Um Ser Vil - Ato II

Harpo, usando um avental médico, de coluna curvada, possui olhar pregado ao chão; com dificuldade senta na extremidade da cama. A luz do sol entra gloriosa, o branco das paredes reflete com responsabilidade para demais áreas do quarto. Ele ajusta de forma demorada as partes amarrotadas de sua calça. A porta do quarto hospital, levemente aberta, nota-se movimentação calma, algumas tosses, e lamento de dores atravessam. Harpo esquece-se dos sons de lamentos, olha para a janela, o vidro está trincado na parte superior, a fissura vai de canto ao outro. Levanta, curvado e com mãos sobre sua pélvis, olha o curativo pegando a parte do pelo da barriga que não foi raspado, tira alguns fios; ele vai até a janela, passos lentos, coloca as mãos sobre parte inferior a janela. Passa o dedo pela fissura, a fissura começa abrir e segue a diagonal, ele força, parece sentir prazer, para por um instante, olha para o dedo, o dedo tem um pequeno corte, uma coloração rosada. Ela passa o dedo no vidro e suja o vidro. Harpo respira forte, possui ainda mais lamento em seu olhar; ele passa a olhar para baixo, para o lado de fora do hospital. A fissura da janela quebrada está próximo ao seu pescoço.

A médica abre a porta e dá bom dia para Harpo. Harpo olha para médica e caminha até a cama e senta, com muita cautela.

Uma enfermeira bate e aponta a cabeça entre a porta. A médica vai até a enfermeira, , visivelmente excitada, aproxima de se dá médica, e fala algo. A médica balança a cabeça no entendimento da mensagem e com grau elevado de satisfação. A médica fecha a porta, e num processo lento de desconstrução de entusiasmo, caminha até Harpo. Ela examina Harpo e faz diversas perguntas.

Harpo se torna incomodado com olhar de satisfação que médica obteve ao digerir as boas novas que enfermeira a proporcionou. Harpo morde o lábio, por fim faz a pergunta como a necessidade de um analgésico.

_ O que há de felicidade nesse mundo que aquela enfermeira compartilhou contigo? _ Disse Harpo com narração lenta e grave.

_ Aaah! _A médica avalia se fala ou não para Harpo.

Esquece! Não precisa! _ Harpo olha para a fissura da janela... _ Nenhuma felicidade se aplica em mim, não mais!

Médica ri de canto de boca.

_ Um paciente que está em coma, deu sinais de melhora. Comportamento peculiar, mas é um grande avanço!

_ Hmmm! _ levemente satisfeito e sem empolgação com resposta.

_ Já imaginou um cego feliz? _ Médica olha rápido para Harpo.

_ Hmm! Deve ser uma merda! Acho que não! _Harpo geme de dores.

_ Pronto! Terminei! Em três dias terá alta.

A médica começa a juntar os seus objetos de trabalho!

_ Aaaah! Voltando ao ser cego... Ele descobriu o quanto era apaixonado por músicas.

Harpo olha fixamente para médica. A médica dá um sorriso de canto de boca, tão específico que parece ser um tique dela, um sorriso em dois estágio. Mas tão logo, Harpo desdenha o comentário. A médica se despede de Harpo e caminha até a porta da saída.

_ Uma pessoa nessa condição... pode receber visitas?

_ Geralmente são familiares! Mas como ele não tem ninguém! Acho que é tranquilo! Converse com a direção do hospital! _quase fechando a porta. _Claro, caso seja de seu interesse!

Harpo balança a cabeça de forma ríspida e negativa, e se vira, lento e cauteloso. Deita na cama com a cabeça virada para parede. Médica sai.

Altas horas da noite, Harpo acorda assustado e com respiração rápida. Senta e possui semblante de dores, instintivamente coloca a mão na região pélvica.

Harpo se levanta, pega o livro o Príncipe de Maquiavel dentro da gaveta, folheia um pouco e se ver que muitas anotações nas páginas e coloca sobre o criado mudo. Depois tira o O Idiota de Dostoievski, ainda envolto do plástico e coloca debaixo do braço. Harpo caminha para saída do quarto.

Harpo conversa com a enfermeira plantonista. E após a permissão, Harpo e enfermeira caminham em direção ao quarto do paciente. A enfermeira é compassiva com os passos curtos de Harpo, anda na frente. A enfermeira possui belo corpo e Harpo olha frequentemente para ela. Então, de súbito, Harpo fica muito irritado e desvia o olhar e para de andar e se encosta na parede.

_ Está tudo bem?

_ Sim! Pode deixar! Sei andar sozinho! Pode ir! _ Visivelmente irritado.

A enfermeira fica sem entender a mudança de humor de Harpo. Ela passa a caminhar a uns metros de distância de Harpo, mas sempre olhando para o paciente eunuco.

O homem sem memória está ligado a tubos e fios em alguns aparelhos. O homem sem memória tem a pele clara, mas também possui severas características que declaram bem a sua descendência indígena da américa do sul, sem muita dificuldade pode-se dizer que ele tem 24 anos. Harpo se senta numa poltrona perto da maca do homem sem memória. A enfermeira confere algumas coisas no paciente. Harpo olha para o lado oposto, para não ver a enfermeira.

_ Como vocês o chamam?

_ Aaah! Enfermeiras e faxineiras chamam de Índio!

_ Hmm!

_ Elas ficam mais tempo com ele! Conheço-o há apenas 5 dias.

_ Posso ficar sozinho aqui, por um tempo? Queria ler alguma coisa para ele.

_Claro! Qualquer coisa você me chama!

_Sim! Claro!

A enfermeira sai. Harpo olha o corpo da enfermeira, o pesar lhe dá gravidade súbita em seu semblante. Esse pesar se perde na condição de fúria contida. Ele aperta o braço da poltrona que senta. Harpo respira fundo. Olha para o Índio. Harpo se levanta e começa a observá-lo, se dedica a cada parte do corpo e as ferramentas que mantém aquele homem vivo de alguma forma.

_ Consegue me ouvir daí de dentro?

Índio fica imóvel. Harpo pega a mão do enfermo e toca levemente,. Não ver nenhuma reação. Harpo anda de um lado para outro. Harpo caminha até a porta do corredor do hospital, abre e se certifica que não haja ninguém perto do quarto.

_ Qual de nós dois está pior?? _ Harpo em um riso forçado e carregado de fúria!

Harpo, prevalecendo-se da cautela, vai até a porta do quarto, observa o corredor do hospital e volta. Ele toca novamente no Índio, na mão do enfermo, seleciona o dedo indicador como alvo de sua intenção, e o pega com calma. Harpo fixa os olhos no rosto do Índio. Harpo inicia o sorriso de Monalisa. Harpo começa a tencionar o dedo de Índio. Índio não se manifesta. Harpo tenciona cada vez mais o conjunto de falange para “costas da mão”, uma pessoa com normal consciência já estaria em pranto de dor. Índio se mantém neutro de expressões. Harpo desfaz o sorriso e larga o dedo. E extremamente frustrado pega o livro e sai da sala.

Dentro do seu quarto, Harpo olha pela janela e fica ainda mais frustrado e bate diversas vezes no vidro e cada vez a fissura galga o espaço indo para outra diagonal. O vidro não suporta tantas pancadas e quebra em partes. Parte essa que parece a lâmina de um punhal. Harpo pega um pedaço de vidro, olha com a certeza da escolha. Harpo, num lance rápido, encosta no pescoço a punhal de vidro e se olha no resquício de reflexo que ainda lhe resta no vidro preso na janela. A fúria é uma estampa clara em rosto, os pequenos vincos amassados são compostos como desespero. Harpo treme a cada vez que pressiona o vidro em seu pescoço.

_ Desgraça de vida! _ Harpo esbraveja para si.

Uma grande comoção no corredor do hospital. Harpo olha para porta, olhos trêmulos do mistério é sua fagulha de vida. Harpo abre a porta e olha para a faxineira e enfermeira passando pelo corredor.

_O Índio acordou!

Sem muitas explicações a enfermeira caminha o fluxo de poucas pessoas que andam às pressas no corredor. Harpo volta para cama, deita e possui determinado olhar fixo no teto. Ele cruza as pernas, braços estendidos e cruzados sobre seu ventre. Harpo fica imóvel, mas seus olhos ficam inquietos.

O dia chega, Harpo dorme.

Horas depois, Harpo é acordado por uma enfermeira. Harpo se levanta com espírito rejuvenescido!

_ E se dessa desgraça toda... posso fazer meu inferno favorito!?

Harpo sai do quarto; vai até o quarto do Índio. Ele recebe a informação que Índio está passeando no jardim.

No jardim do hospital, Harpo vai até certa distância de Índio, senta, olha para ele atentamente. Alguns coelhos andam pelo pátio. Um deles se aproxima de Harpo. Harpo pega-o e começa a fazer carinho no animal. Possui grande afeto com animal. Índio está sentado em uma cadeira de roda sendo empurrado por uma enfermeira, olha tudo com lentidão, cabelo levemente grande cobre sua testa. Tudo parece ser novidade para ele. Harpo levanta e anda do lado.

_ E como está o Índio? _ Pergunta Harpo como o empréstimo semblante de uma noviço.

_ O pobre não se lembra de nada! Às vezes diz algo, bem espontâneo. Parece até a tímida da faxineira que limpa seu o quarto. É até engraçado de se ver!

_ Hmmm! Inacreditável isso, não é?!

A enfermeira para em um banco e deixa a cadeira próxima ao banco.

_ Posso ficar sentado aqui, minha querida? _ Pergunta Harpo com a inevitável malícia na voz e toque de um galanteador.

A enfermeira, com largo sorriso aberto, prontamente não ver problema no pedido. O médico chama a enfermeira. Harpo se prontifica para cuidar de Índio.

Índio dá um sorriso semelhante ao da médica. E olha para Harpo.

_ Lembro de... fragmentos..., tipo uma floresta..., muitas arvore grandes que... não dá para ver o céu. _ Índio fala com dificuldade. Até com certa dificuldade compreensão.

Harpo fica excitado, mas também tem a intriga fazendo contorno em sua atenção perante o acontecimento. Olha para Índio com grande interesse.

_ Não se lembra de ninguém? _ Harpo ainda mantém seu sotaque sedutor.

_ Nada! Talvez uma remota vontade de alguém,... não sei... meu pais? juro não sei.

_ Vou te falar uma coisa! te ver me deu uma grande vontade de viver. Estava quase desistindo de tudo...

_O que há de tão especial assim??

Harpo coloca a mão direita direita sobre o rosto, e olha para Índio entre os dedos.

_ Há uma engrenagem em mnil que possuo mais… é físico… mas atingiu minha parte psicológica de tal maneira… Acho que só posso me ajudar… se te ajudar!

Índio é imparcial a euforia de Harpo. Olha para ele com indiferença.

_ Bem! _ Índio fica pensativo. _ Bem! não faço mínima ideia como poderia te ajudar!

_ Sim, ainda estou com tantas ideias na cabeça. Mas essa sua situação, seu renascimento,... tudo me deu a ideia de que há uma possibilidade de viver… ter gosto de viver...

Harpo, calmante, entrega para Índio um coelho.

_ Segure com todo o cuidado esse coelho!

Índio segura e olha frequentemente para Harpo para saber se está indo bem.

_ Isso! Agora faça um carinho no coelho! _ Harpo tem um semblante sereno animador.

Lentamente, Índio passa a mão no animal.

_Sim, isso! Dedique toda atenção para esse animal! _ Cada vez mais seu ton de voz ganha uma tonalidade mais sedutora.

E assim ficam por minutos. A enfermeira volta e certifica se está tudo bem, ela gosta do carinho que Índio tem com o coelho. mas mesmo com toda essa atenção tem uma respiração acelerada. A enfermeira atende outros pacientes. Harpo e Índio conversam como grandes amigos. Os dias se passam, as conversas entre Harpo e Índio era cada vez mais frequentes. E nesse dia, o tempo estava nublado; e alguns momentos, o sol demonstrava-se. Harpo sempre sentado no banco. Índio sentado na cadeira de rodas. Sua fala está mais fluida. sempre com o coelhinho nas mãos. Mas agora o animal é mais calmo e permissivo.

_ Meu caro, Índio! tem uma confissão a fazer! Claro! É... é... é algo que agora... isso me deixa severamente triste. _ Harpo fica de fato com o lamento estampado no rosto. Ele compõe bem o personagem.

_ Conte-me apenas se achar necessário! _ Índio, expressa bem a curiosidade.

_ Devo contar, ainda que me amargure o coração! Enfim...Tenho técnicas para liberar coisas em mim que não consigo acessar de outra forma.

_ Diga, se eu puder acompanhar o seu pensamento!

_ Primeiramente, devo dizer que... _ Harpo titubeia. _ Isso é muito difícil!

_ Não há necessidade! Deve ter outro jeito para mim... _disse Índio com leve preocupação, artificial por sinal.

Harpo olha para ele e acha algo estranho.

_ Essa preocupação, é meio suspeita. _ Disse Harpo, sorrindo.

_ Aprendi observando a enfermeira. Esse semblante é uma comunicação entre pessoas. Sair-me bem? _ Índio sorrir parido com médica de Harpo.

_Se não pela memória, tua sagacidade é admirável! Mas enfim... _ Harpo se inclina para frente. _ preciso dizer que vai nos ajudar.

Índio olha para ele com atenção.

_O melhor de meu prazer era acessado quando eu provocava dor em alguém. Na simplicidade do entendimento,... em coisas comuns, sem esse meu comportamento, nada me fascinava.

Índio olha para Harpo e parecia mesmo interessado entender aquele pensamento.

_ E o que sugere? De que forma isso se aplica em mim. _ por fim, disse Índio.

_ Esse fetiche está presente em menor valor nas outras pessoas. o que me cabe de vontade urgente... Eu quero provocar um desconforto em você, com esperança que isso lhe traga certas memórias. _ Harpo coloca as mãos no coelho do Índio. _Mas deve seguir os psiquiatras que acompanha... Certo? o que eles tem falado contigo?

_ Não tenho psiquiatras. Não tenho dinheiro e parece que o governo não quer gastar dinheiro com isso... enfim. _ Disse Índio com indiferença.

_ Pois bem, vou ver o que faço em relação a isso! Mas agora, vamos ao teste! _ Harpo aproxima-se de Índio. Em tom de sussurro. Olha frequentemente para o coelho.

_Vamos ao teste!

Índio fica atento aos movimentos de Harpo. Harpo olha para os lados com determinada cautela.

_ Eu quero que você... quebre o pescoço desse coelho.

Harpo volta a sentar no banco, não desvia o olhar de Índio. Índio continua fazer carinho no coelho. Ele olha para Harpo, como se quisesse descobrir que não era um blefe do recente amigo.

_ Acha que isso pode funcionar? _ Índio diz com demasiada cautela!

_ Meu caro, conheço tantos absurdos nessa vida! E poucos são nem notados. Mas para isso precisa de sentidos com dom da sensibilidade; algo que ainda não faço a mínima ideia o que sejam. E outra, e é pela dor que há chances maiores atingir o além. Você é um exemplo prático que superou a dor, está aqui no campo consciente que não veio de forma fácil. E acredito que há tantas dores que você ainda nem sabe qu. Foco nisso.

_ Interessante isso! _ Índio pega o coelho e passa admirar animal.

_Depois do fogo, todo alimento obteve um sabor jamais experimentado pela raça humana. Transformação é pela dor. _ Harpo olha diretamente nos olhos de Índio. _O extraordinário é dado para o homem de grande vigor.

Índio coloca gentilmente o coelho no colo, segura o corpo com a mão direita. Frequentemente ele olha para Harpo. Harpo treme-se todo. Mas se segura para não transparecer o prazer que sente. Índio segura a cabeça do animal com a mão esquerda. E com a força, ele começa a tencionar a cabeça do animal para o lado inverso. O animal se programa pelo do instinto em movimentos rápido de fuga. Mas Índio tem as mãos seguras e o animal tem poucas chances para de escapar. Índio força cada vez mais a cabeça do animal. Harpo tem olhos variantes entre as mãos de Índio e seus olhos. O animal se desespera, mas não pode fazer nada. Índio força cada vez mais o pescoço do coelho. Animal começa perder consciência. Harpo olha as mãos de Índio. Elas ficam frouxas, o coelho escapa desaparece entre os cantos do pátio do hospital. Harpo olha para Índio. Índio está em transe e tremendo.

Harpo olha para o lado, com nervos trêmulos, fica extremamente irritado.

_ A Desgraça é fraca demais! _ Harpo respira fundo e chama enfermeira.

Índio é atendido pela enfermeira e levado para a enfermaria.

Dentro do quarto, Harpo entra transtornado, ele vai até o criado mudo, em movimentos desesperados e sufocantes pela urgência, são desajeitados e imprecisos, derruba as coisas, chora compulsivamente, treme com fúria dos demônios, saliva sai da sua boca raivosa, pega o punhal de vidro que estava dentro do livro O Príncipe e eleva para a região do pescoço.

Sangue jorra sobre o livro...

Continua...