COLODINOS - CAPÍTULO 09

Sei que chegaram desapontados e todo sem jeito porque ao sair haviam contado muitas vantagens, disseram que iam trazer num sem quantos jacus e tantas outras coisas e não iam fazer conta de coisas pequenas para não gastar munição com besteiras. Quem não conhecesse a estória verdadeira e visse a conversa, diria serem os melhores caçadores do lugar.

E agora, alem de chegarem de mãos vazias, arrebentados, arranhados de um jeito que os braços e as pernas doloridos e em sangue vivo, as roupas viraram molambos porque na hora do apuro pra fugir da alma penada, nem viam quando saltavam moitas de espinho de agulha, unhas de gato, moitas de gravatás e tantos outros obstáculos, iam levando tudo no peito. Não entendiam de onde tiraram tanta força naquela hora pra correr daquele jeito dentro da mata escura.

E mesmo quando saíram no descampado, mais calmos, mas qualquer barulhinho era motivo para deixá-los de ouvidos atentos e prontos para desabar de novo na carreira, de tão assombrados que estavam.

Quando contaram em casa o acontecido, estava lá um velho que se chamava Pedro, o velho era boa praça, morava na cidadezinha de Ventania. Gostava muito de vir passar temporada nos colodinos. Era um velhinho muito simpático e gostava de contar causos, contava causos de coisas encantadas, coisas misteriosas, de assombrações, de jagunços, de gente rica que maltratava os pobres e depois quando morriam os espíritos ficavam vagando e incomodando o povo aqui na terra.

Então, quando falaram sobre o acontecido, o velho logo começou a contar um causo que dava sentido ao episódio ocorrido com os dois naquela noite. A estória de um rico fazendeiro muito malvado que certa feita fizera uma de cortar o coração. Isso há muitos anos – dizia ele – esse fazendeiro era aqui da nossa redondeza, gostava de ter na sede da fazenda, pra sua segurança, cachorros enormes, verdadeiras feras. Era um homenzarrão nos cinquenta e poucos anos, carrancudo, bigode fechado, sempre com chapéu de pelo amassado sobre os olhos, parece que portava se desse modo pra meter medo nos coitados que trabalhavam pra ele quase de graça, ou de graça mesmo. Alem dos paramentos de cintura como uma guaiaca, uma garrucha de dois canos de grosso calibre devidamente municiada, um enorme punhal de cabo colorido em muitos anéis de matéria prima que parecia ser marfim e não desapegava de um chicote rabo de tatu, mas ele trazia no lado esquerdo do peito, talvez sua arma mais perigosa, o seu próprio coração, que na verdade deveria ser comparado a uma pedra.

Era muito ruim esse homem. Eram fortes os seus sentimentos de ganância, de machucar, magoar as pessoas frágeis e extrair delas até a última gota de suor, e se necessário, até a última gota de sangue. Num certo dia esse homem tava sentado no terreiro de sua propriedade, sentado e aparentemente tranquilo. Quando de repente avistou vindo lá longe na estrada que dava entrada pra sua fazenda, um sujeito trazendo numa corrente um enorme cachorro rajado, o animal parecia um bezerro de tão grande. O rapaz sabia do interesse do homem por cachorros, principalmente se fosse feroz e de raça grande como era aquele. O sujeito o levava na intenção de fazer negócio e apurar um bom dinheiro.

Mal chegou, o taciturno botou as vistas no animal, reparou bem, e mostrou se alegre na mesma hora, coisa difícil de ver, mas o homem quase sorriu de satisfação. Com poucas conversas, quase mesmo só os cumprimentos de praxe, passaram logo a tratar do negócio. Roberval o dono do cachorro, muito eloquente, começou logo a fazer suas propagandas sobre as qualidades do animal, da raça, da força, da valentia, enfim, dos atributos essenciais que justificaria o preço que pedia.

Nesse justo momento e a certa distancia ia passando um velho, desses sofridos pelos maus tratos em serviços pesados durante muitos anos de sua vida, e como já estava fraco e quase sem forças pra continuar nos serviços de roças, fora designado para trabalhos domésticos como tratar dos porcos, das galinhas, debulhar milho e coisas dessa natureza. O coitado do negro, era negro o homem, estava opilado e combalido por causa da idade e dos maus tratos, ele tava nu da cintura pra cima, magro de um jeito que as costelas davam pra ver de longe. Mas o fazendeiro malvado não o poupava, dizia que lá todo mundo tinha que trabalhar até morrer que era pra pagar o angu que comia. O pobre homem ia passando lá longe, levando nas costas um feixe de lenha que certamente alguém da cozinha havia pedido pra levar para o fogão da fazenda. O velho num sentimento de premonição relanceou timidamente o olhar aos dois homens sentados num banco debaixo da sombra do pé de figueira. Eles confabulavam olhando na sua direção, o pressentimento do velho foi de que alguma desgraça estava prestes a lhe acontecer, portanto, procurou apressar mais os passos sem olhar para trás para não chamar a atenção dos algozes. Mas em vão coitado, porque o fazendeiro já tava de plano feito, arribou a cabeça, imaginou por instantes e para surpresa de Roberval disse que não queria saber de lorotas de elogios e que antes de fazer sua oferta queria mesmo era testar as qualidades do animal, e na mesma hora ordenou ao moço que mandasse o cão atacar o velho que já ia longe com o feixe de lenha nas costas. O dono do cachorro ainda relutou afirmando que a fera não era de brincadeira e com certeza ia matar aquele velho. Nessa hora um sorriso largo estampou se na cara do homenzarrão, pois reclinara prazerosamente o corpo para trás e desmanchara se numa gargalhada animalesca, o chapéu amassado caiu, e ele abaixou se todo descabelado para apanhá-lo e enquanto apanhava dizia morrendo de rir que aquilo não fazia a menor importância, pois aquele ali já era apenas um caco de gente que não tinha mais nenhuma serventia, portanto, se o cachorro o matasse, seria um grande feito. O dono do cachorro era também um canalha, desses que por dinheiro tem coragem de pisar na goela da própria mãe, portanto, não hesitou e na mesma hora o soltou da corrente e atiçou pra pegar o pobre velho. A fera saiu feito uma bala, voou raivosamente no pescoço do velho, derrubou e sem soltar chacoalhou várias vezes com muita força de um lado para o outro e o matou sem permitir que o pobre homem sequer emitisse qualquer ruído. O malandro o havia adestrado para essa finalidade, pois sabia que esse seria o requisito fundamental para atender as exigências do capitão e sabia também que poderia com isso passá-lo nos cobres por um bom preço.

O rapaz chamou uma vez apenas e o cachorro o atendeu largando o corpo dilacerado e todo ensanguentado estirado no chão perto do feixe de lenha que ia levando. O fazendeiro de tão satisfeito não quis nem saber de regatear, meteu logo a mão na guaiaca, retirou umas patacas de ouro e as passou ao malandro, o pagando sem mais nem menos a quantia que havia pedido. Mandou colocar a corrente e a recebeu radiante de satisfação, levando o animal na mesma hora para o interior do quintal.

Passado pouco tempo um jovem negro surgiu no portão que dava entrada para o quintal, robusto, braços fortes, corpo atlético parecia muito saudável o rapaz. Atravessou o avarandado da fazenda, passou por Roberval que continuava sentado no banco debaixo da figueira, o jovem nem respirava de tão tímido e foi até onde estavam o corpo e o feixe de lenha. Ficou um bom tempo olhando o corpo estirado ali no chão, se abaixou e estendeu a mão direita sobre o corpo do velho como quisesse recomendá-lo aos céus, e depois ajeitou o feixe de lenha que havia se desarrumado por causa da queda brusca na hora que o cachorro avançou, jogou sobre o ombro e caminhou de volta, passou de novo pelo rapaz, Roberval percebeu que o jovem estava comovido e derramava lagrimas, entretanto, não fez outro gesto, passou silenciosamente e logo entrou portão adentro e sumiu.

Havia sido o facínora que o mandou buscar a lenha pra não desperdiçar e mais tarde foi também revelado que aquele jovem era neto do velho Nestor, inclusive que o pai dele havia morrido ali na fazenda pelas mãos do próprio fazendeiro, portanto, não tinha mais pai e acabava de perder ali agora o avô naquela maneira tão cruel, quem o amava muito e por quem era tratado com muito carinho, portanto, estava arrasado da vida pela segunda vez. E obviamente temia pela sua própria vida.

Com pouco tempo surgiu no portão o fazendeiro, modos grosseiros, vinha lambuzado de gordura, pois comia alguma coisa parecida com um pedaço de costela de porco, e bem na hora ia passando um carro de boi carregado de pedras, no que o homem interpelou e ordenou aos carreadores que jogasse o corpo do velho em cima do carro e jogassem para os urubus, mas que jogasse bem longe dali. Agia como se nada houvesse acontecido, pra ele era tudo natural. E igualmente tudo era muito natural para o bandido do Roberval que tratou de se despedir, saiu satisfeito e com certeza já ia pensando em algum plano diabólico para desgraçar a vida de outras pessoas lá na frente.

O animal pareceu gostar do novo dono, pois balançava a calda dando sinais de amizade quando lhe eram dispensados tratamentos amigáveis e a dedução mais lógica que se podia fazer com relação a isso, era a de que comportamentos de ambos, fera humana e fera canina, igualavam se perfeitamente em termos de praticar atrocidades aos mais frágeis. Entretanto seria justo elevar o título do abominável fazendeiro ao de monstro, porque o outro era bicho bruto, ele era tido como ser humano, embora fosse da pior qualidade possível das que existem sobre a face da terra.

O sujeito que acabara de realizar a negociação procurou logo uma maneira de se despedir do cliente, obviamente satisfeito com o sucesso alcançado, pois o brilho intenso nos seus olhos revelava que por dentro estava morrendo de felicidade, não se importando nenhum pouco com a morte de maneira trágica daquele pobre coitado. Ninguém o conhecia ali na redondeza, entretanto, houve depois boatos que tratava se de astuto mau caráter, verdadeiro calhorda que levava vida boa, quando não era a custo de roubos, era aplicando golpes sujos como esse agora, porém sempre causando desgraças nas vidas de muitas pessoas inocentes. Houve afirmações de gente que o episódio que resultou na morte do velho Nestor fora planejado pelo gatuno e aquele cachorro que agora parece um monstro de tão grande, fora roubado de uma fazenda quando ainda pequeno e adestrado para atender a ordens de atacar e tudo isso já com vistas em vendê-lo para o fazendeiro, pois conhecia a paixão do mesmo por cães assassinos para ajudar na administração dos seus trabalhos e com isso antevia a possibilidade de abocanhar um bom dinheiro. Como de fato conseguiu.

Domingos Andrade
Enviado por Domingos Andrade em 10/09/2019
Código do texto: T6741977
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