COLODINOS - CAPÍTULO 11

A conversa continuava, e todo mundo achava interessante quando alguém lembrava se de alguma coisa que aconteceu nos tempos quando moravam nos Colodinos. Um recordava de uma coisa, aquilo despertava a imaginação de outro no mesmo sentido e de repente mais uma estória pra matar saudade dos tempos da fazenda Taquarussu.

Dessa vez foi o galpão. Apesar de haver apenas três casas, Colodinos também era contado como uma das colônias da fazenda Taquarussu.

Era a casa da beira do rio, a do meio e o galpão, esse era um casarão comprido, comprido e estreito, e ficava num tope de morro à beira de uma estradinha que ia até o Jenipapo na beira do rio grande. O lugar tinha o nome de jenipapo por causa de uma árvore imensa dessa espécie existente ali na beira do rio. Parece que das três moradias esse galpão foi construído muito antes das outras, e todo mundo, quando se referia a ele em alguma conversa o chamavam de galpão. Até o povo de fora o conhecia como galpão. Sabiam dele por conta das arruaças que aconteciam lá. Era famoso, principalmente no sentido do que não presta. É lá no galpão que aconteceu isso, foi lá no galpão que fizeram isso ou aquilo. Naquele tempo aconteceu isso com fulano de tal quando ele morava no galpão. É dessa maneira que se referiam a esse casarão comprido onde moravam muitas famílias, muitas coisas aconteceram lá, e por isso impossível relembrar as estórias daqueles tempos nos Colodinos e não falar sobre o galpão.

Tratava se de uma construção muito antiga, rústica, levantada com esses tijolinhos maciços de olaria, sem reboco e nenhum acabamento, pintura coitado, nunca recebera uma única demão de cal. Apenas o avermelhado do barro com o qual os tijolinhos foram feitos e a não ser isso, muitas manchas verdeadas por todos os cantos das paredes por causa das marcas encardidas do lodo envelhecido e acumulado por muitos anos de invernos copiosos.

O comprimento dele talvez fosse uns quarenta metros, e a largura, uns três e meio no máximo. Era repartido em diversos cômodos pequenos e a distribuição desses cômodos resultava numas oito moradias apertadas de um jeito que não cabia quase nada. Dava pra entender que na época ele foi levantado às pressas pra atender alguma emergência de serviço na usina, e com a intenção de acomodar famílias cujos chefes fossem operários comuns, recém - contratados para serviços inespecíficos e geralmente em caráter experimental.

Parecia um grande amontoado de gente, deles cachaceiros, outros, feiticeiros afamados, isso quem diziam eram as más línguas, uns metidos a valentes, sempre de peixeira e garrucha na cintura ou espingarda no ombro, e quando saiam pras vendas chegavam tontos insultando e caçando brigas com os vizinhos. E nesses casos as mães que os maridos não estavam em casa corriam com as crianças pras casas dos outros morrendo de medo e quando o sujeito que estava ausente chegava muitas vezes vindo de outra venda e também cheio da manguaça, pronto, a confusão tava armada, eram tapas e pescoções pra todo lado, pauladas, chutes, um dando gravata na goela do outro e esse botando a língua pra fora e morrendo enforcado. Quando começava uma confusão, outros que não tinham nada a ver com aquilo, mas por ser mal inclinados pra fazer bagunça entravam no meio e a coisa se embolava. Rasteiras baianas e rabos de arraias assobiavam pelos ares seguidos de gritos, me solta malvado tá quebrando minha costela maldito e a resposta não demorava, aguenta vagabundo, seu filho da puta, num quer ser o tal seu canalha, pois vou te deixar moído de pancadas; e os socos continuavam um atrás do outro. Tá, tá, tá...

Mais acolá um que cambaleava de um lado para o outro mostrava o muque pra um coitado que não aguentava nem ficar em pé de tão bêbedo, e dizia: vem safado, vem cachorro, vem para o braço se for homem sujeito de uma figa e desferindo logo murros de todo jeito, davam também alguns tiros, mas pareciam que estavam sabendo o que estavam fazendo, pois atiravam sempre pra cima. Era gente botando sangue pelo nariz ou riscado por punhais e peixeiras.

Isso era sempre nos sábados à tarde ou nos domingos boca da noite. O razoável é que nunca morreu ninguém nessas brigas. Certo é que por essas e outras razões não parava morador nesse galpão, uns eram despachados dos serviços porque eram cachaceiros e encrenqueiros e outros saiam por conta própria porque não aguentavam aquela anarquia e pediam pra sair e iam caçar guarida noutros lugares.

Houve uma vez que uma família de crentes chegou pra morar lá, suas intenções eram as melhores, pois assim que chegaram fizeram várias tentativas pra reunir os moradores e pregar o evangelho. Mas infelizmente não alcançaram êxitos, e o que conseguiram na verdade foi complicar a situação pra eles mesmos. Pois, por causa da insistência deles em pregar a palavra, alguns moradores, principalmente aqueles mais inclinados a fazer arruaças acabaram se aborrecendo ao ponto de dizer que a qualquer hora iam meter o braço naquele magote de gente sem vergonha e ensiná-los a não mexer com quem tá quieto no seu canto. Um dos primeiros moradores de lá, Zé Aristonias de Melgaço, sujeito entroncado, estatura mediana e muito mal inclinado pra coisas que não prestam. Caçador de conversa, xingador de nomes feios, sempre com uma peixeira na cintura, gostava de contar vantagens e vivia falando em quebrar cara de gente. Desde quando ele chegou pra morar ali corria boato que ele havia cometido crimes de mortes pras bandas onde morava e por isso nem podia mais voltar em sua terra natal. Uns diziam que ele nunca foi despachado da usina porque os chefes temiam sua reação, outros já mudavam a estória, diziam que a administração o mantinha pra no caso de precisar pra algum serviço escuso ele estava ali no ponto.

Só que na estória dos crentes ele sem que, nem pra que achou de tomar a frente dos outros moradores e se implicou logo com os coitados. Dizia que tinha escondido atrás da porta da sala de sua casa um chicote rabo de tatu que era pra quando esse povo chegasse pra lhe atormentar a paciência, ia se arrepender da viagem, pois, ia cortar o lombo deles no chicote de um jeito que ia perder o rumo de casa. Se não fosse correndo no mesmo dia pra Santa Casa de misericórdia pra se tratar, ou então para o cemitério, o certo é que ia ficar de cama por um bom tempo tomando cibalena, chá de mastruz, e comendo canja de galinha pra sarar das chicotadas. Isso pra aprender não bulir com quem tá quieto no seu lugar.

Era um sujeito nordestino esse Zé Aristonias. Num domingo de tarde o homem encheu a cara e tava feito o cão, armado até os dentes, na cintura uma peixeira doze polegadas, uma garrucha trezentos e oitenta e um revolver 38; carregados até o tampo. No ombro um chicote rabo de tatu que de vez em quando ele o estalava no ar que parecia um tiro de 12. Era o tempo todo arrastando papo e espreitando a morada dos evangélicos e fazendo insultos pra ver se eles esboçavam qualquer coisinha pra ele entrar em ação.

Os protestantes ficaram o dia todo acuados dentro de casa sem botar a cara pra fora e lá pelas dez da noite, aproveitaram uma horinha que o valentão deu uma cochilada, saíram às carreiras no meio da noite, de pé, deixando quase tudo pra trás, ordenado dos poucos dias de serviços, mudança, enfim, queriam era fugir dali o mais depressa possível. Jogaram as crianças de colo nas costas, arrastando os maiores, e mais algumas coisinhas que deram conta de levar. O resto ficou pra trás, não fizeram conta, e pelo jeito deram por satisfeitos em não se meterem numa em rascada muito pior no meio daquela gente perigosa, principalmente por causa da surra prometida pelo bandoleiro Zé Aristonias de Melgaço.

Melgaço naquela cochilada ferrou de vez no sono e a noite transcorreu sem nenhum incidente. Mas logo de manhã bem cedo, pra complicar tudo de novo, antes dele acordar um acontecimento grave agitou todos os moradores. Pois Melgacinho, moleque de sete pra oito anos, filho único do perigoso Aristonias de Melgaço, sem ter o que fazer e de natureza ruim igual a do pai ou pior, pulando ali pelos arredores da casa caiu dentro de uma cisterna com mais de vinte metros de fundura que os crentes cavaram e abandonaram porque dera numa rocha muito dura e nunca deu n’água. A cisterna ficou aberta e os crentes não tomaram nenhuma precaução pra evitar que alguém caísse dentro dela. E agora olha só o que aconteceu, um acidente de grande proporção. E olha com quem?! Com Melgacinho, filho do perigoso Aristonias de Melgaço. Na hora houve certo espírito de união entre os moradores, se juntaram, pelejaram de todo jeito e por fim desceram uma lata presa a uma corda e o resgate foi feito com sucesso. Fora alguns arranhões e o susto, o moleque saiu inteiro e pulando pra todo lado, era a natureza dele, não tinha jeito. Teve alguém que disse que aquele menino era o capeta em forma de gente, portanto não adiantava pelejar com ele, não ia mudar nunca. Mas também, olha de quem que ele é filho! Afirmavam alguns moradores, mas isso longe dos ouvidos do bandoleiro, pois todos temiam o sujeito, ás vezes acontecia briga ou discussões entre os moradores, mas com ele ninguém mexia o respeitavam e queriam ser amigos dele. Era o único que quando queria botava ordem no recinto.

A confusão se acalmou, mas não só o Zé Aristonias ficou enraivado com os crentes, mas quase todos os moradores, e diziam que aquilo é que era gente ruim, pois cavaram aquela cisterna e deixou aberta daquele jeito foi de caso pensado querendo que caísse alguém dentro dela pra se machucar ou até mesmo morrer. Eles não prestam, gritavam com raiva os que não pensam duas vezes antes de acusar alguém. Melgaço se levantou enraivado, xingando e dizendo se arrependido por não ter aproveitado a hora que tava enfezado e pegado os salafrários de couro, entretanto, começou arriar um cavalo e se armar pra ir atrás deles pra acertas as contas. Só não fez porque chegaram algumas pessoas de bom senso ali na hora e explicaram que aquele povo jamais faria uma coisa daquela de caso pensado, era gente de bom coração, pessoas de Deus, o que poderia deveras tá acontecendo era um aviso do céu por causa da maldade do povo ali contra os crentes que não tinha nada a ver com o acontecido. O argumento dos passantes funcionou e o povo ficou dividido, os ânimos esfriaram e tudo voltou á normalidade, só quem não voltou mesmo pra continuar morando no galpão foram os coitados dos crentes. Nunca mais se ouviu falar neles e muito menos o rumo que tomaram, enfim, os maus entendidos foram enterrados para sempre.

E assombração então! Ave Maria! Parece que a bagunça que faziam atraía muita coisa ruim, pois, pelo que contavam as almas penadas de toda redondeza quiseram ir pra lá, só via gente falando que de noite escutavam latas caindo sozinhas das prateleiras, pisadas estranhas lá fora, barulhos nos telhados como se alguém tivesse jogando pedras, batidas nas portas, tropel de cavalos chegando nas portas, ouvia se até barulhos de cavalos mordendo os freios e ia ver, pensando até mesmo que fosse algum parente chegando, mas abria porta e não havia nada, era o lugar mais deserto. Tinha hora que cachorros valentes choravam e uivavam com os rabos entre as pernas vendo coisas do outro mundo e unhavam a porta querendo entrar pra dentro de casa. Lobisomem e mula sem cabeça era o que não faltava pra dar carreira em gente em dias de sexta feira nos tempos de quaresma. Enfim, o lugar era esquisito, pra morar ali só aquele povo desalmado mesmo.

O piso daquelas moradas era dos mais simples, de chão batido, coisa improvisada, entretanto, aquelas moradias que tinham sorte de pegar moradores de bom senso que as traziam limpas, bem varridas, naturalmente o ambiente tornava se aconchegante, excelentes condições de conforto e bem estar. Mas tinham aquelas, como diz o ditado, que nem tudo é perfeito e em todas as regras há também algumas exceções, isso é tão verdadeiro que havia ali moradoras do tipo pouco dadas ao trabalho e que adoram passar o dia nas casas dos outros fazendo fofocas das vidas alheias. Essas, para justificarem suas ausências e os desleixos nos seus lares, falavam mal não só do piso, falavam da morada inteira, do aperto, da poeira, dos ratos, das cobras, dos lagartos, das lagartixas, das brigas, das assombrações, enfim, reclamavam dos vizinhos e que num lugar daquele não dava o menor gosto morar, pois, alem de tudo, eles não ofereciam as mínimas condições para mantê-los asseados.

Discordavam por não serem semelhantes às moradias dos vizinhos, como a casa do meio e a da beirada do rio onde morava um povo negro que por sinal era gente muito boa. As críticas delas vinham com um sutil e malicioso trejeito que quem as visse ou ouvisse não podia deixar de perceber o veneno da inveja no brilho cortante dos seus olhares, porem, os semblantes eram dissimulados como se não tivessem sentindo absolutamente nada.

As outras duas moradias, perto do galpão, pra elas eram coisas de luxo, imponentes, rebocadas com uma massa feita de barro e estrume de gado, paredes luxuosas, superfícies de reboco desempenadas e suntuosa caiação, isso feria o orgulho de algumas moradoras do galpão e a sensação de inferioridade delas e de muitos outros, embora não exteriorizassem, era nitidamente perceptível. Todavia, lá de vez em quando, muito raramente, reinava o clima de cordialidade naquele meio, exceto discussões sem importância entre a molecada enquanto brincava de bola, de pique, pião e outras tantas brincadeiras, mas nada de grave. Mas isso não era comum, mas ás vezes, lá de vez em quando acontecia.

O galpão ficava à beira de uma vicinal que passava beirando às outras duas moradas e nessa estradinha passavam caminhões, tratores, máquinas de esteiras, carroças, carros de bois, enfim, turmas que vinham da cidade pra trabalhar nos canaviais, passavam também as cargas de cana indo pras moendas da usina.

Depois esse galpão foi derrubado e em cima do lugar nasceram imensas vegetações de ramagens que subiram sobre os pés de frutas que já existiam ao seu redor e ficou de um jeito que não dava de ver nem sinal dele mais. Mas mesmo depois que ele foi derrubado, quando alguém passava na estradinha, principalmente se fosse de noite, passava morrendo de medo e rezando pra não ver nada, porque a fama de lugar mal assombrado ficou para sempre.

Domingos Andrade
Enviado por Domingos Andrade em 10/09/2019
Código do texto: T6741982
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