A Azarada

Azaraldina Honorata, este é o nome que a menina recebeu de seus pais.
Coitada. Não sabia do fardo que carregaria pela vida afora.
Tudo começou pouco antes de nascer. Aliás, é preciso registrar aqui que ela nasceu há cinquenta anos na bucólica cidade de Ibiá, interior de Minas Gerais, no ceio de uma das famílias mais podres do lugar.
No último mês de gestação, sua mãe estava sendo examinada no precário posto de saúde da cidade por seu médico, quando a velha cadeira de ginecologista quebrou e todos foram ao chão: gestante, médico e enfermeira.
Por pouco Azaraldina não sofreu uma sequela. Porém, logo que nasceu, outro acidente marcou sua vida. A alça da balança que pesava os bebês na maternidade rebentou e ela caiu. Dessa vez não escapou. Fraturou a coluna, vindo a ficar corcunda.
O tempo passou, mas a falta de sorte não - muito pelo contrário, passou a fazer parte de sua vida de tal maneira que acabou se acostumando e já não dava tanta importância a tudo que lhe acontecia. Chegava às vezes a fazer piada com o seu azar.
Poucos eram os seus amigos. Aliás, a bem da verdade apenas duas colegas do orfanato em que viveu sua infância e adolescência - ficara órfã aos dois anos - continuaram a amizade. Já adulta resolveu vir ganhar a vida na cidade grande e mudou-se para Belo Horizonte. Já na ida para a capital foi experimentando a força do seu azar, pois o ônibus em que viajava furou quatro vezes os pneus, atrasando em mais de oito horas a viagem. Era reclamação de todo lado. Várias vezes escutou afirmarem: “Tem algum pé frio aqui dentro desse ônibus?”, “Faço essa viagem toda semana e nunca isso aconteceu!”, “Nossa! Parece que o azar resolveu viajar também!”.
Azaraldina ria às escondidas.
Em Belo Horizonte foi morar numa pensão, dessas só para moças. No pequeno quarto havia um armário com quatro divisões, uma para cada moradora, e dois beliches, cada um encostado nas laterais do aposento. Coube para ela o de cima. Logo na primeira noite, ao deitar-se, o estrado de sua cama rebentou e ela veio abaixo, caindo em cima da colega que já estava dormindo. Resultado, um corte profundo em sua cabeça e o braço quebrado da nova colega.
Mesmo com tanta falta de sorte, Azaraldina não se deixava abater. Batalhou e conseguiu um emprego de recepcionista numa firma que vendia pisos e que tinha como mostruário o belo piso na entrada da recepção. Feliz com o trabalho que ia começar no dia seguinte, passou na loja exotérica e comprou pedras de cristal para energizar o ambiente, uma figa, uma pequena ferradura e um pé de coelho. Escondeu tudo na bolsa para afastar o azar. Não podia perder aquele emprego.
Tudo corria bem nas primeiras horas, até quando o gerente da empresa, ao entrar na recepção, escorregou no piso que acabara de ser limpo e caiu - suspense no ar. Azaraldina rezava para que nada de grave tivesse acontecido. Apenas um pequena luxação no pé, mas com a primeira cliente que entrou naquele dia a coisa foi mais grave: a senhora quebrou a bacia e meteu um processo na empresa.
Durante os dois meses em que Azaraldina ali trabalhou, toda semana alguém escorregava naquele piso, e olha que nunca houve registro de tantos escorregões. Até ela foi vítima. Conclusão, foi demitida.
Os anos foram passando. Casou e teve filhos, mas o azar era seu companheiro inseparável.
Viúva, voltou a trabalhar para poder sustentar os cinco filhos. E de emprego em emprego, de azar em azar, foi vivendo sua vidinha precariamente.
Já com quarenta e sete anos, conseguiu um trabalho como operadora de telemarketing. Já no primeiro dia de trabalho seu companheiro inseparável deu o ar da graça. A luz e o sistema de telefonia de metade do centro da cidade foram interrompidos e sua empresa, que estava localizada nesta área, não pôde dar continuidade aos trabalhos. Na semana seguinte, o computador em que trabalhava foi o causador de uma pane geral no sistema operacional da empresa. Tudo parado novamente. Foram dois dias para identificar a origem do problema. Três meses depois, outra vez a empresa foi paralisada por uma pane no sistema de telefonia oriundo da caixinha telefônica ligada ao seu computador. Todos foram dispensados novamente e ela mais uma vez demitida.
Nesse dia resolveu fazer um lanche em uma dessas carrocinhas de cachorro quente que ficam na rua. Foi contaminada por uma dessas bactérias que se instalam no intestino e vão fazendo buracos na parede intestinal. Sofreu quatro cirurgias devido ao problema e, como o tratamento para acabar com a bactéria não dava resultado, resolveu que iria voltar para sua cidade natal pois meteu na cabeça que queria ser enterrada no mesmo lugar onde estavam seus pais.
Assim fez, mas os transtornos causados pelo seu azar não pararam por aí não. Mesmo depois de morta, por onde seu corpo passou, deixou estragos. Pouco antes de falecer, ao dar entrada no hospital, aconteceu um blecaute que levou ao falecimento de mais doze pessoas que estavam na UTI. Perfazendo assim, no total de mortos daquele dia, o fatídico número 13. Seu corpo foi levado ao necrotério da cidade para confirmar a causa mortis. Ao sair do local, o carro fúnebre pegou fogo. Trocados o caixão e o carro, o corpo de Azaraldina seguiu para o cemitério. Não havendo vaga nas capelas de lá, ficou do lado de fora em uma das alamedas esperando a desocupação para ser velada pelos familiares. Um temporal não previsto ocorreu, e novamente seu caixão se acabou, dessa vez não pelo fogo mas pela água. Corre corre, e um novo caixão comprado.
Com muito custo seus familiares conseguiram junto à direção do local dividir o espaço de uma das capelas. Para lá levaram o corpo de Azaraldina.
Estavam todos na capela mais antiga do cemitério e as rachaduras pelas paredes mostravam que era preciso uma reforma urgente no local.
Novamente a tempestade caiu, e junto com ela a velha capela. Dessa vez o corre corre foi maior, pois eram os familiares de dois corpos tentando se refugiar dos escombros e da chuva.
Com mais esse acontecimento, a família resolveu enterrar o corpo rapidamente para não causar mais prejuízos a ninguém. Afinal, era muito o azar que rondava aquele corpo.
Mesmo já estando escuro, mais uma vez a direção do cemitério cedeu e atendeu aos pedidos dos familiares de Azaraldina, permitindo que aquele corpo, em especial, fosse enterrado fora do horário. Partiram todos em direção ao local do sepultamento. A procissão seguia lentamente, e de onde estavam ouviram ao longe o sino tocar, avisando a hora de um outro enterro não especificado. Mas como tais badaladas poderiam ocorrer, se era noite e não mais se fazia sepultamentos naquela hora?
Os coveiros apreensivos resolveram apressar os trabalhos, e nessa pressa um deles escorregou no lamaçal que se formara devido à chuva. Ao cair, bateu a cabeça na quina de uma das sepulturas do local e ali mesmo morreu.
Novo corre corre. Ninguém mais queria ficar perto do corpo de Azaraldina. Até os coveiros evitaram voltar ao local.
Fala-se que até hoje os restos do caixão e dos dois corpos permanecem expostos ao tempo. Aquela parte do cemitério, que era bem retirada, ficou isolada e não mais recebeu qualquer outro sepultamento.
Tempos mais tarde a notícia de tanto azar se espalhou pela cidade, e devido a isso o cemitério foi fechado. Ninguém queria se aventurar a entrar ou trabalhar naquele local.
E você, que acaba de ler, conhece alguém que tem ou emane tanto azar assim?
Fernando Antonio Pereira
Enviado por Fernando Antonio Pereira em 23/09/2019
Código do texto: T6752385
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