Cone de Revolução

Sabe, Estevão se considerava um capitalista nato. Ele se amava acima de tudo na Terra. Depois vinham os outros, mas primeiro ele. Foi constatado por ele mesmo que havia ficado mais bonito e rico do fim da década de 50 para cá e apontava sua razão e sucesso econômico como senso comum em salmos ufanistas, e cobrava que seus conhecidos – todos – concordassem com suas verdades. Teve ocasião em que ele demitiu um funcionário de sua empresa de tecidos e acessórios simplesmente por ter conseguido acordos com outras desse ramo. O problema é que Estevão já percebeu o que aconteceria: divisão de lucros, algo que colocava suas feições de desconfiança à mostra.

Em sua empresa trabalhava sua muito delicada esposa, Terezinha, até porque é muito difícil gente dessa idade conseguir emprego nesses dias. Que gentileza de seu homem. Ele latia todas as frases, notícias e reclamações, andava também como um bulldog inglês, às vezes como um gorila, enquanto sua Terezinha balia fragilmente, com as sobrancelhas franzidas e descabeladas. Não sei dizer quem domesticou quem.

O homem não era nem um pouco politicamente correto: o Congresso devia ser fechado em nome da democracia. Odiava quando o brasileiro agia contra si mesmo, mas sempre se deu ao luxo de dividir a população em times. E estava sempre a postos para o time que dividia as concretas opiniões - Ia dizer que ele estava errado, ora?

Aderia a todas as doutrinas modernas, mas só as que convinham com seu modo de pensar e agir, claro. Lembrei daquela vez em que foi discutir sobre os governos do passado e do presente e sobre suas posições políticas. Um falava, outro ouvia e respondia, daí retrucava, assim que foi. Estevão se estonteava com a fala do oponente que seu tom de voz ou uso de palavrões e falácias não desestruturava o homem de maneira alguma. Era um homem socando um pilar. Mas como poderia Estevão estar errado? Nem ele entendia isso, por isso não aceitava esse momento. Para onde ir, Estevão? Sem chão, teto ou paredes, cavou a fuga no pé, com um olhar quase satânico para o rival que não queria seu mal. Bufava, rosnava, a vitória foi autoproclamada, ele vence por quebrar as regras.

Como alguém tão egocêntrico se casava com alguém tão frágil e compreensível? Que senhora boa! Foi numa quarta, não muito após o almoço quando Terezinha estava cumprindo seu dever de secretária de seu marido – em qualquer lugar era assim- numa sala com 2 ventiladores, 4 paredes brancas e alguns quadros de desenhos que ninguém olha. Estava tendo dificuldade com o computador malcriado já que o software atualizou. Optou por chamar seu marido.

- Não, faz assim, ó – disse Estevão não inteiramente contente.

Ela realmente tentou, só que as novas funções do sistema operacional mais dificultava do que ajudava.

- Não, não, não, assim, ó. É desse jeito – continuou.

Mais uma tentativa.

- Eu já te falei, presta atenção – Já deu. Tomou o mouse da mão dela e fez – Entendeu? É assim.

Ela suspirou que sim ajustando os óculos. Estevão voltou ao seu quarto onde se dizia revolucionar a sociedade brasileira, quebrando seus paradigmas e alguns pilares. Particularmente adorava, menos quando vinha à tona que sua razão não era lá a das mais racionais. Seu coração não aguentava o erro. Este era o pior dos acontecimentos, como podia Estevão, que tinha noção de onde veio e chegou na vida? Olhe seu patrimônio, sua esposa, sua pequena quadrilha virtual que eram seus amigos de guerrilha. Não, Estevão, você não podia se equivocar de maneira alguma. O futuro do Brasil está na sua fala e em seu digitar. Seu coração já estava mal dado o stress que punha no discurso e nos pensamentos cotidianos.

E o que Terezinha dizia sobre isso? Isso não importava a Estevão.

No jantar, a ovelha e o gorila-bulldog ruminavam a refeição, preparada pela Terezinha enquanto o marido guerreava nos brancos campos dos pixels. Eles olhavam e depois olhavam para o prato, repetia-se isso nos 15 minutos seguintes, às vezes um bufava um acontecimento ou uma concordância vaga que seja. Foi uma boa refeição, tão boa que a mulher foi elogiada, um acontecimento quase que improvável.

Lá estavam os dois agora na cama com a TV e abajur ligados, nenhum deles eram espectadores embora. Ambos afundando naquela massa de tecido caro, Terezinha se pendurava no braço de seu esposo que a empurrava com seu cotovelo colossal para o outro lado da cama. Seus olhos estavam muito ocupados a essa altura. Sua empresa já não é a mesma de antes, isso afetava a hipertensão de Estevão, que engasgava nessa guerrilha virtual todos os dias. As propagandas da pseudorrevolução já faziam parte de seus sangue e pulmões, a sua realidade chegava a ser maior que a original, ele estava no alto, no topo de tudo e todos, das opiniões, fatos e natureza. Apagaram as luzes.

“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, a melhor definição de Estevão em seu universo romântico, um universo de espelhos. Ocupava a função de soberano, líder, quando bebia demais soltava que era Deus. Ele era o reflexo a ser refletido e acendido. Seu cheiro era o perfume das flores de seu mundo e as praias bem como quisesse. Qual era a ordem que queria manter se concretizava na sua realidade, não percebia as pessoas que discordavam dela porque elas nunca estavam livres em seu mundo. Todos cantavam as canções e liam os livros que Estevão queria. A voz amarga dele ecoava num cantar de sabiás pela manhã e suas mãos confortavam quem vinha a tocar nelas. Marcham a população de Estevão de seu mundo adimensional. Nunca elogiava quem fazia a coisa certa, mas descia o cacete em quem desobedecia a ele.

Mas, ouviram o alarme da cidade-planeta que dizia que os inimigos de Estevão estavam soltos. O exército dele sempre fiel e pontual estava lá – tinham razão ou sentimento? Os hinos anunciavam a vitória e as odes e o esplendor do governador supremo. Lutem, comandava Estevão, a voz da razão e da verdade, e os guerreiros gritavam descontroladamente pelo lugar, atirando, esfaqueando o que fosse, tudo pelo Estevão. Por mais que as batalhas fossem sempre vencidas para ele, dessa vez os inimigos vieram com força maior e abalaram a estrutura do mundo. Tudo desmoronava aos arredores. As paredes eram marteladas, o exército inimigo formigava por toda a parte. Franziu o corpo e o planeta para rebatê-los, mas conseguiram derrubar o coco mais alto do coqueiro. Nesse instante seus olhos afundaram por causa da velocidade da queda.

Conseguia ver todos os inimigos rirem dele ao debruçar de seu mundo sobre si mesmo. As paredes do mundo se emaranhavam em carne e escuridão, juntamente com a confusão esperneada do homem. Seu ar ficava rarefeito e soprava o reflexo de Estevão num céu vermelho, viscoso e vivo, e os espelhos dali só podiam reproduzir o rosto do já sido senhor.

6:30, quinta-feira, os periquitos arrumavam os ninhos do outro lado da rua da casa dos pombinhos. Terezinha sentiu suas pálpebras, ficou olhando para o teto em longos 5 segundos os quais roubavam seu calor de sono e coçou o pescoço. Sua palma enrugada ia dar um bom dia a seu marido, mas não sentiu aquele calor do peito do marido. Por quê? Quando percebeu já tinha beijado o defunto no rosto. Tão vivo o vermelho do sangue agora era pálido como o dia que anunciava a morte causada por um acidente vascular cerebral, como disseram os médicos.

E o que Terezinha dizia sobre isso? Ela só tinha a ficar pasma com a situação. Dias depois, recebeu as notícias de que os sócios tiraram vantagem do ocorrido tendo agora a maior parte dos lucros da empresa e Terezinha, com a menor. Também descobriu que o marido ajudava a propagar falsa informação junto com desvio de dinheiro e o não pagamento de impostos e taxas de sua empresa. Foi pedir acolhimento à família que já fora muito desrespeitada por Estevão e queriam mais é que o casal ficasse longe do resto da família. Só ficou agora Terezinha com suas pernas enrugadas e peladas, suas sobrancelhas bagunçadas e seu balir dócil em sua casa agora mais vazia. Permaneceu imóvel. Sem tato, céu e chão.

E o que Terezinha poderia dizer sobre isso?