisos e loiros, não gostava de suas orelhas por isso andava sempre de cabelo solto, tinha lábios finos e um nariz pequeno. Sua casinha sempre estava ajeitada, tinha três pequenos cômodos com moveis velhos mas em bom estado lembrava-se com exatidão como tinha conseguido cada um pois vieram aos poucos e com muito esforço. Ela saiu com dezenove anos do orfanato quando por indicação conseguiu um trabalho na creche e está lá há 3 anos. Amanhã fará 23 e nessa data,, além de agradecer os parabéns que receberá nas redes sociais sempre faz visitas a alguma pessoa com a qual sente afinidade. Não faz festa mas encara essa data como um momento feliz e de nostalgia, no dia de seu aniversário gosta de pensar sobre os anos que se passaram e as coisas que aconteceram.

Patrick Eduardo Pereira
Enviado por Patrick Eduardo Pereira em 25/09/2019
Código do texto: T6753281
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