brasileirinho
“Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre”
Cacaso
A onça olhou para mim como se eu fosse a última bolacha do pacote. Eu olhei para ela e me segurei. Se fosse em outro tempo e se eu fosse outra pessoa tinha dado um tiro bem no meio da cara dela.
Meu avô dizia que já tinha dado tiro em cara de onça antigamente, não porque ele quisesse, mas porque alguém pagou e mandou. Pois era uma gente que vinha lá de fora e queria as peles pra botar na parede, afirmava. Eu não sou o meu avô, apesar de me achar bem parecido com ele. Não tenho a paciência que ele tinha. Estou cansado de ver gente com cara de bicho andando nas ruas.
Quando esperava enfiei a mão no bolso e peguei um cigarro, mas não pude acender ali. Tem lugar que não pode isso, não pode aquilo. Acho que é por isso que essa onça fica assim com os dentes arreganhados. Aqui, nesse lugar, ela não pode nada. Só ficar nervosa.
Quem consegue ser feliz com tanta cara de ódio olhando pra gente? Ah! Eu não consigo. Essa onça também não. De repente me bate uma curiosidade: será que ela era feliz na floresta? Ou será que a tataravó dela – quando andava na floresta – era feliz, com índio dando flechadas no rabo dela? Ou com o meu avô e o seu patrão dando tiros nos filhos dela?
Debaixo de um cajueiro do zoológico estava o meu amigo Pedro namorando uma zeladora, lá da vila dele. Pedro me convidou pra tomar uma. Enquanto ele namorava, pegando de leve na bunda da mulher, eu ficava olhando para os lados e para a cara da onça. Não tinha nada mais divertido pra ver naquele lugar a não ser aquele gato grande, amarelo e preto. Eu estava perdido nos olhos da onça enquanto Pedro sorria alto espantando as araras da gaiola ao lado.
Meu amigo me levava com ele para eu avisar se acaso aparecesse o guarda patrimonial. A sua namorada não podia ser vista de conversa no emprego, muito menos poderia ser surpreendida beijando em público. Na primeira vez que fui me senti obrigado. Da segunda vez em diante me acostumei a tomar cerveja de graça e aborrecer a onça.
Duas meninas com seus risinhos passaram devagar. Não quiseram se aproximar do cercado ou de mim, não sei. Enquanto elas se distanciavam com seus uniformes escolares perguntei ao Pedro:
-É verdade que nos Estados Unidos não tem onça pintada?
Ele olhou para mim, dando de ombros e disse que não tem mais. A resposta dele me deixou animado. Então, eu falei que as nossas onças em vez de ser amarela e preta deveriam ser verde e amarela. Pedro balançou a cabeça e fez um barulho tsc tsc com a boca e segurou a mão de Júlia. Cheguei a imaginar que ele pensou que eu era um burro.
Ele se despediu de Júlia e saiu. Eu virei as costas para a onça. Do jeito que ela estava não podia me engolir. Ela só podia engolir desaforos. Partimos, deixando o zoológico para trás.
Enquanto tomava uma cerveja às custas de Pedro perguntei pra ele se ele já teve vontade de dar um tiro em alguém. Ele disse que quando estava com Júlia não sentia vontade de dar tiro em ninguém. Falou ainda que eu estava assistindo a muito filme norte-americano. Eu olhei bem na direção dele, fechei a cara e falei alto:
-Cê acha? Eu sou brasileiro, porra!
Os velhotes que jogavam dominó olharam, tremendo os seus bigodes brancos. Pedro fez humpft e virou de uma vez o copo de cerveja. Ficou observando a distância. Seus olhos atravessaram a praça e dobraram a esquina e voltaram sorrindo. Júlia vinha, lentamente, sendo arrastada por eles. Chegou, ofegante, e se sentou no colo dele. Eu me afastei e acendi um cigarro. Depois de um tempo, eles se levantaram e foram até o balcão. Na volta, Pedro deixou sobre a mesa uma latinha para mim.
Os dois se mandaram. Eu fiquei bebendo e olhando a bunda de Júlia se mexendo à minha frente. Em seguida, sentei minha própria bunda na cadeira, levantei o dedo e pedi outra cerveja.
Estava tão concentrado que levei um susto quando um gato cruzou correndo a rua. Restou a espuma da cerveja no meu bigode. Senti uma baita vontade de atropelar o gato que me olhava da calçada. Só me faltava um carro. Nesse momento, Pedro se virou para trás e deu uma risada. Eu ergui a mão, cumprimentando. Enquanto eles se distanciavam eu pensei que aquele sorriso idiota de Pedro ia desaparecer no dia e na hora que Júlia tivesse uma cara de onça.